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(POL) O que é o liberal totalitarismo – I

O que é o liberal totalitarismo – I


“La grande confrontation moderne est la confrontation avec le totalitarisme.”
Madiran, Jean – Le Principe de Totalité

O grande confronto moderno, como afirma Jean Madiran, na frase da epígrafe, é o confronto com o totalitarismo. O século XX esteve repleto de episódios desse confronto, com milhões de mortos, em campos de concentração e câmaras de gás, confisco de propriedade, humilhação, torturas (com ou sem experimentos científicos envolvidos) e valas comuns, fosse em nome de um nacional socialismo ou de um socialismo internacional.

Seja como for, características comumente atribuídas a ambos os movimentos são o seu flagrante autoritarismo e, o que não é menos importante, seu desrespeito às leis: regime de culto ao líder, partido único, execuções sumárias na calada da noite, subversão e duplicidade das instituições de governo, assassinatos, clandestinidade, ocultamento…

Houve, também, regimes autoritários no século XX, muitos dos quais nitidamente não poderiam ser qualificados como totalitários. Os governos autoritários, ao contrário dos totalitários, por exemplo, não são caracterizados por uma constante mobilização das massas e tampouco por um expansionismo indefinido do governo em matéria de regulação da vida privada. Como afirmado por Pierre Manent, é típico de um regime totalitário ser baseado numa ideologia, na qual ele pretende imergir por inteiro o viver dos que lhe estão sujeitos.

O governo autoritário, a seu turno, não pretende exercer um controle sobre as mentes dos indivíduos por meio de ideias. Poderíamos afirmar, com Jan Marejko, que o governo totalitário pretende apagar todo resquício de alteridade, a distinção entre comandante e comandado. Ele pretende, por assim dizer, mais do que uma imposição por meio das armas e das palavras de comando, uma imposição das próprias ideias. Seu objetivo é fazer que o outro adira a determinada visão de mundo; a simples obediência, aqui, não é suficiente.

Contudo, parece difundido no Brasil certo pensamento segundo o qual, embora seja verdade que nem todo o regime autoritário é totalitário, todo regime totalitário é necessária e previamente autoritário, e que, portanto, qualquer discurso que reforçasse o papel da autoridade constituiria um prelúdio inelutável ao totalitarismo.

Daí que muitas pessoas pensem ser o totalitarismo coisa do passado, ao mesmo tempo em que enxergam em coisas do passado – como o discurso populista e a atuação da bancada evangélica ou ruralista no Congresso Nacional – as maiores ameaças de totalitarismo. Mas serão mesmo verdadeiras tais associações de ideias?

Não parece que seja assim, por pelo menos duas razões. A primeira é que o totalitarismo de esquerda historicamente foi gerado a partir de um discurso libertador e emancipatório. Foi assim que, a partir do discurso de Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, bem como do de Karl Marx no século XIX, produziram-se as carnificinas Revolução Francesa e também a da Revolução Russa.

Logo, a predominância atual de discursos autointitulados “emancipatórios” nada depõe em favor de uma nova era isenta de totalitarismos; antes, pelo contrário, torna a iminência de desastre tanto mais provável quanto mais tal discurso busca dissimular, com palavras como democracia e direitos humanos, o caráter abertamente hostil de suas práticas e posições políticas.

A segunda razão é que as instituições do Ocidente, apesar de até há pouco tempo terem apresentado uma aparência de harmonia social, estão colapsando, e que o ‘rule of law’ do ‘estado democrático de direito’ tem se demonstrado insuficiente para manter a sociedade dentro de limites minimamente saudáveis de entendimento mútuo e amizade política. Como afirmou Solzhenitsyn acerca da democracia na América, no seu famoso discurso inaugural do ano letivo de 1978-79 na Universidade de Harvard, logo após ter mencionado o regime soviético, em que estava ausente o ‘rule of law’:

uma sociedade sem nenhuma outra escala de valores além da jurídica não é, igualmente, digna do homem. Uma sociedade que é baseada na letra da lei e jamais alcança algo superior lança mão de uma vantagem muito pequena dentre aquelas possíveis ao ser humano. A letra da lei é por demais fria e formal para exercer um influxo benéfico sobre a sociedade. Onde quer que a trama da vida humana se veja tecida por relações juridicizadas, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral, paralisante dos mais nobres impulsos humanos. E será simplesmente impossível resistir às provações deste século ameaçador somente com base numa estrutura juridicizada.”

