Matheus Bacila
Desde o início do século XX até os dias atuais, tornou-se corrente a ideia de que a psicologia contemporânea, difundida em suas diferentes escolas de psicoterapia, seria o único paradigma de cura para os sofrimentos de ordem da saúde mental.
Não há quem não pense em buscar, para os mais variados tipos de transtornos, o auxílio da psicanálise freudiana, jungiana, a terapia cognitivo-comportamental, as mais modernas terapias da Gestalt, das técnicas da EMDR, ou a menos conhecida logoterapia. São esses, em geral, os caminhos procurados por pacientes e indicados por terapeutas.
A razão para esse domínio quase absoluto que a psicologia contemporânea adquiriu dentro da esfera das ciências do comportamento e, até mesmo, de toda a cultura da sociedade ocidental, é facilmente identificada: as suas raízes filosóficas, originárias do empirismo que se seguiu ao movimento iluminista do século XVIII, que, como afirma Martín Echavarría em sua obra A Práxis da Psicologia, “destruiu os fundamentos metafísicos da psicologia tradicional”.
Com isso, a psicologia – ou as psicologias – que se tornaram “cientificamente” aceitas passaram a ser aquelas que se baseiam unicamente na “experimentação”. Somando-se a isso a influência de filósofos como Schopenhauer e Nietzsche, temos o conjunto de escolas de psicologia que ditam aquilo que é ensinado e veiculado hoje em dia, especialmente a psicanálise de Sigmund Freud.
Apesar da influência que a psicanálise e outras escolas desempenham no ensino da psicologia e na prática de consultório nos dias de hoje, há uma outra forma de se entender e de se fazer psicologia que, com a morte da metafísica prenunciada pelos iluministas e definitivamente executada pela filosofia moderna, foi esquecida quase que por completo.
Trata-se daquilo que o próprio neopsicanalista Erich Fromm chamou de “ciência do melhoramento do caráter”, uma psicologia que ele reconhece como existente desde Aristóteles e desenvolvida magistralmente por Santo Tomás de Aquino e outros filósofos escolásticos, pautada pela correta compreensão ontológica do ser humano e pela sua vinculação à ética – algo absolutamente deixado de lado nas escolas atuais.
Essa forma de psicologia especulativa, ou racional, a que chamaremos de Psicologia Tomista, já se diferencia das demais citadas por um aspecto básico: ela considera que o ser humano é dotado de uma alma, a sua “forma substancial”, que é justamente o que lhe confere o ser e lhe dá a vida, sendo, ainda, a instância onde se encontram as faculdades do intelecto e da vontade.
Assim, vemos uma grande distinção em relação à psicanálise, por exemplo: enquanto esta coloca como centro da vida humana o seu “núcleo profundo” (o id), para Santo Tomás, ao contrário, o centro se dá no seu “patamar mais elevado”, isto é, o intelecto e a vontade.
Essa compreensão é fundamental quando falamos em desenvolvimento pessoal, pois o desenvolvimento ou aprimoramento do indivíduo implica, necessariamente, uma busca por algo justamente mais alto, um padrão de normalidade da vida psíquica que se deve alcançar. Esse padrão de normalidade, segundo Santo Tomás, é a vida virtuosa, algo a que todo ser humano pode se inclinar com a devida disposição para tal.
Para entender como se dá esse processo, é preciso ver como o Aquinate – como é chamado o conjunto da obra de Santo Tomás – enxerga a alma humana: para ele, em que pese o ser humano ser dotado de uma alma intelectiva, como já foi dito, também possuímos potências sensitivas.
Essas potências de ordem sensitiva se resumem à cognição, efetuada pelos órgãos dos sentidos, e aos apetites, que são a faculdade responsável por, após a apreensão de um bem pelos sentidos, inclinar o ser humano até esse bem, o que gera aquilo que é central na psicologia tomista: as paixões humanas (traduzidas, em linguagem moderna, por “emoções).
Para Tomás, as paixões são onze: o amor, o desejo, a alegria, o ódio, a aversão, a tristeza, a esperança, a audácia, o temor, o desespero e a ira. São esses os “movimentos da alma” que constituem, para novamente tentar usar uma terminologia atual, os “sentimentos” humanos. A grande questão a ser entendida, e aí avançamos no nosso entendimento do desenvolvimento humano, é que tais paixões não são boas ou más por si mesmas. Elas se tornarão boas ou más segundo o seu ordenamento a partir do intelecto e da vontade, ou seja, de acordo com a capacidade que a razão e a vontade possuem de adequadamente ordenar essas paixões – vê-se, portanto, por que o centro da personalidade humana reside nessas faculdades elevadas, especialmente o intelecto.
