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Bonum est diffusivum sui

(POL) Aborto e a mentalidade anticonceptiva

Aborto e a mentalidade anticonceptiva

Um dos efeitos mais palpáveis da recente eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia sobre a mente das pessoas é a confrontação com a crueza da morte que tal episódio impõe. Nem sempre, no entanto, a triste realidade da morte violenta de seres humanos pelas mãos de seus semelhantes recebe tanta atenção, ou é recebida com tanto horror, quanto mereceria.

A realidade dos abortos que ceifam milhões de vidas inocentes todos os anos, em diversos países mundo afora (dentre os quais se incluem a própria Rússia e a Ucrânia), não apenas recebe pouca atenção das mesmas pessoas que se horrorizam com a morte em batalha, como também muitas vezes é celebrada como algo não apenas admirável, mas a ser expandido. Deste modo, diversas pessoas, mundo afora, militam por uma ampliação das permissões legais para a prática do aborto: no caso do anencéfalo, pretendem estendê-la ao caso de bebês concebidos há até três meses; daí, até os seis meses e, assim por diante, até a liberação total, quiçá culminando com a legalização do infanticídio.

Muitas destas pessoas, além disso, assumem uma postura abertamente contraceptiva em suas vidas. Frequentemente querem evitar os filhos. Mas não é que tais pessoas desprezem a filiação, a reprodutividade ou a vida em si. Muitas delas adotam animais de estimação, tratando-os como filhos; outras fazem de tudo para preservar da extinção as espécies ameaçadas, algo que é comprovado pela existência de iniciativas como o Projeto Tamar, que visa à preservação de ovos de tartarugas marinhas. Por outro lado, muitas das pessoas que promovem a extinção da vida do inocente, opõem-se, ao mesmo tempo, à pena de morte para culpados dos mais horrendos crimes.

O que estará por trás disso?

A primeira postura revela, muitas vezes, uma atitude comodista perante a vida. De fato, é muito mais fácil lidar com a realidade canina do que com a humana, algo que é revelado pela frase “quanto mais convivo com humanos, mais gosto do meu cachorro”.

De fato, seres humanos, mesmo as crianças da mais tenra idade, são, por vezes, surpreendentemente capazes de formular juízos e apontar contradições no comportamento dos adultos, colocando-os numa saia justa e fazendo-os refletir sobre sua postura moral. Qual é o pai que nunca foi desmentido por uma criança na frente de outro adulto?

Porém, esse comodismo resulta numa série de outras consequências. A alegria que um animal de estimação traz à vida de uma pessoa pode ser até genuína, mas é, ao fim e ao cabo, muito limitada. Sendo os cães e gatos os animais de estimação preferidos dos seres humanos, é quase certo que não viverão mais que os seus donos. E, mesmo que vivessem, não seriam capazes, como seres irracionais, de sucedê-los em qualquer sentido.

Nenhum cão jamais será capaz de dizer “papai”, “mamãe”, ou “eu te amo”, e muito menos apreender o significado profundo de tais expressões. Isso não deixa de fazer da alegria que ele proporciona algo efêmero e superficial.

Não que o carinho que os cães são capazes de oferecer não seja benéfico, e até terapêutico, em muitos casos. Ademais, sabemos que os impulsos dos próprios seres humanos podem ser cruéis e irracionais, a ponto de submeter a própria razão aos instintos num nível próximo ao das bestas mais selvagens. Há homens que praticamente adotam a animalidade como critério das ações humanas.

No entanto, a opção preferencial pelos cães, para além de um mero índice da hostilidade disseminada na sociedade, talvez revele que, mais do que sermos julgados por pessoas de critérios sórdidos, buscamos mesmo é não sermos julgados em absoluto. Ela talvez reflita, em última análise, a sobreposição do nosso desejo de nos sentirmos bem sobre o de sermos efetivamente bons – de uma aceitação incondicional e irrefletida do nosso modo de ser.

Crianças nos obrigam, de algum modo, a ser bons, pois efetivamente pensam algo sobre nós e são capazes de exprimi-lo por palavras. Diante deste fato, a frase “seja a pessoa que seu cão pensa que você é” pode até ser de algum modo compreensível, mas, em última análise, não faz sentido nenhum. Ela é uma transposição, para outro tipo de relação, de algo que só se dá entre humanos: é apenas diante da possibilidade de servirmos de exemplo para alguém – diante do olhar puro, mas racional, de uma criança – que nos motivamos realmente a sermos melhores.

É possível que esse mesmo anti-humanismo de fundo esteja também presente, quando se trata de pessoas que apoiam projetos de preservação de tartarugas marinhas e prestam simultaneamente apoio à causa do aborto. De fato, a harmonia do homem com a natureza tal qual apresentada pelo livro do Gênesis, o retorno a um estado paradisíaco, como o evocado pelas praias catarinenses (onde o projeto é sediado), é possivelmente um ideal jamais descartado de todo pela humanidade.

Porém, por mais que uma espécie inteira seja algo de si bom e digno de preservar, não se deveria dizer o mesmo de qualquer ser humano? Menos mal, no entanto, que tais seres humanos ainda tenham a ventura de serem capazes de reconhecer o que é uma espécie, pois há alguns que, a este respeito, há muito já passaram do ponto.

Mesmo frente a estes últimos, entretanto, especialmente nos desditosos casos em que porventura ocupem a posição de magistrados, talvez ainda reste como recurso defender judicialmente fetos humanos como “tartarugas trans”, analogamente ao que fez Sobral Pinto em sua defesa dos comunistas presos pelo regime militar brasileiro. (O célebre advogado invocou a Lei de Proteção aos Animais para argumentar que os presos não poderiam ser torturados).

O terceiro caso, o daqueles que são contrários à pena de morte, talvez seja o mais chocante e intrincado entre os aqui apresentados. Como é possível que alguém defenda a vida de um culpado ao mesmo tempo em que defende a morte de um inocente?

Seria possível argumentar que se trata de mais do mesmo: esta atitude reflete apenas uma humanidade que se deixa levar pelo seu lado sensível. Deixando-se levar pelo sensível, deixa-se dominar pelo mais violento e, assim, tem como sua a pena do celerado sociopata que tem diante dos olhos, mas não aquela aplicada ao feto no útero.

Porém, é possível que tal postura carregue ainda um certo resquício de humanismo, ainda que deturpado. Talvez se pudesse dizer que quando somos compassivos com o hipotético apenado, o somos enquanto seres sensíveis; e, quando lhe somos solidários, somo-lo enquanto culpados.

“O mundo está repleto de antigas virtudes cristãs que enlouqueceram.” G. K. Chesterton

No entanto, ninguém que sinta pena de um condenado e legitime a legalização e a prática do aborto defende a dignidade do condenado enquanto simplesmente homem – e por um motivo muito simples: se o fizessem, protegeriam também a dignidade do feto inocente. A indulgência da nossa sociedade com celerados e psicopatas é uma perversão do perdão, tirada provavelmente de uma falsa conclusão acerca da relação entre ser culpado e ser humano.

É certo que é necessário ser homem para ser culpado. Porém, daí vai uma grande distância a que seja necessário ser culpado para ser homem. A inversão dessa ordem e a noção de que é preferível poupar um culpado e condenar um inocente parecem ser consequências daquilo que certa feita afirmou Chesterton: “o mundo moderno está repleto de virtudes cristãs que enlouqueceram.” Elas enlouqueceram, “não porque perderam a razão, mas porque perderam tudo, menos a razão”.

De fato, sua lógica é implacável, mas é a lógica de uma ideia, de uma concepção que segue seu fluxo necessário rumo ao desastre – o mesmo tipo de lógica que, segundo Hannah Arendt, move as ideologias totalitárias. Arendt, estudiosa de Agostinho, autor da frase fallor, ergo sum (engano-me, logo sou), sabia que essa postura dedutiva apenas poderia resultar em desastre.

A postura agostiniana chegava à conclusão sobre o ser não a partir do pensamento, que, como sabemos, pode proceder até o infinito com base num erro, sem aceitar a dura réplica dos fatos, mas justamente desta. O ser existe além de mim porque está além do meu pensamento e lhe precede: é no contato com ele que ele se revela a mim, revelando-me a mim mesmo como ente, isto é, como partícipe do ser.