Em suma, nada garante que um discurso “emancipatório” e a predominância de instituições e processos decisórios tais como a chamada ‘democracia representativa’ e o ‘rule of law’ consistam em algo, no primeiro caso, contrário, e no segundo, suficiente para fazer face ao totalitarismo, cujo fundamento filosófico se encontra para mais além desses fenômenos.

Afinal, como bem observado por Graneris “toda filosofia começa na metafísica e desemboca na política” (Contribución tomista a la filosofia del derecho, p. 129), e não é outro o lugar em que se deve buscar o fundamento último do totalitarismo. Ele toma por seu este seguinte nome: “abstração total”. A “abstração total” consiste num modo de abstrair que, tirando o universal do singular, se esquece que de que, em primeiro lugar, o singular estava ali.

A partir desse tipo de operação, começa-se a trabalhar sobre a realidade apenas a partir de ideias, sem reconhecê-la, e sem a ela retornar, por despicienda. É na “abstração total” que reside a fonte de toda ideologia, que se olvida do ato de ser dos entes, de sua presença real, para trabalhar com conceitos lógicos.

Essa postura metafísica (ou, talvez, antimetafísica) remete à Idade Média. Com Duns Escoto, que confundia os planos lógico e ontológico, os universais ganham uma realidade fora da mente que se estende a vários planos, resultando na pluralidade de formas substanciais. Deste modo, cada combinação de gênero próximo e diferença específica que, na árvore de Porfírio, poderia ser contado como substância, era também assim considerado quando notado como característica de um ente.

Assim, por exemplo, o ser humano teria várias formas substanciais em si, dentre as quais a animalidade, a corporeidade (para Escoto, o fato de o corpo subsistir por um tempo sem a alma era prova disso), etc.. Essa postura ganhou o nome de hiperrealismo (pois exagera a realidade das abstrações).

O nominalismo de Ockham, ao afirmar que os universais existem apenas na mente, pareceria resolver a questão, voltando o olhar do sujeito cognoscente para os indivíduos. Mas isso é apenas uma meia-verdade: a questão envolvida aqui não é a da realidade ou não dos universais, mas sim a da separabilidade entre todo e partes, isto é, a desconsideração da relação que as une.

Em Escoto, isto se reflete na ruptura da unidade da substância primeira (o indivíduo, na realidade da integração em si de diversas funções pelo intelecto); em Ockham, na ruptura da unidade da substância segunda (a humanidade, em sua realidade biológica e comunitária), pulverizada em uma multidão de indivíduos indistintos – já que ‘indivíduo’ é também um termo abstrato.

De certo modo, ambos se baseiam em duas realidades: no primeiro caso, a de que o ser humano pode sobreviver mesmo que separado de características que constituiriam sua humanidade, como a mobilidade, a sensibilidade e a razão; de outro, que o ser humano isolado é capaz de sobreviver por algum tempo mesmo que isolado de outros seres humanos. O que ambas perdem de vista, como o prova a artificiosa distinção de Escoto entre ‘simplicidade’ e ‘unidade’, é a transcedentalidade do ser: a de que, no limite, unidade, bondade e a verdade do ser (manifestada por meio de sua essência), se identificam.

O curioso nisso tudo é que, a sua visão individualista do ser humano derivada de seu nominalismo não impediu Ockham, na mesma linha de seu antecessor, Pedro de João Olivi, de fazer a defesa de uma espécie de comunismo, já que, para ele, a porção de subsistência de cada qual é mais bem assegurada quando a terra é de todos (embora devesse ser gerida pelos franciscanos) do que quando cada qual pode vender seus bens.

Evidentemente, isso pressupunha uma superioridade dos administradores (os franciscanos) sobre os demais. Neste caso, tal superioridade decorria do fato de os franciscanos, segundo a teoria de Ockham, estarem dotados da recta ratio (a reta razão). Esta característica se manifestava no fato de eles renunciarem às coisas supérfluas (pois tê-las seria algo irracional), atendo-se, assim, apenas àquilo que era necessário à subsistência.

Este necessitarismo, típico de um modo de pensar logicista, era, aliás, uma característica comum ao pensamento dos dois franciscanos do século XIV: tanto Escoto quanto Ockham, por exemplo, encaravam a obrigatoriedade dos preceitos da Lei Natural, tais quais estampados no Decálogo, sobretudo de maneira lógica. Assim, Escoto sustentava a necessidade dos preceitos da primeira tábua, os referentes a Deus, no fato de Este ser o sumamente amável por definição. Esta, em outra versão, ganhava uma conotação meramente lógica: seria impossível que Deus ordenasse que O odiássemos.

No caso de Ockham, porém, até mesmo esta impossibilidade cai por terra. Seu fundamento: uma liberdade divina que não se sujeita a qualquer tipo de necessidade, exceto a lei da não-contradição. Essa necessidade imposta pela lógica implacável de uma ideia é justamente aquilo que Hannah Arendt identifica como sendo o cerne do totalitarismo. É assim que a abstração total, típica de alguém que já se colocou, como os franciscanos, fora do mundo, ou, neste caso, fora da história, desemboca na formulação assaz representativa de Karl Marx, nas suas Teses sobre Feuerbach:

“Os filósofos tem somente tentado interpretar o mundo; chegou o momento, porém, para que ele seja transformado.” (tradução livre do original alemão: “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an, sie zu verändern.“) A divisa de Marx, no fundo, em pouco se diferencia das ideias de Francis Bacon e de René Descartes, que buscavam, mais do que entender o mundo, transformá-lo , e consiste, de certa forma, na conclusão natural da corrente de pensamento iniciada na modernidade.

Assumida a premissa mecanicista sobre o mundo como uma cadeia inexorável de eventos desencadeada por um movimento já iniciado, nada mais resta senão tomar posição em relação a ele. O ideólogo marxista pretende haver compreendido o sentido dessa cadeia, e pretende acelerá-la. Conforme afirmado por Hannah Arendt, “num perfeito governo totalitário […] toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história”.

A obra dos franciscanos, a propósito, muito contribuiu para que o raciocínio de Marx atingisse a popularidade que fez do Comunismo a doutrina mais discutida do século XIX. Aí se inclui certamente o próprio Ockham, cuja cosmovisão nominalista retirava a consistência ontológica dos entes criados, interpretando-os como meros amontoados de matéria, que se relacionavam entre si unicamente graças ao poder absoluto de Deus, e que ditou o tom intelectual da modernidade (não à toa, sua filosofia é conhecida como via modernorum).

Porém, também se incluem os espirituais franciscanos, responsáveis por radicalizar e popularizar a teologia da história de Joaquim de Flora, que mais tarde foi retomada e secularizada por um iluminista alemão do século XVIII cuja obra muito influenciou Marx, Ephraim Gotthold von Lessing.  

Outra manifestação do modus operandi da “abstração total” no mundo da política se reflete no fenômeno da representação, pela qual um partido (ou seja, uma parcela da sociedade), interpõe-se à sociedade-civil e o Estado, impondo, através deste, uma visão dessa a partir de um suposto exterior.

Ora, as diversas autoridades da sociedade civil não têm seu poder baseado na representação, e tampouco na liberdade (entendida como mero poder de escolha) e na igualdade, mas na presença, em vínculos constituídos e na preeminência: em outras palavras, elas não são, em grande medida, fruto de uma escolha subjetiva das pessoas sobre quem deve ocupar posições de mando, como uma cópia delas próprias (uma espécie de mínimo denominador comum); mas do reconhecimento de quem já está presente, com quem já me encontro em relação e que se me preleva. Baseia-se na superioridade de alguém que é sobretudo ele mesmo, cuja posição em relação a mim devo reconhecer – isto vale para os pais, os professores, os sacerdotes (que, neste caso, representam o Outro), os juízes (que no Brasil não são eleitos), etc..