As paixões, quando geradas de maneira constante, geram hábitos, considerados “disposições dificilmente móveis”, justamente devido à sua característica de constância e estabilidade. Os hábitos, por sua vez, considerados como um “conjunto operativo”, geram o caráter. E, por fim, hábitos bons são considerados virtudes, enquanto hábitos ruins são considerados vícios, o que, portanto, moldará o caráter geral do indivíduo.
Tudo isso depende do quão ordenadas as paixões humanas estão, ou, para reproduzir a expressão usada por Santo Tomás, se as paixões estão adequadamente “sob o império da razão e da vontade”.
Como saber se as paixões estão sob esse império? E, principalmente, por que isso deve acontecer? Sem cair em relativismos, tão em voga atualmente, temos que compreender outro elemento fundamental abordado por essa psicologia do “melhoramento do caráter”: a finalidade do ser humano.
Todo ser humano, assim como todo ente da realidade, possui uma causa final, algo para o qual foi feito e para o que naturalmente procura se dirigir. A finalidade da vida humana é a contemplação da verdade, que, em última instância, é Deus. E é isso que racionalmente passará a constituir as bases da lei natural.
Para Santo Tomás, todo o desenvolvimento de hábitos bons ou de virtudes ocorre como uma espécie de “derramamento” a partir da perfeita conexão do ser humano com a verdade: o intelecto apreende o que é verdadeiro e a vontade, iluminada por isso, age para ordenar os apetites e as paixões segundo essa compreensão, trazendo o ser humano ao patamar de normalidade que, como se disse, é a vida virtuosa.
Nesse sentido, por exemplo, é contrário à lei natural comer demasiadamente, ou ser luxurioso, ou invejar, ou, então, irar-se desmesuradamente contra o seu próximo. Tais atos evidentemente não podem ser entendidos como algo bom, pelo contrário.
Portanto, sendo estimulado a contemplar a verdade – o que gerará a compreensão da lei a ser seguida a partir da atividade do intelecto -, o ser humano, ao ter um desejo por comer demais, ou ao se ver com ódio demasiado por alguém, “aciona” a sua vontade – também chamada de “apetite intelectivo” (pois nos move para o nosso fim) – e, enfim, passa a ordenar essas paixões.
Dessa forma, desenvolve, a depender do caso, a virtude da temperança, ou a virtude da prudência, ou a virtude da fortaleza, e assim por diante. Torna-se, portanto, um indivíduo desenvolvido, aprimorado, maduro e, claramente, verdadeiramente livre, pois terá fugido da “escravidão das paixões”.
Vemos, assim, como a psicologia de Santo Tomás de Aquino, cujos primórdios se encontram na ética aristotélica, pode contribuir com o aperfeiçoamento do ser humano, dando-lhe o caminho para tornar-se realmente melhor e mais saudável, o que é, obviamente, o objetivo de qualquer conhecimento que se proponha a ser uma psicologia.
Infelizmente, contudo, não vemos na psicologia moderna, embora seja útil no trato de certos aspectos da vida psíquica, tal preocupação com o desenvolvimento de virtudes e, consequentemente, com a elevação do homem a esse patamar superior de atualização plena das suas potencialidades: a de ser prudente, temperante, forte, caridoso, um ser humano sem vícios e, portanto, um ser humano normal.
O resgate da psicologia tomista tem avançado a passos largos nos últimos anos, com o trabalho de estudiosos e psicólogos renomados como Martín Echavarría, autor de uma extensa obra sobre o tema, a mencionada A Práxis da Psicologia e seus níveis epistemológicos segundo Santo Tomás de Aquino, publicada no Brasil há pouco tempo. Recorde-se que há também, no nosso país, os trabalhos do psicólogo Rafael de Abreu e do professor Sidney Silveira. Ainda há muito a ser feito, mas a retomada da “ciência do melhoramento do caráter”, essa psicologia tradicional escanteada por séculos por aqueles que esqueceram os fundamentos metafísicos e éticos do ser humano, é cada vez mais inevitável.
Matheus Bacila é médico psiquiatra e mestrando em filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR).