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Legítima Defesa e Guerra Justa: aspectos histórico-filosóficos do uso da força

Continuação de: Um princípio que rompeu a unidade política da Europa

Ao longo da história humana, tem-se como regra geral que os homens defendam aquilo que é mais caro e importante para eles. A primeira urgência de defesa percebida pelos homens nos tempos mais primitivos dizia respeito, obviamente, à necessidade de se defenderem da ameaça às suas comunidades representada pela natureza selvagem.

À medida que este tipo de ameaça foi sendo debelada e as comunidades humanas foram crescendo em tamanho e em complexidade, os homens venceram a natureza externa, mas ainda tinham que defender suas famílias, bem como os princípios com que organizavam suas sociedades, dos outros homens. Mais tarde, surgiram as polícias e exércitos destinados a proteger a propriedade privada, os bens públicos, a pátria, a Igreja, a cultura, etc., contra toda sorte de ameaças internas e distúrbios, notadamente oriundos da própria ação humana.

Em muitas dessas situações, as pessoas puderam aprender muitas coisas que serviram como base para a construção da civilização: as virtudes heroicas, as estratégias militares, a compreensão dos planos do inimigo, o próprio modo como se organizar para se defender eficazmente. No entanto, desde os primórdios da modernidade, vem-se desenvolvendo uma corrente filosófico-política chamada ‘pacifismo’, a qual despontou mais visivelmente no século XIX, e cujo argumento central é que a violência não poderia ser empregada em nenhuma circunstância. 

“a violência é um recurso importante para que a justiça seja alcançada e não um mal em si mesmo”

Antes de entrar no conceito do que vem a ser o pacifismo, é importante que se esclareça o conceito de violência. A violência pode ser conceituada como todo ato físico ou psicológico contra alguém ou alguma coisa. Uma vez que a palavra foi definida, é possível compreender que ela se enquadra nos chamados atos humanos. 

Portanto, para que possa defender-se, é necessário que seja obedecida uma lei moral, caso contrário, incorrer-se-á em um ato ilícito e, portanto, contrário à justiça. Dentro desse contexto, pode-se analisar a utilização correta da força em duas formas: legítima defesa e guerra justa. A primeira refere-se à utilização da força enquanto pessoa, e a segunda, às nações. 

Para iluminar a questão sobre a legítima defesa, coloca-se em análise a questão 64, artigo 7 da Secunda-secundae, na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. O Aquinate faz a seguinte pergunta: “É lícito matar para se defender? ”. No processo de formulação da resposta, Santo Tomás nos traz a Doutrina do Duplo Efeito. Segundo essa doutrina, os atos humanos podem ter dois efeitos, antagônicos, do ponto de vista das consequências geradas, sendo que um efeito é bom e outro é mau.

Ora, como, então, é possível analisar a licitude do ato sendo que um dos efeitos é destrutivo em relação ao ente que sofre a ação? Essa é uma pergunta importante que ajuda a compreender que um dos componentes a ser analisado é a intenção. Por essa razão, quando se analisa um ato humano, é necessário compreender que a intenção da pessoa que age para se defender deve visar, a princípio, que não seja provocado dano ao agressor ou, ao menos, que ele não morra. 

A resposta da questão é formulada da seguinte maneira pelo Doutor Angélico:

“Assim, do ato de quem se defende pode resultar um duplo efeito: um, é a conservação da própria vida; outro, a morte do agressor. Esse ato, portanto, enquanto visa à conservação da própria vida não é, por sua natureza, ilícito; pois é natural a cada ser buscar conservar sua existência, na medida do possível”. (STh, II-II, q.64, a.7. resp)

Como se pode notar, a doutrina do duplo efeito tem como objetivo a manutenção e a conservação da vida da pessoa que está sendo atacada e, consequentemente, é necessário compreender que os atos humanos devem ser proporcionais para que esse fim seja atingido. 

Pensemos numa pessoa que está sendo agredida, por exemplo, por uma pessoa que está com uma faca. A pessoa que é objeto de ataque não poderá utilizar-se de uma violência superior para debelar o agressor. Parando-o com um só golpe ou tiro, não pode continuar golpeando ou atirando até matá-lo. De fato, se ela é nitidamente mais veloz que seu agressor, pode correr ou entrar em um recinto inacessível àquele, impedindo que ele a alcance. Ainda sobre a questão da proporcionalidade, Santo Tomás de Aquino diz o seguinte:

Um ato, porém, embora proceda de uma boa intenção, pode tornar-se ilícito se não foi proporcionado ao fim. Assim, agirá ilicitamente quem, para defender a própria vida, emprega uma violência maior do que necessário. Mas, se repelir a violência moderadamente, a defesa será lícita; pois, segundo o direito, repelir a força pela força é lícito, com moderação de uma legítima defesa”. (STh, II-II, q.64, a.7, resp)

Uma vez analisada a questão sobre a moralidade da legítima defesa, pode-se chegar a uma conclusão. A legítima defesa será lícita se ela tiver como objetivo impedir que o agressor continue com o ato de agressão e que a violência empregada seja proporcional. Somente assim é que o ato se torna lícito.