A postura paradoxal daqueles que se solidarizam com a culpa do criminoso se assemelha, de certa maneira, à de Santo Agostinho, pois, da percepção do erro, deduzem que são humanos. No entanto, julgam, de algum modo, que esse erro constitui a própria substância da sua humanidade, tomando o partido do culpado.

Por outro lado, tal postura não deixa de refletir de certo modo a posição de Descartes: cogito, ergo sum (penso, logo existo): apenas os que são capazes de pensar são culpados.

Neste sentido, aqueles que não o são também não seriam seres humanos como eu, e não seriam dignos de vida. Porém, é preciso não esquecer que, mais do que apenas o raciocínio, o ser humano também se caracteriza por sua inteligência. O ser humano, como diz Aristóteles, aspira naturalmente a conhecer. Como aquele que erra saberia que erra, se já não tivesse a menor ideia do que é o certo?

Essa ideia nos vem justamente pela inteligência. Para Aristóteles, o ser humano era naturalmente inteligente, pois o intelecto agente lhe conferia a capacidade de penetrar a realidade e extrair dali o que lhe era mais importante, as essências das coisas. Essa capacidade natural não necessariamente estava acompanhada da capacidade de definir aquilo que se conhecia.

Era justamente deste hiato entre a inteligência e a definição que se aproveitavam os sofistas que, por meio de jogos de palavras, confundiam as demais pessoas, em busca de vantagens particulares, afastando-as da verdade, ao mesmo tempo em que promoviam a si mesmos e a políticos com pretensões inescrupulosas.

A sofística partia do particular, para chegar ao particular: ao ressaltar detalhes em detrimento do todo, produziam em seus ouvintes uma visão fragmentária da realidade. A filosofia, pelo contrário, partia da unidade naturalmente inteligida e destinava-se à universalidade; partia do uno, em direção ao universal.

A filosofia da desumanização

No século XIV, uma nova corrente de pensamento passou a pôr radicalmente em xeque esta visão de continuidade entre a inteligência e a natureza. Seu nome era nominalismo, e sua essência consistia na negação de toda essência inteligível. Para seu fundador, Guilherme de Ockham, não há nenhuma realidade por trás da palavra ‘homem’.

Segundo ela, quando chamamos dois indivíduos diferentes pelo mesmo nome, é simplesmente porque existem determinadas características que são apresentadas por ambos, as quais reunimos, segundo nossos desígnios (daí o nome aequivocitas a consilio, isto é, chamar algo pelo mesmo nome de acordo com um desígnio), sob um mesmo conceito.

Não é que tais características estejam reunidas na realidade por um mesmo princípio, e apenas as identifiquemos: não – para os nominalistas, somos nós que as reunimos, na nossa cabeça, para nossa utilidade, sob um mesmo nome. Negar a inteligibilidade da realidade corresponde, de certo modo, a negar que Deus criou o mundo por meio de seu Logos. Não à toa, Ockham foi indiciado pelo reitor da Universidade de Oxford por heresia contra a Trindade.

A teoria de Ockham havia sido precedida, contudo, por outra doutrina, a de Duns Escoto. Ela era marcada pela ideia de pluralidade de formas substanciais no mesmo ente – assim, os seres humanos teriam uma alma vegetal (nutritiva), uma animal (sensível) e uma propriamente humana (racional) etc. Para Escoto, até a corporeidade seria uma forma substancial do corpo humano, pois o faria subsistir até durante algum tempo após a morte.

Este tipo de noção ecoava de certo modo o Agostinismo, mas também derivava de uma postura logicista, segundo a qual aquilo que era separável no pensamento era-o também na realidade. Assim, se a filosofia de Ockham separava o indivíduo da espécie a qual pertencia, a de Escoto encarava como separáveis atributos do homem que, em sua essência, formavam um contínuo.

Outro traço da doutrina de Escoto era seu caráter necessitarista. Ele derivava, de certo modo, de Aristóteles, mas por um acidente: a perda de todos os escritos do Estagirita, exceto alguns de lógica, durante a Alta Idade Média (aproximadamente entre os séculos VI e XI), tornou Aristóteles quase sinônimo de lógica dedutiva. Isto serviu de ocasião para o surgimento de um movimento de estudiosos que tomavam a lógica formal como parâmetro definitivo da realidade, os “dialéticos”.

Este movimento culminou, na figura de S. Anselmo (bispo de Canterbury na passagem do século XI para o XII), numa tentativa de explicar Deus e suas ações como fruto de uma necessidade lógica. Dela são exemplares escritos como o Proslogion (onde Anselmo apresenta seu famoso “argumento ontológico” para a existência de Deus) e o Cur Deus homo (que busca uma explicação logicamente necessária para a Encarnação).

Escoto, já no final do século XIII, repete o tipo de argumentação de Anselmo, só que em relação à moral: para ele, apenas os preceitos da primeira tábua dos Dez Mandamentos eram de Lei Natural, por decorrerem necessariamente da definição de Deus como Sumo amável (amarás o Senhor teu Deus etc.). Ockham o levou além: Deus poderia mandar até mesmo que o odiássemos, pois se o homem era capaz de fazê-lo, Deus era capaz de mandá-lo.

Foi justamente esse tipo de raciocínio necessitarista que Descartes herdou dos Jesuítas (que tinham em Suárez um herdeiro intelectual de Escoto) com os quais estudou La Flèche; e aqui é preciso recordar que, na filosofia de Descartes, a pluralidade de formas substanciais também está presente. Ela é menor em número, mas mais acentuada do que na filosofia de Escoto, já que para o francês corpo e alma, materia extensa e res cogitans, são consideradas como duas substâncias separadas (e não apenas duas formas substanciais).

Todas essas correntes de pensamento se manifestam, de alguma forma, nas atuais posturas a respeito da questão do aborto. A de Escoto, na ideia de que apenas somos realmente dignos de proteção quando nos tornamos capazes de sentir, ou se e quando desenvolvemos o órgão do pensar – e só então temos uma “forma humana” ou uma “alma humana”.

A de Ockham na ideia de que o conceito de homem é um mero amálgama de acidentes sobrepostos por nossa vontade, e não fruto de algo real, o que torna a distinção entre humano e não humano, ao fim e ao cabo, semelhante à distinção entre útil e inútil. A isto se une sua ideia de conhecimento por pura intuição: se minha empatia me leva a crer que meu cão é humano, então ele o é.

A postura de Descartes, a seu turno, traduz-se na ideia de que o ser humano é essencialmente uma coisa pensante, separando este de sua realidade corporal, algo que tem corolários desastrosos para além do aborto (toda tentativa do ser humano de manipular seu corpo como se fosse outra coisa que si mesmo, basicamente, deriva disso).

A semelhança entre todas essas formas de pensamento é, a toda evidência, uma negação da unidade da substância do ser humano, seja esta a substância primeira – unicidade de sua forma (Escoto, Descartes) –, seja esta sua substância segunda – do gênero humano (Ockham).

Por trás de tal negação, encontra-se, de certo modo, a do conceito que a inteligência naturalmente nos dá. Tal negação cinde a nossa realidade, que é concreta, nos elementos discretos que podemos separar, seja mediante uma operação mental – como a corporeidade, sensibilidade, racionalidade – seja mediante uma operação física – como o indivíduo (alguém, por acaso, já se deparou com uma espécie integrada por apenas um?), ou, posteriormente, com Galileu, o átomo, já que o homem é um ser de uma espécie determinada. Esse pensamento anticoncepcional – que nega a realidade do concebido – está em parte por trás do triste espetáculo do aborto que assistimos diante de nossos olhos. Graças a ele, as cisões do conceito de ser humano e da espécie humana cobram legitimidade, tanto na forma da mutilação de seres humanos concebidos ainda no útero, quanto no dilaceramento do gênero humano enquanto unidade de ordem e de amor a que é chamado, que começa nas salas dos abortórios e continua na violência das agressões armadas. Parte do combate à monstruosa realidade do aborto passa pelo reconhecimento disso.


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