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(POL) O conservadorismo contra si mesmo - paternidade planejada

O conservadorismo contra si mesmo: “paternidade planejada”

Por Christopher Lasch

Temos diante de nós uma questão: o conservadorismo cultural é compatível com o liberalismo econômico, a filosofia política do capitalismo?

Como a resposta dependerá, em primeiro lugar, do que se entende por conservadorismo cultural, proponho começar não com uma definição abstrata desse termo, mas com uma análise do modo como os valores conservadores se posicionam na atual controvérsia sobre o aborto — o melhor exemplo do conflito cultural que está polarizando a sociedade americana hoje.

Ao tratar da controvérsia sobre o aborto, Kristin Luker mostra que ela não se origina em especulações abstratas sobre os direitos do nascituro, mas em visões opostas a respeito da vida e, mais especificamente, em visões opostas sobre o futuro. Um ativista antiaborto declara:

Acho que as pessoas são tolas em se preocupar com as coisas do futuro… O futuro cuida de si mesmo.”

Outra mulher ativa no movimento pró-vida diz que “não dá para planejar tudo na vida”. Para as forças “pró-aborto”, no entanto, a “qualidade de vida” depende de uma paternidade planejada e de outras formas de planejamento racional para o futuro.

Do ponto de vista deles, é irresponsável trazer crianças ao mundo quando elas não podem receber toda a gama de bens materiais e culturais essenciais para uma competição bem-sucedida no mercado. É injusto sobrecarregar as crianças com deficiências na corrida pelo sucesso: sejam defeitos congênitos, pobreza ou deficiência de amor dos pais.

A gravidez na adolescência é censurável para os defensores do aborto legalizado, não porque se oponham ao sexo antes do casamento, mas porque os adolescentes, em sua opinião, não têm meios de dar a seus filhos as vantagens que merecem.

Para os opositores do aborto, no entanto, essa solicitude pela “qualidade de vida” parece uma decisão de subordinar os interesses éticos e emocionais aos interesses econômicos. Eles acreditam que as crianças precisam, no seu desenvolvimento, mais de orientação ética do que de vantagens econômicas.

A maternidade envolve um “trabalho enorme”, aos olhos deles, não porque implique um planejamento financeiro de longo prazo, mas porque “você é responsável, na medida do possível, por educá-los e ensiná-los… o que você acredita ser certo – valores morais, responsabilidades e direitos.”

As mulheres que se opõem ao aborto não estão convencidas de que a segurança financeira deva ser vista como pré-condição indispensável para a maternidade.

“A paradoxal coexistência, na mente liberal, de um individualismo ético associado a um coletivismo médico surge da separação entre sexo e procriação, que torna o sexo uma questão de escolha privada, deixando aberta a possibilidade de que a procriação e a criação dos filhos sejam submetidas a rigorosos controles públicos.”

“Os valores e crenças das pessoas pró-aborto se opõem diametralmente aos das pessoas pró-vida”, escreve Luker.

Ativistas pró-vida consideram a maternidade uma vocação exigente e não aceitam o menosprezo feminista do trabalho doméstico e da maternidade. Eles concordam que as mulheres devem receber remuneração igual para trabalhos iguais no mercado, mas não concordam que o trabalho doméstico não remunerado seja degradante e opressivo.

O que eles acham “perturbador na mentalidade abortista”, como um deles coloca, “é a ideia de que os deveres familiares – criar filhos, administrar um lar, amar e cuidar de um marido – são, de alguma forma, degradantes para as mulheres”.

Eles não acham nada convincente a ideia de que “não há diferenças importantes entre homens e mulheres”. Acreditam que homens e mulheres “foram criados de forma diferente e… que se complementam.”

As feministas de classe média alta, por outro lado, veem a crença em diferenças de gênero biologicamente determinadas como a base ideológica da opressão das mulheres.

Sua oposição a uma visão biológica da natureza humana vai além da alegação de que ela serve para privar as mulheres de seus direitos.