Portanto, um pai de família tem o direito e o dever de impedir que agressores façam mal à sua família, utilizando-se dos meios proporcionais. Observa-se que a violência é um recurso importante para que a justiça seja alcançada e não um mal em si mesmo. Fica claro, portanto, que a legítima defesa considera o uso da violência como instrumento para a debelar o mal e garantir a sobrevivência própria ou daqueles que estão correndo perigo.

No cenário da política e das relações entre as nações, tem-se uma situação análoga, que é a guerra justa. Ao se observar a História, nota-se que as guerras são uma constante e que, por conta dos estragos que ela causa, muitos intelectuais, moralistas e filósofos começaram a se perguntar se o uso da violência é lícito no contexto das relações entre as nações. Vale lembrar que o estudo da guerra é um dos pontos mais complexos na área de relações internacionais e segurança. 

Os filósofos gregos sabiam que a natureza humana era propensa ao mal e, como isso é fácil de se constatar pela própria luz natural da razão, eles sabiam que era necessário que houvesse instrumentos capazes de fazer com que as pessoas tivessem a liberdade para, então, exercer a virtude. No livro VII de sua Política, Aristóteles defende que as cidades devem possuir grupos que cuidem da defesa da cidade, não para que sejam capazes de escravizar outras cidades, mas para evitar que os seus próprios concidadãos sejam escravizados. Ou seja, o filósofo não descarta a utilização da violência como recurso de defesa da cidade.

Durante o tempo da Pax Romana, os romanos estabeleceram uma série de leis com o intuito de organizar o seu grande império e, também, as relações com os estrangeiros. Esse conjunto de normas é conhecido como jus gentium, o direito das gentes. Em seus artigos, fica evidente que a guerra, por ser considerada como uma instituição, pode ser empregada, mas dentro de alguns princípios que devem ser respeitados. Um dos maiores teórico do império, Cícero, argumenta em sua obra Dos Deveres (De Officiis) que a guerra deve ser utilizada para as seguintes finalidades: repelir uma invasão, retaliação à pilhagem ou à quebra de um acordo. Para que a guerra seja justa, ele ainda requer que ela seja declarada. 

“a agressão não-defensiva é, em geral, um ato contrário à paz e à justiça”

Porém, foi o cristianismo que deu as principais contribuições para a definição de uma doutrina sobre a guerra que abarcasse todos os elementos necessários para resguardar a moralidade do ato, bem como para ser empregada de modo a favorecer a justiça e não o despotismo. Observando a queda do Império Romano e das invasões dos bárbaros, Santo Agostinho percebeu que a barbárie é algo comum no decurso de uma conflagração bélica e, com isso, a destruição e a quantidade de mortes muitas vezes podem levar nações à beira do colapso. Sendo assim, Santo Agostinho elaborou uma doutrina completa a respeito da utilização da violência.

Na grande obra de Santo Agostinho, Cidade de Deus, no capítulo XIII, do livro II, o autor deixa evidente que a guerra deveria ser usada para a paz e condena o imperialismo, mostrando que a paz dos homens entre si deve proceder, ordenadamente, de iniciativas promotoras da concórdia.

De acordo com Agostinho, a paz é definida como a tranquilidade da ordem e, para que essa ordem seja instauradora de paz, é necessário observar dois princípios: não fazer o mal e ajudar os que precisam. O primeiro princípio está relacionado com a ideia de não matar e o segundo relaciona-se com a Caridade cristã que impulsionou a conversão do mundo e estabeleceu que a lei maior é a lei do Amor. 

Por isso, para que uma guerra seja justa em sua integralidade, é necessário que alguns critérios sejam observados.

  • 1 – Em primeiro lugar, é necessário que a violência seja aplicada para a defesa. Nisso consiste a visão de que a agressão não-defensiva é, em geral, um ato contrário à paz e à justiça.
  • 2 – Em segundo lugar, que os meios aplicados sejam proporcionais àqueles utilizados pelos agressores. Ou seja, não se pode usar um canhão para combater uma arma de pequeno calibre.
  • 3 – Terceiro, que haja condições claras de vitória contra o agressor. Aqui, o que está se buscando é o estabelecimento da paz e não o autoextermínio ou uma guerra interminável.
  • 4 – Quarto, que a guerra tenha sido declarada por uma autoridade competente. O chefe da nação precisa se responsabilizar pelo ato, bem como guiar a nação.
  • 5 – Quinto, que se tenham encerrado todos os meios prévios de busca de paz. Isto é, a guerra é lícita desde que os todos os recursos pacíficos para solucionar a questão já tenham sido empregados sem sucesso.
  • 6 – Por fim, que a guerra não cause mais dano do que aqueles que adviriam se ela não fosse empregada. Logo, ela precisa ser mais vantajosa para o Bem Comum que a sua abstenção.

