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Bonum est diffusivum sui

Falsas ideias sobre o bem comum

C. C. Pecknold
First Things

No exato momento em que a II Guerra Mundial devastava a Europa, vários intelectuais católicos estavam envolvidos em um fascinante debate sobre a pessoa e o bem comum. Pode parecer esquisito que uma disputa intelectual tenha emergido no meio de uma guerra mundial, mas é precisamente em tempos de crise que as pessoas se deparam com os urgentes incentivos para reexaminar seus princípios fundamentais. Este debate está hoje em grande medida esquecido, mas ele deveria ser revisitado, pois ele lança luzes importantes nos nossos próprios debates políticos.

De um lado da disputa estavam os famigerados personalistas, tais como Jacques Maritain, que defendeu, em Scholasticism and Politics que a pessoa humana era a unidade fundamental da sociedade. “A primazia da pessoa” proporcionava tanto um padrão para a busca do bem comum e um poderoso contraponto contra as formas totalitárias de nacionalismo que disseminavam o terror no mundo. Personalistas como Maritain pareciam equilibrar de uma só vez dois pilares da doutrina social Católica — a dignidade da pessoa e o bem comum — e obtiveram ampla aprovação.

Seria de se esperar que do outro lado do debate figurassem defensores do nacionalismo, ou de um individualismo empedernido. Mas os debates nem sempre se encaixam nos modelos maniqueístas de bem e mal. A visão oposta vinha de um brilhante filósofo tomista chamado Charles de Koninck, decano de filosofia na Universidade de Laval, no Quebec. Embora ele originariamente escrevesse sobre filosofia na ciência, seu interesse se dirigiu então à visão de S. Tomás sobre o bem comum.

Em 1943, De Koninck escreveu um portentoso ensaio “Sobre a Primazia do Bem Comum, contra os Personalistas“, que causou estrondo no mundo católico. Embora de Koninck não mencionasse nominalmente autores como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Konrad Adenauer, intitular o ensaio como “contra os personalistas” foi uma estratégia retórica eficiente. Ele argumentava que a “falsa noção de bem comum” deles não representava nem um obstáculo ao totalitarismo, nem uma defesa apropriada do bem da pessoa humana. Na visão de De Koninck, os personalistas estavam fundamentalmente “de acordo com os erros que supostamente combatiam“.

O que preocupava De Koninck era o fato de que os personalistas refutavam o individualismo moderno com base em nada mais que a primazia da pessoa, “como se o bem comum não fosse exatamente o primeiro princípio pelo qual as pessoas deveriam agir.” Ele sustentava que tal abordagem, na verdade, não confronta o individualismo moderno, mas o reforça, e faz do bem comum algo alheio à pessoa.

Os personalistas opunham-se ao totalitarismo postulando que a pessoa é um todo substancial; todavia, ao fazê-lo, eles também adotavam uma versão da “noção totalitária de Estado” que eles alegavam confrontar. E por quê? Porque os regimes totalitários não são nada mais que “um singular mais poderoso em relação aos singulares que são pura e simplesmente sujeitados“.

A primazia da pessoa torna o bem comum algo alheio à pessoa e, ao mesmo tempo, exige que as pessoas sejam mantidas juntas por “um singular mais poderoso“. Por tal razão, De Koninck costumava chamar seus alvos inominados “personalistas marxistas“, embora ele se negasse a usar tal expressão para caracterizar Maritain, Mounier ou qualquer outro personalista francês.

Tal “falsa noção” do bem comum continua ubíqua em nossa própria época. A consequência desta falsa noção poderia servir para descrever o estado lamentável da política norte-americana, hoje. Afinal, uma sociedade constituída por pessoas que amam seu bem privado acima do bem comum, ou identificam o bem comum com o bem privado, não é uma sociedade de homens livres, mas de tiranos — “e assim o povo torna-se como um tirano” — que lideram uns aos outros pela força, e da qual a cabeça suprema não é ninguém menos que o mais astuto e forte entre os tiranos, sendo os demais meros tiranos frustrados. Esta rejeição do bem comum procede, em sua raiz, da desconfiança e do desprezo das pessoas.

Hoje em dia, encaramos o desafio de promover debates sérios sobre o bem comum — seja o de um conservadorismo ou constitucionalismo do bem comum, seja a economia do trabalhador. Esta dificuldade está radicada na falsa noção do bem comum sob a qual ainda operamos. Os que continuam cativos desta “falsa noção” encaram o bem comum, ao fim e ao cabo, como algo estranho ao bem particular das pessoas. Deste modo, o bem comum é sempre visto como algo que deve ser domado ou sobrepujado, em vez de algo radicado no nosso desejo natural daquilo que poderia nos aperfeiçoar e elevar.

Uma discussão mais elaborada sobre o bem comum hoje em dia exige de nós consideração à advertência de De Koninck. O bem comum não é algo alheio, mas conatural a nós como criaturas feitas para conhecer e amar. O cidadão virtuoso ama a república precisamente pela bondade que ela comunica a ele e a seus muitos vizinhos — é tamanho o bem desta república que ele está disposto a se expor ao perigo a fim de conservá-la e defendê-la.

De Koninck começou seu ensaio de 1943 por uma simples alternativa Aristotélica: “O bem é aquilo que todas as coisas desejam na medida em que elas desejam a perfeição.” A “primazia” deveria ser dada não à pessoa como tal, mas ao bem que todas as pessoas desejam, uma vez que tal bem é aquilo que é verdadeiramente bom para a pessoa.

Eu e você podemos amar este ou aquele bem particular — um smartphone ou um carro — mas este não nos aperfeiçoa da mesma maneira como nosso amor por nossa família, nossa cidade, nossa nação, nossa igreja, ou mesmo o amor pelo universo são capazes de fazê-lo. E é assim que deveria ser. Deus fez o mundo bom — e muito bom. Sua bondade é difundida por toda a criação. Portanto, quanto maior o bem comum, mais bondade ele comunica, e maior deveria ser o nosso bem por ele — seguindo a escala de bondade até o próprio Deus, que é a causa incausada de toda a bondade.

Precisamos partir do pressuposto que os bens que desejamos como pessoas dependem da primazia do bem comum da família, da cidade, do universo. De Koninck escreveu que “esta concepção certamente será rejeitada se se pensa na pessoa singular e no seu bem singular como raiz originária, como fim último intrínseco e, por conseguinte, como medida de todo bem intrínseco ao universo.”

Mas se rejeitamos a primazia do bem comum, se negamos a comunalidade do bem comum, e se negamos a bondade do bem comum, tornamo-nos como aqueles anjos caídos que queriam ser a fonte de sua própria luz, apenas para serem lançados nas trevas exteriores.

O bem comum nos eleva. Embora seja bom para nós amar bens particulares, o bem comum da família, da comunidade política, ou da igreja nos conclama a um amor muito maior pelo bem do que o amor que temos por bens particulares. Não somos capazes de inventar o bem comum. Ele é algo que constituímos, e que ao mesmo tempo é constitutivo de nós.

Como escrito por De Koninck, “o bem comum é essencialmente de tal modo que é apto a ser participado por muitos. Portanto, diante de tal bem, toda criatura racional está como uma parte. A ação livre tendente a um bem participado deve ser ordenada pelo próprio agente.”

Como escrito por Sto. Agostinho na Cidade de Deus, o bem comum (a república) deriva seu peso da comunalidade dos objetos do bem. Quanto mais comum é um objeto de amor, mais amável ele o é — e dado que Deus é o objeto de amor mais comum, aquele cuja bondade se difunde por todo bem comum e particular, Deus é o bem comum mais amável de todos.

É por isto que De Koninck insiste que “a negação da própria noção do bem comum e de sua primazia é uma negação de Deus. Ao negar a universalidade do bem ao qual o homem é ordenado, a pessoa nega a dignidade que o homem recebe de tal ordenação.”

Assim, a alegação mais poderosa de De Koninck é que a dignidade humana só pode ser defendida pela adesão à primazia do bem comum “expressamente ordenado a Deus. Sem uma “ordenação explícita e pública” a Deus, nossos debates acabam, ao fim e ao cabo, rebaixados a meros debates entre tiranos, e “a sociedade degenerada a um estado de paralisia e fechamento em si mesma“.

O debate entre Maritain e De Koninck não prosseguiu após a guerra. As questões especulativas acabaram por dar lugar às demandas práticas urgentes envolvidas na reconstrução da Europa. Em nossos dias, a pandemia nos revelou todo um mundo que está “paralisado e fechado em si mesmo“.

Mas ela também franqueou uma oportunidade para falarmos dos primeiros princípios novamente, de debater sobre verdadeiras e falsas noções do bem comum, e de insistir que a dignidade humana depende de Deus. Precisamos retomar este debate, e a boa nova é que, de fato, já o estamos fazendo.


C. C. Pecknold é professor associado de Teologia Sistemática na Universidade Católica da América.

First Things, todos os direitos reservados. Publicado com permissão. Link original: “False Notions Of The Common Good”.

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