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(POL) A importância do ponto de partida em filosofia

A importância do ponto de partida em filosofia

Daniel C. Scherer

No final de seu livro Justiça de quem? Qual racionalidade?, Alasdair MacIntyre observa o seguinte: “Um livro que termina concluindo que o que podemos aprender de sua argumentação é onde e como começar pode parecer não ter alcançado muito. No entanto, Descartes pode estar certo sobre uma coisa: em filosofia, saber como começar é a mais difícil de todas as tarefas”[1]. (MacIntyre encerra seu livro concluindo que as tradições devem ser o ponto de partida do debate moral; mas isso não vem ao caso). De fato. Em filosofia, saber “onde e como começar” é de suma importância. Nosso ponto de partida também dá a direção de nosso esforço filosófico. O primeiro passo de uma longa jornada pode lançar-nos na direção certa, ou na direção oposta ao objetivo que inicialmente tínhamos em mente. Se terminamos por encontrar-nos em águas turbulentas, ou mesmo por naufragar, talvez seja porque, no início da viagem, escolhemos apontar nossas velas para a direção errada. É por isso que cabe à filosofia interrogar, de novo e de novo, o ponto de partida de nossas reflexões.

Tomemos o próprio Descartes. Ele fez uma opção capital no início de sua reflexão. E já nessa opção se encontrava, em germe, ou em potência, tudo o que mais tarde veio a tornar-se explícito em sua filosofia madura. O francês queria desesperadamente encontrar um ponto arquimédico em que firmar a alavanca de sua ciência. E, então, elaborou um célebre método com que alcançar a sonhada certeza. Eis o seu primeiríssimo preceito:

nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida [2].

A rigor, seu cogito já se esconde nessa imposição metodológica. Todos nós já experimentamos situações em que a existência se nos apresenta confusa e inexata. E nem por isso consideramos tal experiência menos real ou verdadeira. É apenas quando transpomos a existência para o pensamento e, mais que isso, organizamo-la matematicamente, que dela temos uma ideia clara e distinta. Se aceitamos, porém, aquela premissa, é fatal que o pensamento organizado matematicamente torne-se garantia não só da verdade, mas da mesma existência das coisas. Não espanta, portanto, que Descartes considere mais evidente seu pensamento que sua existência. Cogito ergo sum. Mesmo Ortega y Gasset, admitidamente um grande entusiasta do francês, não deixava de observar: “A tendência irreflexiva e vulgar em considerar a exatidão como um atributo que atinge os méritos da verdade carece por completo não só de justificação, mas até de sentido. A exatidão não pode existir senão quando se fala de objetos quantitativos” [3].

Contrastemos, agora, a opção cartesiana com a opção de Santo Tomás: “O ente é o objeto próprio do intelecto; ele é pois o primeiro inteligível, como o som é o primeiro objeto próprio do ouvido” [4]. Ente é aquilo que é ou tem ser (ens, em latim, é o particípio presente de esse). O ente é nosso primum cognitum; o objeto próprio e formal de nossa inteligência. A rigor, tudo o que conhecemos, conhecemos sob a razão de ente, como já insistiremos. Diante de qualquer experiência sensível, por espantosa que seja – e o espanto, dizia Aristóteles, é o começo da filosofia [5]– sabemos, como evidentíssimo, que nos encontramos diante de algo que é. Podemos não conhecer, de partida, as determinações deste ente singular; mas sabemos, indubitavelmente, que topamos com um “ente”, isto é, com algo atualmente existente. 

Ora, como observa o padre Álvaro Calderón – possivelmente, o maior tomista vivo – a noção de ente não é clara e distinta, mas clara e indistinta. [6] O que significa que já o primeiro passo de Descartes foi um passo em falso. E a consequência desse tropeço só poderia ser trágica. Porque na noção de ente se inclui, como adiantamos, tudo o que podemos saber. O ente não é apenas o primeiro conhecido; em certo sentido, é “todo o conhecido”: “pois tudo o mais se conhece por ele e nele, como determinação sua. Todos os demais conceitos, sejam predicamentais, sejam transcendentais, são alcançados como modalidades e determinações do conceito de ente” [7]. Da primeira à última das disciplinas intelectuais – da lógica à metafísica (para ficarmos apenas com as disciplinas alcançáveis pela razão natural) –, nossa reflexão se apoia no ente. Na ótima fórmula de Calderón: o intelecto “é homem de uma só palavra, que só sabe dizer ente” [8]. Se, portanto, diferentemente de Descartes, fundamos nossa reflexão filosófica no ente extramental, com toda a sua riqueza, complexidade – e, frequentemente, dubiedade –, então somos capazes de alcançar conclusões radicalmente diversas daquelas a que é conduzido o francês.