Sua insistência de que as mulheres devem assumir “controle sobre seus corpos” evidencia uma impaciência com restrições biológicas de qualquer tipo, juntamente com a crença de que a tecnologia moderna emancipou a humanidade dessas restrições e tornou possível, pela primeira vez, arquitetar uma vida melhor para as mulheres e para a raça humana como um todo.

Os defensores do aborto dão boas-vindas às tecnologias médicas que tornam possível diagnosticar defeitos congênitos no útero, e não conseguem entender por que alguém conscientemente desejaria trazer uma criança “danificada”, ou mesmo uma criança “indesejada”, ao mundo.  Aos seus olhos, a relutância em conceder a essas crianças o “direito de não nascer” pode ser considerada como evidência de inaptidão para a paternidade.

Para as pessoas do movimento pelo direito à vida, esse tipo de pensamento leva logicamente à engenharia genética em grande escala e denota uma presunção arrogante de que podemos fazer julgamentos sumários sobre a “qualidade de vida” que um bebê terá no futuro, ou de que temos o direito de classificar os bebês em gestação “defeituosos” como não-pessoas, assim como categorias inteiras de indivíduos considerados deficientes ou supérfluos.

Um ativista pró-vida cuja filha morreu de uma doença pulmonar se opõe à

ideia de que a vida do meu bebê, aos olhos de muitas pessoas, não teria sido muito significativa… Ela só viveu vinte e sete dias, e isso não é muito tempo, mas se vivemos noventa e nove anos, ou duas horas, ou vinte e sete dias, um ser humano é sempre um ser humano, e o que isso envolve está além da nossa compreensão.”

Talvez essa sugestão de que “está além da nossa compreensão” o que significa ser humano seja o que mais profundamente divide as duas partes no debate sobre o aborto. Para os liberais, tal admissão equivale a uma traição não apenas aos direitos das mulheres, mas a todo o projeto moderno: a conquista da necessidade e a substituição da escolha humana pelo funcionamento cego da natureza.

Uma fé inquestionável na capacidade da inteligência racional de resolver os mistérios da existência humana e, em última análise, o segredo da própria criação, une as posições aparentemente contraditórias dos liberais: a de que o aborto é uma “decisão ética privada” e o sexo uma mera transação ou “consentimento entre adultos”, mas que, ao mesmo tempo, o Estado bem poderia arrogar-se o direito de permitir ou não a gravidez ou mesmo de orquestrar programas de engenharia eugênica de longo alcance.

A paradoxal coexistência, na mente liberal, de um individualismo ético associado a um coletivismo médico surge da separação entre sexo e procriação, que torna o sexo uma questão de escolha privada, deixando aberta a possibilidade de que a procriação e a criação dos filhos sejam submetidas a rigorosos controles públicos.

A objeção [cristã] de que o sexo e a procriação não podem ser separados sem que se perca de vista o mistério que envolve ambos soam, aos ouvidos liberais, como o pior tipo de obscurantismo teológico. Para os opositores do aborto, por outro lado,

Deus é o Criador da vida, e… a atividade sexual deve estar aberta a isso… A mentalidade contraceptiva nega vontade d’Ele, ‘É a minha vontade [que prevalece na contracepção], e não a vontade d’Ele.’”

Se o debate sobre o aborto se limitasse à questão de quando um embrião se torna uma pessoa, seria difícil entender por que ele suscita emoções tão apaixonadas ou por que se tornou objeto de uma atenção política aparentemente desproporcional à sua importância intrínseca.

Mas o aborto não é apenas uma questão médica ou mesmo uma questão feminina que se tornou o foco de uma controvérsia maior sobre o feminismo. É, antes de tudo, uma questão de classe.


Christopher Lasch é Professor de História na Universidade de Rochester. Ele também é autor da obra The Culture of Narcissism and The Minimal Self.

First Things, todos os direitos reservados. Traduzido e publicado com permissão. Link para o texto original: Conservatism agains Itself


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