Gabriel Sydorak
É uma experiência recorrente para mim conversar com os amigos, sobretudo os mais velhos que eu, e ouvir a consternação deles, ou expressar a minha própria, quando algum casarão, testemunha das anedotas dos barões do mate ou de colonos de boa fortuna durante a Belle Époque desta capital, acabou sendo posto abaixo para satisfazer as especulações imobiliárias atuais com a construção de uma caixa de vidro horrenda.
Diz um de meus companheiros sempre que “a velha Curitiba está sendo apagada”. O desalento que isso causa a pessoas de espírito bem nutrido daquilo de melhor que a nossa civilização construía é o mesmo que se sente quando se acompanha como Richard Pipes desenvolve a metáfora que abre o seu livro (o maravilhoso e ponderado História Concisa da Revolução Russa [1]), a qual ele próprio emprestou a um autor francês que visitava a Rússia dos czares: “nações são como edifícios construídos ao longo de muito tempo e através de uma miscelânea admirável que harmoniza as técnicas e os materiais de várias épocas.”
Porém, a velha Rússia não foi o primeiro, nem o mais importante, casarão demolido pelos peões da mentalidade revolucionária para dar lugar a criações grotescas e de mau gosto.
Um século antes dos Bolcheviques iniciarem seu trabalho, os seus atuais rivais no ramo da demolição de civilizações já tinham sido a firma mais próspera deste setor. A Europa do século XVIII, como a Curitiba de três ou quatro décadas atrás, era o mosaico de edifícios nacionais construídos ao longo de séculos que, embora assistissem o crescimento e a mudança da paisagem ao seu entorno, não deixavam de ter a sua dignidade e sua integridade.
Os antigos regimes de todo o continente passavam por graduais reformas que são naturais em qualquer nação ao longo do tempo e permitiram um desenvolvimento material que nenhuma civilização concorrente conseguiu atingir, um processo chamado de Grande Divergência por alguns historiadores e economistas (2).
A despeito disso, o Ocidente estava para testemunhar um dos ciclos de convulsão política e social mais espantosos de que já se teve notícia na história: as revoluções liberais-burguesas, alimentadas pelo estranho desenvolvimento de uma mentalidade fanática que pretendia fazer tábula rasa das realizações humanas, cujo conjunto era tido como “opressor” e “intolerante” (apesar de, em civilização alguma, se ter dado uma tamanha margem para crítica social e divergência como existiu até mesmo no apogeu cultural do Ocidente católico), nas palavras de Voltaire, Rousseau e caterva.
A ironia é que a “libertação” só pôde acontecer com a submissão, sob mira de fuzis, dos oprimidos aos libertadores. Assim, em 1792, a Assembleia Nacional francesa outorgou-se o direito de intervir nas nações vizinhas para “libertar” os demais povos de regimes tirânicos. Como destaca Alexander Grab ao longo de seu livro Napoleon and the Transformation of Europe, a realidade foi que, ao mesmo tempo, os países invadidos pela França Revolucionária foram economicamente explorados em vista de manter o esforço de guerra francês (3), e a liberté foi imposta até a quem era de todo indiferente a ela, levando a sérias desarticulações sociais nos países invadidos pela França.
Ao longo dos anos seguintes, testemunhou-se a criação de inúmeros regimes-fantoches franceses por todo o continente tão logo os exércitos aliados fossem expulsos de um território. Na Bélgica, revoltas liberais paralelas às da França criaram os primeiros governos deste gênero e abriram as portas ao invasores; nos Países Baixos, os franceses fundaram, por suas próprias armas, o primeiro Estado-fantoche da República Batava, em 1795, depois de ocuparem todo o país; na Itália, cada palmo dos pequenos ducados conquistados pelos franceses foi transformado em uma república e anexado a outra quando da conquista de outros territórios, até o momento em que, com a fundação da República Partenopeana (1799), todo o país foi ocupado.
Além destes, também a Suíça sofreu, nos primeiros anos de um longo conjunto de guerras, uma ocupação total, apoiada por elementos subversivos de dentro do próprio país, que levou à criação da República Helvética. Ademais, a Alemanha teve, também, uma pequena parte de seus territórios invadidos e fez suas primeiras experiências de reforma imposta de cima para baixo.
Longe de criar problemas meramente econômicos e administrativos, as invasões francesas repetiram nos outros territórios a receita imoral e sangrenta que tinha sido provada pela França alguns anos antes: a descristianização. Os camponeses belgas foram os primeiros a sofrerem com o fechamento e demolição de suas Igrejas, assim como com a imposição do alistamento forçado no exército francês; em 1798, pegaram em armas contra os invasores e acabaram, em grande parte, mortos em combate ou executados após serem feitos prisioneiros de guerra; na Itália, as primeiras reações ocorreram em Pavia e na Romagna (1796); depois, a Páscoa Veronesa (1797; os italianos não resistiram à comparação com as Vésperas Sicilianas [4]) e, então, o célebre Movimento Sanfedista, que foi o mais vitorioso em suas operações no sul do país.