Não há como aprofundá-lo aqui, mas façamos o esforço rápido de ao menos vislumbrar tais conclusões. A noção de ente é análoga. Já o dizia Aristóteles: o ente diz-se de muitos modos [9] Observamos, por exemplo, que as coisas mudam: a criança torna-se um adulto, a água fria é aquecida pelo fogo, a tela outrora em branco agora é uma pintura. Com isso, entendemos que a noção de ente abrange não apenas aquilo que atualmente é, mas também aquilo que pode ser. Alcançamos, então, a distinção entre ente em ato e ente em potência. Actus é o particípio passivo de agere. Significa aquilo que foi feito, posto em movimento, levado a seu termo. Potentia, como possibilitas, deriva de possum (potis + esse: que pode ser). Significa, antes de mais nada, o poder ou a força de vir a ser algo. Mas, por extensão, significa a possibilidade passiva de vir a ser algo. A descoberta aristotélica do par ato e potência traz a lume a composição real de forma e matéria nos entes sensíveis.

Nas substâncias corporais, forma e matéria relacionam-se, respectivamente, como ato e potência. E é o trânsito de uma coisa à outra que explica o movimento. Mas mais que isso: observando a realidade física, notamos que há uma hierarquia nas coisas. Há graus de perfeição nos entes, a depender da maior ou menor separação da forma com respeito à matéria. No “plasma denso”, a forma está enterrada na matéria, quase sumida, com um grau ínfimo de atualidade (esse parece ser o caso dos buracos negros). Átomos e moléculas são estruturas mais estáveis, e já podem ser consideradas substâncias, assim como as células, que são a unidade fundamental dos viventes. De fato, os entes vivos – capazes de nutrição, crescimento e reprodução – têm maior unidade e permanência que os entes inanimados. As árvores perdem suas folhas no inverno, mas não diminuem quantitativamente, como as substâncias minerais. Notamos ainda que a alma sensitiva domina a matéria de um modo ainda superior: a potência motriz despega os animais do lugar presente, e, sobretudo, o conhecimento sensível garante que o animal possa receber qualidades das coisas externas e atuar, por consequência, de modos mais complexos. Por fim, o homem é capaz de atos propriamente espirituais, como o entender e o querer. A alma racional, por sua imaterialidade, é incorruptível, e sobrevive mesmo à corrupção do corpo. Isso significa que a forma é o princípio de universalidade do ente; o ente é tanto mais perfeito quanto mais a forma se separa da matéria. 

Ora, em todos os entes, cuja perfeição escalonada podemos contemplar, a perfeição mais alta e comum é o ser. Mas em todos eles – dos minerais ao homem; e também nas inteligências ou anjos, cuja existência, porém, conhecemos apenas por fé – o ser não lhes é essencial. A essência dos entes é necessária, mas sua existência é contingente. A cerejeira que hoje vemos, amanhã deixará de existir. Mas a sua essência é necessariamente o que é. Em outras palavras: para cada um deles, uma coisa é a essência, outra coisa é o supósito, ou substância individual. Uma coisa é a humanidade, outra coisa é Sócrates. A humanidade contém necessariamente tudo aquilo que pertence ao homem; mas Sócrates inclui um sem-número de determinações contingentes – branco, grego, filósofo – que não pertencem à essência da espécie. Se houvesse, como queria Platão, o homem per se, qual supósito no Hiperurano, tal supósito em nada se distinguiria da humanidade. Do mesmo modo que se houvesse a brancura, fora de quaisquer coisas brancas, tal brancura em nada se distinguiria da essência da brancura. Da mesma forma, enfim, que no Ser per se, que é e subsiste por si, e apenas n’Ele, supósito e essência se identificam. Sua essência é Ser.

