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Bonum est diffusivum sui

O liberal-totalitarismo em Uma Teoria da Justiça de John Rawls

(Segundo artigo da série O que é o liberal-totalitarismo)

Como dizíamos no primeiro artigo desta série, os escritos de John Rawls podem ser encarados como o exemplar contemporâneo mais representativo daquilo que se denominou pensamento liberal-totalitário. Este tem como ponto de partida, conforme já mencionado, o erro metafísico da abstração total. Ele se consubstancia, na teoria política – e, daí, pretende fazê-lo, na prática – em um projeto que tem por base o esquecimento da realidade e, por objetivo, a sua reconstrução a partir de abstrações do que são os indivíduos singulares.

Todavia, antes de iniciarmos as considerações sobre o projeto político do autor, talvez convenha ressaltar qual seja o aspecto mais propositivo dele, isto é, o ponto em que ele pretende se apresentar como uma superação do estado prévio nas discussões sobre o direito e a justiça.

Rawls contra o utilitarismo

No caso de Uma teoria da justiça, a proposta de Rawls consiste justamente em “apresentar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”[1], as quais, segundo ele, prescreveriam como meta da atividade social uma maximização do bem geral da sociedade, ou seja, da soma de satisfações desfrutadas pelas pessoas, sem atentar à maneira como estas seriam distribuídas entre elas.

Tomando por base essa afirmação acerca da teoria que pretende destronar, aponta como um dos propósitos declarados de seu projeto o de que “a violação da liberdade de poucos não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos”[2]. Segundo ele, daí se seguiria que “em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais”.[3]

Segundo Rawls, na teoria utilitarista, o legislador ideal agiria fundamentalmente como um empresário que deseja maximizar seus lucros, e isso se daria justamente em razão de que tal figura, ao calcular o saldo máximo de satisfação, que seria a meta das leis elaboradas, estaria estendendo indevidamente um princípio de escolha projetado tendo em vista um único ser humano para a toda a sociedade, fundindo todas as pessoas por meio de atos imaginativos do observador imparcial empático.[4] O utilitarismo, portanto, segundo o autor de Uma teoria da justiça, não levaria a sério a distinção entre as pessoas. 

“[RAWLS] enxerga a sociedade não como voltada para o bem comum, e sim para vantagens recíprocas”

Pois bem: Rawls pretende ter superado esse suposto vício fundamental da teoria utilitarista, ao formular uma teoria da justiça que, em vez de considerar os princípios de escolha de um único ser humano na sua totalidade – isto é, de uma pessoa singular –, apela, em vez disso, a princípios que serviriam a “qualquer pessoa selecionada ao acaso”[5]. 

Para tanto, ele se vale de um experimento mental chamado “posição original”, uma “situação original de igualdade” que “corresponde ao estado de natureza da teoria tradicional [i. e., iluminista, não a medieval] do contrato social” [6]. Nesta situação, “puramente hipotética”, as partes devem chegar a um acordo sobre os princípios de justiça, encobertas por um “véu de ignorância” [7] .

A pessoa, tal qual (des)caracterizada pelo autor nessa situação hipotética, não sabe “qual é o seu lugar na sociedade”, nem “as circunstâncias de sua sociedade”, isto é, “a posição econômica ou política, nem o nível de civilização e cultura que essa sociedade conseguiu alcançar”. Ela tampouco conhece “a própria sorte na distribuição dos dotes e das capacidades naturais… nem mesmo as características especiais de sua psicologia, como sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo”. Mais ainda, ela sequer conhece “a própria concepção do bem” [8]. 