Na Baixa Idade Média, Santo Tomás de Aquino resumiu os seis pontos de Santo Agostinho em três, o que aparece na questão 40 da Secunda-secundae da Suma Teológica: autoridade soberana, causa justa e promoção do bem.

Isso fez com que as questões fossem sistematizadas de forma a garantir que o soberano seja o responsável por conclamar uma guerra. A questão da causa justa repousa sobre a intenção daquele conflito, e a promoção do bem relaciona-se com a necessidade de colocar, em primeiro lugar, o Bem Comum, o qual tem na paz uma das suas mais precípuas condições de possibilidade.

Na modernidade, Francisco Suárez e Francisco de Vitória teorizaram sobre o direito internacional em um contexto de expansão dos Impérios Europeus e da relação deles com o novo mundo. Dentre as maiores preocupações desses filósofos, citam-se as seguintes: “Pode-se guerrear contra a população autóctone? Pode-se escravizá-los?”. Logo, esses escolásticos tardios começaram a dar vazão ao pensamento de que a população autóctone não precisava de um processo civilizacional, mas sim de uma adequação de costumes e moral.

“o mais importante, na visão moderna, é sustentar a ordem estabelecida por convenção, e não assegurar a moralidade da mesma”

Entre os séculos XVII e XVIII, a guerra continuou sendo vista como uma possibilidade, mesmo que a visão católica a respeito da guerra justa tenha sido um pouco deslocada, já que a Escola de Salamanca contribuíra para a sua secularização, sobretudo na pessoa de Vitória. A posição de Hugo Grócio era de que a guerra deveria seguir um plano específico e que as condições para o combate não poderiam se furtar à lei natural – ou seja, o fundamento para a ordem num cenário bélico deveria partir da razão.

Após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), a Paz de Westphalia utilizou-se da visão de Grócio para estabelecer a coexistência de nações católicas e protestantes na Europa. Por essa razão, houve o estabelecimento do princípio cuius regio, eius religio e, consequentemente, qualquer atuação que pretendesse romper com a ordem estabelecida na Paz de Westphalia, fosse justa ou injusta, deveria ser contida. Isso demonstra que o mais importante, na visão moderna, é sustentar a ordem estabelecida por convenção, e não assegurar a moralidade da mesma.

Após as Guerras Napoleônicas, em 1815, as nações se reuniram durante o Congresso de Viena para definir como a ordem internacional poderia ser restabelecida, uma vez que o período napoleônico gerou grandes turbulências em todo o mundo. Nesse contexto, surge a posição de Metternich, primeiro ministro da Áustria, que afirma que o necessário para a manutenção da ordem era o equilíbrio de poder, que deveria ser mantido para o estabelecimento da paz. Nesse sentido, as guerras só poderiam ser empregadas no intuito de manter o equilíbrio de poder. O que se visava era fazer que nenhum líder ousasse repetir a tentativa de Napoleão Bonaparte de conquistar militarmente a Europa inteira. 

O equilíbrio de poder continuou sendo a tônica no período posterior às Guerras Napoleônicas. Na primeira metade do século XIX, a Áustria, a Prússia e a Rússia criaram a Santa Aliança, cujo intuito era refrear as invectivas do espírito revolucionário contra a ordem social na Europa, o que acabaria também por afetar o equilíbrio preconizado pelo Congresso de Viena.

Para resolver os problemas estruturais, as nações se reuniriam em conferências para deliberar sobre quando a força seria utilizada. Exemplo cabal disso foram as reuniões de Aix-La-Chapelle e Tropau, que decidiram por intervenção nas revoluções liberais na Espanha. Já na segunda metade do século XIX, o equilíbrio de poder passou para os chamados “sistemas bismarckianos”, cujo intuito era garantir que a Alemanha recém-unificada tivesse força para poder sobreviver e evitar o revanchismo francês. 

Nessa primeira parte, o objetivo foi apontar o surgimento da ordem internacional, os seus elementos principais e os princípios norteadores da ação das nações em relação às guerras. No artigo seguinte, o objetivo será compreender o desenvolvimento histórico-conceitual do pacifismo, uma corrente ideológica que apregoa que a força não pode ser utilizada como instrumento político, bem como defende que as nações devem ser desmilitarizadas, levando a um estado de dificuldade para a manutenção da ordem interna, bem como da segurança internacional. 

Rodrigo Müller é internacionalista e historiador.


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