Seria preciso dizer muitas outras coisas para passarmos com rigor da distinção entre essência e existência para a distinção entre essência e ser, que não são a mesma. Sem isso, incorremos no que Calderón chama “tomismo fast-food” [10]. Seria preciso, por exemplo, falar das cinco vias. São elas que nos garantem que o ser que atribuímos às coisas é um coprincípio real do ente, distinto realmente de sua essência, e não apenas um artifício da razão ao qual damos, indevidamente, peso ontológico. Mas não há como fazê-lo no curto espaço deste artigo. Pulemos, então, para a conclusão a que chega Santo Tomás.

Em todos os entes, com exceção de Deus, ser e essência distinguem-se realmente. E relacionam-se entre si como ato e potência respectivamente. A essência é uma potência que recebe e limita o ato de ser. A forma é ato com respeito à matéria, sem dúvida; mas a própria forma é potência com respeito ao ser. O ser é o ato dos atos. A doutrina aristotélica, assim, é levada por Santo Tomás às suas últimas consequências. E rematada por um acréscimo platônico: o ser é participado aos entes pelo Ser per se por meio de suas essências. Apenas em Deus ser e essência coincidem. Deus é o ser por essência; é o Próprio Ser Subsistente; é Ens per Essentiam. Tudo o mais é ens per participationem. Em Deus, a essência é o próprio supósito. N’Ele, nada há no supósito fora da essência, porque Sua essência é Ser, e nada há fora do ser. Tal Ente por Essência é capaz de causar, atuar e participar o ser pelo qual tudo o mais é. E, neste ponto, a reflexão filosófica toca mesmo a Revelação, porque alcança o próprio nome divino: “Ego sum qui sum”, YHVH. De novo: tudo isso é de uma simplificação brutal. Mas, ainda assim, talvez sirva para indicarmos o seguinte: veja a que distância estamos de Descartes! E muito disso se deve ao primeiro passo que demos em nossa reflexão. O ponto de partida de nossa caminhada filosófica pode levar-nos para direções radicalmente opostas: pode encerrar-nos na imanência subjetiva, ou abrir-nos plenamente para a hierarquia do real. Pode encaminhar-nos para nosso fim último, ou roubar-nos o sentido da existência. E isso tem, aliás, consequências práticas também profundas. Porque o fim último do homem individual também é o fim a que se ordena a pólis. Portanto: ou a sociedade política ordena-se a fins transpolíticos, ou ela é uma construção autopoética dos próprios indivíduos. Em suma: nosso ponto de partida pode levar-nos à Realeza de Cristo, ou ao liberalismo. E a distância que medeia as duas coisas não é pequena. Fiquemos com isso: toda jornada começa com um primeiro passo, como diz o ditado. Mas há que acrescentar: o primeiro passo faz toda a diferença. E, então, voltamos a MacIntyre: “em filosofia, saber como começar é a mais difícil de todas as tarefas”.


Daniel C. Scherer é doutor em Educação e Mestre em Filosofia; bacharel em Psicologia, Direito e Teologia. Autor dos livros A Raiz Antitomista da Modernidade Filosófica e A Metafísica da Revolução: pressupostos do Liberalismo, ambos publicados pelas Edições Santo Tomás.

Referências Bibliográficas

[1] MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução de Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Edições Loyola, 1991, p. 430.

[2] DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 33 (grifo nosso).

[3] ORTEGA Y GASSET, José. Que é Filosofia? Tradução de Luís Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1971, p. 58.

[4] AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2001, I, q. 5, a.2, c. (grifo nosso).

[5] ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre, RS: Editora Globo, 1969, I, 982 b 13.

[6] CALDERÓN, Padre Álvaro. El orden sobrenatural: una imersión em el tomismo profundo. Buenos Aires: Ediciones Corredentora, 2020, p. 59.

[7] Ibid., p. 56.

[8] Ibid., p. 60.

[9] Metafísica, IV, 1003 a 33.[10] El orden sobrenatural, p. 76.

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