Diante de tal formulação, fica difícil enxergar em que aspecto Rawls supera os utilitaristas e seu desrespeito pela distinção entre as pessoas. Afinal, se há algo que o chamado “véu da ignorância” ideado por Rawls para seus seres humanos hipotéticos na “posição original” faz, é justamente despi-los de todos aqueles elementos de modo (existência, história, circunstâncias), espécie (aptidões naturais, psiquê) e ordem (orientação a um fim) que fariam deles efetivamente pessoas. [9]

Neste sentido, não são pessoas. O termo ‘pessoa’, desenvolvido pela tradição cristã, de Tertuliano a Boécio, passando por Tomás de Aquino, “significa o singular nas substâncias racionais.” [10].

Aqui, “pessoa humana… significa aquilo que é subsistente nessa natureza e distinto por causa daquela distinção que cabe dentro da natureza humana, a saber, uma natureza determinada” [11] “E uma vez que sob a substância individual de natureza racional está contida uma substância individual – isto é, incomunicável e distinta das demais… é forçoso que… pessoa humana significa o subsistente distinto na natureza humana”. [12] 

Evidentemente, as “pessoas”, tais quais caracterizadas por Rawls, não têm nada (ou quase-nada) de pessoas. Elas sequer se relacionam entre si: são “mutuamente desinteressadas… não têm interesse nos interesses alheios” [13], são incapazes de auto-transcendência. Elas são, quando muito, meros “sujeitos morais transcendentais”, para fazer uma alusão a Kant, tão citado por Rawls.

“[ele quis] construir sua teoria da justiça sobre um mero contratualismo de indivíduos autointeressados na promoção de seus planos racionais de vida”

Como seria impossível que Rawls formulasse sua teoria sobre um inteiro vazio, ele acaba por incluir uma categoria para que seu sujeito moral transcendental possa servir para alguma coisa. “Ao aplicarmos os dois princípios de justiça à estrutura básica da sociedade, colocamo-nos na posição de certos indivíduos representativos e examinamos como o sistema social lhes parece” [14].

Deste modo, enquanto a teoria utilitarista clássica compreende, segundo Rawls, o sujeito moral como um empresário que deseja maximizar seus lucros, o próprio Rawls constrói sua teoria sobre “o grupo menos favorecido”, “cujas origens familiar e de classe são mais desfavorecidas que as de outras, cujos talentos naturais (quando desenvolvidos) não lhes possibilitam se dar tão bem, e cuja sorte no decorrer da vida revela-se menos feliz”. [15]

Porém, “tudo no âmbito da normalidade” [16], já que, na posição original “a sociedade deve tomar atitudes para ao menos preservar o nível geral das capacidades naturais a fim de impedir a proliferação de defeitos graves” [17]. Deste modo, a posição de Rawls a favor dos fracos e oprimidos acaba se revelando como uma posição a favor dos frascos de comprimidos, principalmente se forem abortivos e esterilizantes.

Rawls tenta também disfarçar o caráter indefinido de sua noção de pessoa, ao expressar que “o bem de uma pessoa é definido por aquilo que para ela representa o plano de vida mais racional a longo prazo, dadas circunstâncias razoavelmente favoráveis. Uma pessoa”, afirma, “é feliz quando ela é mais ou menos bem-sucedida na realização desse plano.

De uma forma breve, o bem é a satisfação do desejo racional. … um plano racional é aquele que não se pode aperfeiçoar; não há nenhum outro plano que, levando-se tudo em conta, seja preferível” [18] (esta concepção, como veremos a seguir, é fundamentalmente a mesma do utilitarismo). 

O significado da racionalidade do sujeito transcendental moral rawlsiano é “no sentido estrito… o mais comum na teoria econômica, de adotar meios mais eficazes para determinados fins” [19] Por isso, para Rawls, as “pessoas livres se consideram seres que podem rever e alterar seus fins últimos e que dão prioridade máxima à preservação da própria liberdade nessas questões.” [20].

Neste sentido, o principal plano do “sujeito transcendental moral rawlsiano” é poder rever o plano e alterar o plano o tempo todo. Parafraseando uma conhecida pérola do bestialógico brasileiro: nós não vamos colocar uma meta. Nós vamos deixar uma meta aberta. Quando a gente atingir a meta, nós mudamos a meta.

Evidentemente, isto tudo soa muito incongruente, ainda mais diante da afirmação de Rawls de que, “[a]ssim como uma pessoa deve decidir por meio de reflexão racional o que constitui seu bem, isto é, o seu sistema de fins, também um grupo de pessoas deve decidir, de uma vez por todas, o que entre elas deve ser considerado justo” [21].

Este ponto se revela especialmente problemático se levarmos em conta que, para Rawls, “São os direitos e os deveres definidos pelas mais importantes instituições da sociedade que decidem se os indivíduos são livres ou não. A liberdade é um padrão de convivência determinado por formas sociais. O primeiro princípio requer simplesmente que certos tipos de leis… permitam a mais abrangente liberdade compatível com uma liberdade semelhante para todos.” [22]  

Ora, se a prioridade máxima para o ser humano é a liberdade de rever e alterar fins últimos, e a sociedade deverá conferir prioridade a isto em suas instituições, parece lógico que a instabilidade institucionalizada das vidas individuais redundará em maior instabilidade na vida da sociedade. Evidentemente, esta ideia não se compagina em nada com a de fixar princípios de justiça de uma vez por todas.

Neste sentido, a “pessoa” rawlsiana, em sua afirmação cega da própria liberdade e interesse, tende ao nada, assim como o tenderá a sociedade que adotar seu princípio da “prioridade da liberdade”. Seu ideal de sociedade é, ao fim e ao cabo, niilista.

Mais utilitário que o utilitarismo

Outro aspecto em que a doutrina de Rawls se afasta ainda mais da verdade do que o faz o pensamento utilitarista, no campo da ética, diz respeito às relações entre o “justo” e o “bem”. Esta concepção está intrinsecamente relacionada com o conceito de pessoa. Aqui, é necessário precisar bem as noções que subjazem a estes termos, para que tenhamos alguma possibilidade de sucesso. 

Dentro da concepção utilitarista, o justo está ordenado para o bem, e nisto ela não está errada. Afinal, se tomarmos ‘bem’ na acepção de bem comum e ‘justo’ como bem do outro, é necessário que o primeiro prevaleça sobre o segundo, pois “o bem de um só homem não é o fim último” [23].

Neste sentido, o bem comum tem razão de fim último, e o bem dos particulares de fins intermediários, de modo que a justiça legal – que determina aquilo que os particulares devem ao bem comum – prevalece sobre a justiça comutativa – que determina o que os particulares devem uns aos outros em suas comutações – e também sobre a justiça distributiva, que determina os benefícios e encargos do bem comum que devem ser distribuídos aos particulares.

Em paralelo a isto, é importante constatar que o bem tem razão de fim. Neste sentido, o bem honesto é considerado o significado focal do bem, pois é o bem racional do homem. Aqui, este não é entendido no sentido preconizado por Rawls, isto é, de emprego de meios em vista de fins arbitrariamente determinados, mas no sentido do bem inteligível.

O homem, inteligindo a razão de bem honesto, de fim último, apreende, por analogia, os outros dois sentidos de bem. Um deles corresponde ao dos meios que é necessário empregar para sua consecução – este é chamado “bem útil” –; o outro, à fruição do bem alcançado – este se chama “bem aprazível” – que se segue a ele.

O que se deve recriminar na concepção utilitarista é simplesmente sua abordagem hedonista e, portanto, já que vimos que o prazer segue-se da consecução do bem, consequencialista do bem. O bem, para ela, não é o fim a se alcançar, mas o resultado que se segue a ele – isto é, a satisfação de desejos (mas, quantas vezes nós mesmos tivemos nossos desejos satisfeitos e percebemos, ao fim e ao cabo, não que era realmente aquilo que queríamos?). Segundo esta noção, a ordem jurídica é nada menos que um instrumento para a consecução das satisfações individuais. 

Assim, tendo-se como objetivo da teoria da justiça, do ponto de vista utilitário, a maximização de um bem que é imanente (não vai além do indivíduo), transitório (dura apenas o tempo da satisfação) e sensível, são indiferentes os meios pelos quais é alcançado e o modo como são distribuídas as satisfações individuais. Neste sentido, o utilitarismo prioriza a satisfação (o bem), em detrimento dos meios pelos quais é alcançada (o justo) e sua distribuição.

Entretanto, a teoria rawlsiana não se sai, nem tem como se sair, muito melhor nesse quesito. Afinal, a concepção rawlsiana de bem como satisfação do desejo racional, como exposta acima, é fundamentalmente a mesma do utilitarismo, já que o próprio Rawls interpreta “o princípio da utilidade… como a satisfação do desejo racional” [24].

Sua principal objeção à teoria da justiça utilitarista não tem a ver com o fato de ela buscar uma maximização de satisfações. A isto, ele apenas acrescenta uma preocupação com “o modo como essa soma de satisfações se distribui entre os indivíduos” e (em tese) “como cada pessoa distribui suas satisfações ao longo do tempo”. [25] 

Aquilo em que sua teoria se diferencia da utilitária, portanto, diz respeito à prioridade do “justo”. mas o que é, afinal, o justo “em si”, e o que significa sua prioridade sobre o “o bem”? Este trecho de Uma teoria da justiça parece sintetizar bem o pensamento de seu autor:

“na justiça como equidade o conceito de direito justo antecede o de bem. Em contraste com as teorias teleológicas, algo só é bom se, e somente se, combinar com modos de vida compatíveis com os princípios de justiça que já estão à mão. Mas, para definir esses princípios, é necessário se apoiar em alguma noção do bem, pois precisamos de suposições acerca das motivações das partes presentes na posição original…. A essa interpretação eu chamo teoria fraca do bem: sua finalidade é garantir as premissas acerca dos bens primários necessárias para se chegar aos princípios de justiça”. [26] 

Portanto, em sendo a finalidade pela qual é forjada a noção de bem, os princípios de justiça e as premissas nas quais eles se assentam passam a tomar, por esse mesmo motivo, a posição dele, pois o bem é aquilo que tem a razão de fim.

De igual maneira, ao servirem de critério para o banimento de “modos de vida” incompatíveis consigo, seus princípios de justiça informam a vida dos demais, constituindo-se em causa exemplar para a vida das instituições e em causa formal da vida das pessoas, por meio daquelas, já que, como reconhecido pelo próprio Rawls, suas consequências sobre a vida dos indivíduos são “profundas e penetrantes”, como se verá adiante.

Assim, antes daquilo que seria o bem aprazível (a satisfação do desejo), o autor coloca o bem útil (o sistema social que permite alcançar aquela). Neste sentido, Rawls é ainda mais utilitário que o utilitarismo, pois coloca no cume da sua hierarquia de bens o “justo”, que não é nada mais que aquilo que as “pessoas” na  “posição original” consideram instrumentalmente útil para que possam alcançar seus “planos racionais de vida”.

Rumo ao liberal-totalitarismo

Como visto acima, os dois princípios de justiça preconizados por Rawls são o princípio da prioridade da liberdade igual e o princípio da diferença. Estes princípios são recomendados pelo autor para a estrutura básica da sociedade, que nada mais é que “o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e os deveres fundamentais”.

Nestas, se incluem “a proteção jurídica da liberdade de pensamento e da liberdade de consciência, mercados competitivos, a propriedade privada dos meios de produção e a família monogâmica”. [27] Ela tem consequências na vida dos indivíduos que são “profundas e penetrantes, além de presentes desde o nascimento”, e “favorece alguns pontos de partida em detrimento de outros na divisão dos benefícios da cooperação social” [28]. 

Esta visão se traduz, na formulação dos princípios de justiça formulados por Rawls, e especialmente na do segundo, no objetivo declarado de “atenuar a arbitrariedade do acaso natural e da sorte social”. Embora a princípio ele dê a entender que essa “distribuição natural não é justa nem injusta”, ele argumenta contra estruturas que incorporam “a arbitrariedade encontrada na natureza”. Para o autor, o justo seria “ se valer dos acidentes da natureza e das circunstâncias sociais quando fazê-lo resulta em benefício comum” [29]. 

Esta concepção já soaria algo absurda. Afinal, não será um pouco excessivo pedir que absolutamente tudo que posso fazer em minhas circunstâncias para benefício próprio resulte em benefício comum, ao menos exteriormente? Contudo, Rawls vai ainda mais além dela, expressando a “idéia intuitiva” de que “a ordem social não deve instituir e garantir as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhor situação, a não ser que isso seja vantajoso também para os menos afortunados”. [30].

Uma vez que ele enxerga a sociedade não como voltada para o bem comum, e sim para vantagens recíprocas; e uma vez que “as desigualdades de berço e de talentos naturais são imerecidas, devem ser compensadas de alguma forma… exigem reparação”. [31] Neste sentido, o que a teoria de Rawls busca não é o benefício comum, mas a compensação de alguns, a ser obtida por meio da aplicação do princípio de oportunidade equitativa, o qual, lamenta, “só pode ser realizado de maneira imperfeita, pelo menos enquanto existir algum tipo de estrutura familiar” [32].

Essa compensação deverá ser dirigida às pessoas mais desfavorecidas. Assim, Rawls presume, estar-se-á promovendo o bem de toda a sociedade. Aqui, não se preocupa minimamente em comprovar seu ponto, contentando-se em “supor que as desigualdades de expectativas estejam ligadas em cadeia: ou seja, se uma vantagem tiver como resultado a elevação das expectativas da posição mais desfavorecida, elevará as expectativas de todas as posições intermediárias.” [33] 

Todos nós sabemos, contudo, que isso não é verdade pela própria experiência quotidiana: dentro da instituição ‘mercado’, não raro, grandes empresas, pelo seu próprio tamanho, quebram comerciantes menores, ao mesmo tempo em que vendem produtos mais baratos para as classes mais baixas.

Deste modo, a “tendência à igualdade” da Teoria da Justiça de Rawls parece consistir, sobretudo, num achatamento da distância entre a classe média e a classe mais baixa. De fato, ao formular sua ideia do que seja a classe desfavorecida, a postura do autor é “concentrar a atenção na distância social entre os que têm menos e o cidadão médio”. [34] 

Colocados, assim, em perspectiva, os dois princípios de justiça de Rawls, é possível concluir por sua pronunciada tendência a, pelo primeiro e mais importante (segundo ele) princípio, o da prioridade da liberdade, promover uma expansão da liberdade daqueles que têm modos de vida incompatíveis com as finalidades da natureza, em detrimento daquelas pessoas que vivem de acordo com ela e têm uma noção clara do seu fim último e o perseguem constantemente, isto é, daqueles que carecem realmente de um fim último, e cujo deus é o próprio ventre.

Isso se reflete, nos Estados Unidos, e no Ocidente, como um todo, na concessão do título de direitos a ações e modos de vida contrários à natureza – aborto, formas “alternativas” de família, pretensas modificações da própria identidade sexual –, a ponto, até, de, por exemplo, favorecer amantes, em juízo, em detrimento dos legítimos cônjuges.

Em segundo lugar, há também uma tendência, em, pelo segundo princípio, promover ao máximo as oportunidades daqueles que, por algum motivo, foram menos favorecidos pela sociedade, sem se importar, contudo, com seus reais méritos no desempenho das tarefas a que foram convocados. O que importa é apenas promover oportunidades, sem que haja um bem maior a perseguir.

Isso resulta, por evidente, na concessão de oportunidades a pessoas que não estão preparadas para aproveitá-las, em detrimento das que estão. Em relação ao sistema de cotas – e pensemos, aqui, no Brasil –, isto se reflete na exclusão, da universidade pública, não dos concorrentes oriundos das classes mais abastadas, mas sim daqueles de classe média baixa, cujos pais puderam, talvez com grandes sacrifícios, proporcionar uma educação um pouco melhor a seus filhos.

“a ‘tendência à igualdade’ da Teoria da Justiça de Rawls parece consistir, sobretudo, num achatamento da distância entre a classe média e a classe mais baixa”

No entanto, o pior efeito dos dois princípios tem lugar quando ambos os princípios operam de maneira conjunta. O resultado, como se tem visto recentemente, com a propagação da agenda ESG, é a promoção, em ambientes profissionais, não apenas de padrões de moral sexual imorais (já que aqueles que os adotam tendem a consumir muito mais do que as pessoas que se engajam na aventura de formar uma família conforme a natureza), mas também da ideia de que alguém pode se identificar publicamente como sendo do sexo oposto.

As medidas neste sentido, amiúde, são implementadas em prejuízo das pessoas naturalmente menos favorecidas – para nos restringirmos a um caso de menor gravidade, pense-se na inclusão de atletas “trans” em competições femininas. 

O objetivo rawlsiano de que sua teoria da justiça “neutralize os acidentes da dotação natural e das contigências de circunstâncias sociais… aspectos do mundo social que parecem arbitrários do ponto de vista moral” [35] tem por resultado uma pura e simples afirmação de uma vontade autointeressada e autorreferente, que escolhe sobre seu fim último e busca acima de tudo os meios para se auto-afirmar, consistentes em liberdades e oportunidades, em “um sistema de cooperação para vantagens recíprocas” [36].

Aqui, a dimensão de bem propriamente comum é perdida, e os títulos que seriam dados por natureza, história e Deus são sacrificados no altar da privação: da privação do fim último, na privação de uma família e de uma história pessoal, na privação de aptidões naturais e, por último, na privação da própria identidade sexual.

Esta lógica se resume, ao fim e ao cabo, numa negação do dom, que se resolve num moralismo negador do bem criatural pré-moral, em nome de uma moral voluntarista e autolaudatória. Ela tem se consubstanciado em nossa sociedade, na relação dos depravados endinheirados com as turbas manipuláveis de pessoas economicamente indispostas ou moralmente degeneradas (quando não ambas as coisas), por meio dos canais de comunicação em massa e das políticas de auxílio social que criam uma subclasse cada vez mais numerosa. [37].

 Cinquenta anos depois

Ao longo dos cinquenta anos que se seguiram ao lançamento de seu livro, determinante para o desenvolvimento recente da ideologia do Partido Democrata dos Estados Unidos, este foi “cada vez mais dominado por grupos de minorias e elites brancas – uma coalizão vista pela classe média como antipática a seus interesses e valores” afirma uma reportagem do New York Times. 

Assim, constitui-se contrariamente àquilo que é visto como o próprio esteio da democracia – a classe média – rumo a um totalitarismo que consiste numa afirmação cada vez mais agressiva de diferenças cada vez mais substanciais e arbitrárias, patrocinadas por agentes econômicos que concentram cada vez mais o poder econômico e cultural, de maneira crescentemente demagógica. [38] 

A relação de Rawls com o utilitarismo assemelha-se muito àquilo que disse Voegelin acerca do sofista Pólo, no Górgias:

“Ele é o tipo de homem que irá piedosamente louvar o governo do direito e condenar o tirano, mas que fervorosamente inveja o tirano e não amaria nada mais do que sê-lo um ele próprio. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano. ”[39] 