Estas Vendéias esquecidas, porém, não tiveram grandes sucessos, tampouco conseguiram impedir o retorno dos franceses por muito tempo. Sobretudo, elas foram pequenas em vista da maior desorganização que a guerra viria a causar em outros países. Na Espanha e em Portugal, as consequências da intervenção francesa foram catastróficas. Não conseguindo fazer frente aos invasores, os espanhóis assinam a paz em 1795, mas, sob coação econômica e militar, passam ao lado de seus inimigos no ano seguinte.
Entre a cruz e a espada, a Espanha vê a sua marinha mercante ser bloqueada e confiscada pelos ingleses, que agora estão do lado contrário na guerra; também vê sua marinha de guerra destruída pelos mesmos em Trafalgar (1805), e a insatisfação do povo alcançar as alturas contra Carlos IV, o rei incompetente e fraco, e Godoy, primeiro-ministro traidor e mais preocupado com o próprio cargo.
A nação também é gravemente insultada quando as tropas francesas, com a anuência do governo, recebem passe-livre pelo território para atacar Portugal, mas cujo número excessivo torna óbvio aos espanhóis que o real intento de Napoleão é ocupar o país. A lealdade dos súditos para com seu rei não resiste a tal prova, e uma revolta popular acaba depondo o soberano e o primeiro-ministro.
Pouco mais tarde, a revolta popular explode de Madrid para todo país: é o início da “úlcera espanhola”. Do menino ao ancião, os cidadãos pegam em armas, sejam fuzis ou facas de cozinha, contra os invasores, e acabarão sendo as vítimas destes em massacres que entraram para a história, por meio de pinturas ou relatos, como os mais assustadores da guerra.
Todavia, o fim da guerra não significou o fim dos problemas para o povo espanhol; foi apenas o prolongamento deles, pois os franceses atravessavam a fronteira de volta para seu país, mas seu fantasma possuiu a Espanha pelos próximos 120 anos. O Estado foi primeiro decapitado, depois desmembrado e dissolvido, e os novos órgãos governamentais, formados no calor do momento e com os escombros das antigas elites, não possuíam coesão alguma.
Entre aqueles que lutaram na guerra, encontraram-se lado a lado liberais e tradicionalistas, absolutistas e republicanos, católicos e ateus; nos anos seguintes, eles destruiriam seu país em lutas fratricidas: golpes de Estado, assassinatos políticos, conspirações, revoltas populares e guerras civis; o número delas, que devastou a Espanha pelas exatas mesmas razões de 1789, é incontável e se prolongou até terminar na Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Portugal, qual nação-irmã da Espanha, teve por isso mesmo um destino semelhante. O governo nacional também acaba, mas por acidente, decapitado, quando Dom João VI foge para o Brasil, pois, em seu lugar, o país permanece praticamente sob a ocupação militar britânica. Os filhos dos navegadores, cujos feitos foram cantados como aqueles dos heróis homéricos por Camões, não puderam aceitar esta humilhação.
Após algumas conspirações ocorridas nos anos após o fim da guerra, os portugueses, muitos deles indiferentes aos ideais revolucionários, mas comandados por membros de células radicais, se colocaram no primeiro impasse sério diante do governo legítimo de Portugal com a Revolução do Porto, que obrigou o regresso do rei e sua aceitação da primeira constituição portuguesa. A vitória liberal não foi aceita pelos absolutistas, que iniciaram suas reações com as revoltas da Vilafrancada (1823) e da Abrilada (1824).
Após o insucesso da segunda, a disputa entre as duas visões de país (e de mundo) prosseguiu até a eclosão da trágica Guerra Civil Portuguesa (1832-1834). Os anos seguintes não foram menos calmos; apesar de a segunda metade do século XIX testemunhar maior estabilidade, as intentonas estavam fadadas a ressurgir, como no caso das quarteladas e revoltas republicanas nos últimos anos do século e o funesto Regicídio de 1908, assassinato do rei e do príncipe herdeiro que evidenciaram que a monarquia portuguesa estava com os dias contados.
Ao fim e ao cabo, quando da primeira derrota de Napoleão em 1814 e de seu retorno a França, um povo que já não era confiável aos dirigentes do Congresso de Viena por ter executado seu rei e lutado até o último espasmo mostrou que, se recebera as tropas aliadas em Paris, foi a muito contragosto; o general republicano, auto-coroado imperador, que dissolveu toda a ordem ocidental como um ácido forte dissolve um sólido, foi recebido como Hércules no continente. Isso não passou de uma brincadeira para os aliados, que o derrotaram definitivamente pouco depois.
Napoleão não foi um demolidor vulgar como foram os sans-culottes que demoliram igrejas, profanaram túmulos de aristocratas e religiosos e causaram por isso mal-estar mesmo entre notórios revolucionários (5); ele arrasou até os alicerces toda a Europa e as Américas. A Península Ibérica estava destruída material e ideologicamente, e viu seus impérios escorrerem por entre seus dedos enquanto tentavam se salvar do jugo francês.
A Alemanha, mais feudal do que era no tempo de Carlos Magno, teve seus 300 Estados radicalmente reorganizados sob o comando da Áustria e da Prússia, que disputavam agora a liderança do processo de unificação alemã; a Polônia, aliada constante da França desde os primeiros segundos da guerra, foi varrida do mapa, e a Itália foi dividida entre um norte dominado pela Áustria, um sul governado pelos cambaleantes Bourbons italianos e um centro constituído pelos Estados Pontifícios, cuja aniquilação já era certa nos anos seguintes.
Ainda o fato de que Luís XVIII, quando voltou à França, teve de jurar sobre a carta constitucional e se viu abandonado pelo próprio exército quando Napoleão voltou, era a mostra óbvia de que os vencedores da guerra não podiam mais contar com seus próprios súditos. Os governos do antigo regime eram como a rocha que boia em um rio de magma volátil: tão logo este viesse a explodir, se mover mais violentamente, ou esquentar, o que restou da antiga Europa iria derreter, se partir, ou ser arrojada para longe.
Os ciclos revolucionários de 1820, 1830 e 1848 mostraram que mais perigosos que os fuzis de Napoleão eram os veteranos de várias nacionalidades que integraram seus exércitos, abriram as portas de suas cidades para os invasores franceses e traíram suas alianças para derrubar as antigas ordens; de volta a casa, muitos deles trabalhariam incessantemente para fazer o que o seu imperador não tinha conseguido. Os exemplos vão de norte a sul, de Fieschi a Chłopicki (6).
Eu diria, depois desta passagem em revista pelo maior serviço de demolição já visto, que, evidentemente, um especulador imobiliário que trata o patrimônio histórico curitibano com grande indiferença frente às demandas do capitalismo utilitarista moderno não causa tanto problema quanto os comandantes militares, diplomatas e políticos da epopéia revolucionária que, desfrutando de uma racionalidade de ação bem maior que a dos seus compatriotas das periferias de Paris, ainda assim consideraram valer mais a pena desconjuntar uma civilização inteira.
Nossos arquitetos com senso estético e criatividade infantis de hoje estão, de fato, mais próximos aos carpinteiros do Faubourg Saint-Antoine que, pensando com o estômago e ludibriados pela língua viperina de um Marat, não faziam mais que vandalizar a estatuária de Notre-Dame ou arrombar os túmulos reais de Saint-Denis e fazer uma gozação com o cadáver de algum príncipe que, após 500 anos de revigorante descanso, veio a ser amolado pelos súditos descontentes de seus netos.
Há, todavia, algum liame psicológico que une os demolidores de hoje aos demolidores do passado, mas não há muito mais a ser demolido nos dias de hoje. As nossas preocupações se voltam agora mais para as abominações que os arquitetos da destruição, financiados por grandes fundações e corporações globalistas, pretendem construir no lugar dos moribundos casarões da cultura ocidental dos quais quase não restam sequer as fundações (e para verificar isso, basta abrir os noticiários eclesiásticos ou culturais e constatar, muito melancolicamente, que voz alguma nos meios de produção cultural de hoje faz eco das melhores tradições da nossa cultura; pelo contrário, clamam pela aniquilação até das suas lembranças).
Gabriel Sydorak é professor e historiador.
NOTAS
- Publicado em segunda edição no Brasil pela BestBolso, em 2013, cuja leitura recomendo muitíssimo.
- Apesar de criado pelo cientista político Samuel Huntington, o termo alcançou maior amplitude com o estudo de Kenneth Pomeranz, The Great Divergence: China, Europe, and the Making of the Modern World Economy (2000).
- GRAB, Alexander. Napoleon and the Transformation of Europe. Palgrave Macmillan: Londres, 2003. Uma visão de conjunto sobre a desorganização e devastação generalizadas do continente que as Guerras de Revolução e do Império trouxeram.
- As Vésperas Sicilianas foram uma revolta ocorrida na Sicilia, na Páscoa de 1282, contra o governo do rei francês Carlos I, e resultaram na expulsão dos franceses e coroação de Pedro I como rei da Sicilia.
- O Abbé Gregoire, bispo juramentado e defensor da Revolução por toda vida, foi o criador do termo moderno vandalismo, ao se referir a destruição de patrimônio histórico realizada por seus correligionários durante o auge da Revolução.
- Giuseppe Fieschi, republicano fanático italiano, lutou no exército de Napoleão e foi o autor da cinematográfica tentativa de assassinato de Luís Filipe I, rei da França, em 1835. Józef Chłopicki foi outro veterano do exército napoleônico que lutou na Espanha e comandou a Revolta de Novembro de 1830, na Polônia, que foi suprimida pelas forças do czar Nicolau I.