Contra a alegada “arbitrariedade da natureza”, supostamente promovida pelo utilitarismo e detestada por Rawls, impõe-se a arbitrariedade das convenções elitistas e minoritárias, a partir de uma concepção de igualdade como simples negação dos atributos positivos naturais, culturais ou sobrenaturais, e das finalidades a que se dispõem, em nome de uma afirmação da dignidade humana que se resume na simples capacidade de cooperar num esquema de vantagens mútuas – em suma, na capacidade de usar mutuamente o próximo. Uma das provas disso é a incapacidade de Rawls em ver o bem em si e o bem do próximo, definindo a inveja a uma atitude contra o bem alheio somente quando redunda em desvantagem própria. [40]

Ao fim e ao cabo, sua sociedade de indivíduos autointeressados acaba tendo por fim o mesmo de qualquer sociedade que, com ou sem preocupação com distribuição e os “direitos básicos”, se baseie no liberalismo. Ela não difere tanto, deste modo, em seus resultados, de uma sociedade aos moldes do liberalismo de direita de Hayek, aqui criticado pelo insuspeito jurista italiano Gustavo Zagrebelsky:

“assim se poderia produzir uma ordem espontânea… “livre” para a minoria (no sentido de ausência de limites para os direitos liberdade), mas injusto para a maioria. Uma maioria de homens separados de suas condições “naturais” de vida, manipulados em suas consciências, dirigidos, controlados e uniformizados em suas necessidades e consumo (não necessariamente no sentido de limitação material) e, até, num futuro próximo, uma maioria modificada por meio da tecnologia genética… cuja vida se tornaria progressivamente artificial”. [41]

Esta é, de fato, a sorte de todo individualismo. Ao pretender construir sua teoria da justiça sobre um mero contratualismo de indivíduos autointeressados na promoção de seus planos racionais de vida – que ao fim e ao cabo se reduzem ao plano de rever e mudar de fim último quando quer que lhes dê na telha – e mutuamente desinteressados – isto é, incapazes de auto-transcendência pessoal ou espiritual –, Rawls incorre em um reducionismo da justiça distributiva e da justiça legal à mera justiça comutativa. 

Em consonância com esse individualismo autorreferencial, a empreitada inteira de Rawls se resume numa petição de princípio, isto é, num argumento circular, como o próprio autor admite: “a justificação de tal concepção é uma questão de corroboração mútua de muitas ponderações, do ajuste de todas as partes em uma visão coerente.” [42].

Ao procurar encerrar num raciocínio circular sobre igualdade e liberdade a pretensão de reformular todo o sistema de instituições sociais e culturais baseadas na natureza e voltadas para a transcendência, sua visão se constitui como um exemplar acabado do adágio fiat iustitia, et pereat mundus (seja feita a justiça, e o mundo que se exploda). 

No próximo artigo veremos como o liberal-totalitarismo de Rawls se manifesta nas suas noções de “doutrina razoável” e “consenso sobreposto”, tal qual expostas em sua obra Liberalismo Político.


[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. (§ 5 O utilitarismo clássico), p. 26-27.
[2] Ibid. (§ 5 O utilitarismo clássico), p. 32.
[3] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 34.
[4] Ibid., p. 35.
[5] Ibid., (§24. O véu da ignorância), p. 169.
[6] Ibid., (§3. A ideia central da teoria da justiça), p.14.
[7] Ibid., (§3. A ideia central da teoria da justiça),p. 14-15.
[8] Ibid., (§24. O véu da ignorância), p. 166.
[9] S.Theologiae, Ia, q.5 , a. 5, co.: tudo aquilo que se diz bom, na medida em que é perfeito, é por isso apetecível, como se disse acima. Diz-se, pois, ser perfeito aquilo a que nada falta segundo o modo de sua perfeição. Ora, como cada qual é aquilo que é por sua forma, isto pressupõe alguma forma… para que algo seja perfeito e bom, é preciso que tenha alguma forma, aquilo que lhe são precondições e aquilo que se segue dela. É precondição da forma a determinação ou comensuração dos princípios, sejam materiais ou eficientes, e estes são significados pelo modo…. A mesma forma, por sua vez, é significada pela espécie, pois é pela forma que alguém se constitui na espécie. À forma, segue-se a inclinação ao fim… pois cada qual, enquanto é em ato, age, e tende àquilo que lhe convém segundo sua forma. E isto diz respeito ao peso e à ordem. Pelo que a razão de bem, na medida em que consiste na perfeição, consiste em modo, espécie e ordem.”De Veritate, q. 21, a. 6, s.c. 4: “Portanto, como a criatura é boa na medida em que se ordena a Deus, para que seja boa, são necessárias três coisas: a saber, que seja existente, que seja cognoscível, que seja ordenada. É, pois, existente por algum modo, cognoscível por sua espécie, ordenada pela ordem. É nestas três coisas que consiste o bem da criatura.”
[10] S. Tomás,  S.Th. I, 29, 1. co..
[11] Idem,  Super Sententiis, 1, 23, q. 1, a. 3, co..
[12] Idem, De Potentia, q. 9, a. 4, co.
[13] Uma teoria da justiça, (§ 3. A ideia central da teoria da justiça), p. 16.
[14] Ibid., (§ 16. Posições sociais relevantes) p. 113-114.
[15]  Ibid., (§ 16. Posições sociais relevantes), p. 116.
[16]  eod. loc.
[17]  Ibid., (§17. A tendência à igualdade), p. 129.
[18]  Ibid., (§ 15. Bens primários sociais como a base das expectativas), p. 111.
[19]  Ibid., (§3. A ideia central da teoria da justiça), p. 16-17.
[20]  Ibid., (§26. O raciocínio que conduz aos dois princípios de justiça), p. 185.
[21]  Ibid., (§3. A ideia central da teoria da justiça), p.14.
[22]  Ibid., (§ 11 Dois princípios de justiça), p. 77
[23] Santo Tomás de Aquino. S. Th. I-IIae, q. 90, art. 3, ad. 3: “bonum unius hominis non est ultimus finis”.
[24]  Uma teoria da justiça, (§ 5 O utilitarismo clássico), p. 31.
[25] Eod. loc.
[26] Ibid., (§ 60. A necessidade de uma teoria do bem), p. 490.
[27]  Ibid., (§2. O objeto da justiça), p. 8.
[28]  Ibid., (§ 16. Posições sociais relevantes), p. 114.
[29]  Ibid., (§17. A tendência à igualdade), p. 122..
[30]  Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença), p. 91.
[31]  Ibid., (§17. A tendência à igualdade), p. 120.
[32]  Ibid., (§ 12. Interpretações do segundo princípio), p. 89.
[33]  Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença), p. 96-97.
[34]  Ibid., (§ 16. Posições sociais relevantes), p. 117.
[35]  Ibid., (§3. A ideia central da teoria da justiça), p. 18.
[36]  Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 41.
[37]  Sobre os efeitos deletérios das políticas assistencialistas democratas sobre o tecido social Jennifer Roback Morse, Love & Economics, San Marcos (CA), The Ruth Institute Books, 2008.
[38]  The Vanishing Moderate Democrat – The New York Times
[39] VOEGELIN, Eric. Ordem e História: III – Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009, p. 87-88.
[40] Uma teoria da justiça, (§ 80. O problema da inveja), p. 656.
[41] Gustavo Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, 8a ed, 2008, Madrid, Trotta, p. 99.
[42] Uma teoria da justiça, (§4.A posição original e justificação), p. 25.

1 comments

  1. Se eu fosse querer mesmo ser chato, até seria capaz de encontrar algum detalhe insignificante para apresentar algum contraponto ao texto. Contudo, não quero. O artigo está excelente. Parabéns, Marcos!

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