Daí haver reparado Pierre Manent que: “Uma vez que num país democrático as circunstâncias deem ocasião à escalada totalitária, a sociedade-civil estará vulnerável, porque semelhante escalada totalitária poderá dirigir contra os poderes intrassociais a própria ideologia democrática, sem ter necessidade de recorrer à sua própria ideologia.

Mais precisamente, ela poderá utilizar o princípio representativo de uma maneira puramente instrumental. Contrariamente à opinião convencional, a ideia representativa enfraquece intrinsecamente a legitimidade da sociedade civil, e põe em perigo sua independência.” (Enquête sur la démocratie, p. 89, n. 1) As palavras de Manent dificilmente poderiam nos soar estranhas, no atual momento.

Dessa maneira, a confusão entre os planos conceitual abstrato e o ontológico – presente, por exemplo, na metafísica agostinista do tardo-medievo – traduz-se, na modernidade, na tendência à indistinção entre Estado, concebido como governo totalmente abstraído do seio da sociedade civil mediante o conceito de soberania, e esta mesma sociedade, na medida em que esse mesmo Estado se vale da soberania para a ela se impor como única autoridade legítima sobre todas as demais instâncias de autoridade.

Mas convém recordar que o fenômeno totalitário moderno – por mais que se o predique como essência de um Estado, e neste tenha sido efetivado historicamente – encontra sua justificação teórica exatamente na categoria em nome da qual os defensores do libertarismo pretendem confrontar o totalitarismo, e que eles adoram chamar de “a menor das minorias”. Esta categoria é, justamente, o indivíduo, posto por Hobbes como conceito axial da construção do Estado moderno contra o qual tais pessoas pretendem se insurgir.

Pouca esperança há de a situação atual política ser revertida, quando tantos pretendem combater o Leviatã justamente com os conceitos que lhe são opostos não como o meio-termo virtuoso, mas como o outro extremo vicioso contra o qual ele foi ideado como solução: homens em “estado de natureza” dotados de uma liberdade individual indeterminada (entendida como ausência de limitação exterior) e de um direito subjetivo (entendido como prerrogativa indeterminada de agir como bem se entende).

Essa percepção difusa de que o totalitarismo e a pós-modernidade não são senão a continuação óbvia das premissas da modernidade filosófica foi articulada pela escritora Chantal Delsol em seu livro La Haîne du Monde: totalitarismes et postmodernité  (O ódio do mundo: totalitarismos e pós-modernidade). Dentre as ideias-chave do livro está a de que vivemos em um período em que os mesmos objetivos propugnados pelos Estados totalitários, como a eugenia, são promovidos, não a partir do Estado – embora através dele –, mas por sujeitos particulares, e têm por objetivo uma destruição da realidade comum como tal.

Este modo de pensar remonta já à época da Revolução Francesa, e tem por exemplo cabal o Marquês de Sade, que “deslegitima a pena de morte quando ela vem do Estado, e a justifica quando ela é fruto de um desejo individual”. Tais ações de caráter e pretensões totalitárias têm sido movidas já não pelo Estado com suas leis, a partir de cima, mas por um hábil manejo da retórica jurídica a partir de conceitos destituídos de suficiência operativa, como os de direito subjetivo e liberdade individual – isto quando ambos não são sumariados na categoria camaleônica dos direitos humanos –, por aqueles “que recusam a existência de uma antropologia e de uma moral que nos precedem e nos transcendem”.

A fórmula expressa por Pierre Manent e o fenômeno descrito por Chantal Delsol correspondem em ampla medida à proposta de sociedade apresentada por John Rawls em suas famigeradas (ou, em todo caso, infames) obras Uma teoria da justiça e Liberalismo político.

A obra política de Rawls é o epítome da abstração total levada ao terreno da política. Tal postura está expressa, na primeira das obras acima, na formulação de uma teoria “fraca” do bem e, também, na prioridade do justo sobre o bem; na segunda, ela se consubstancia na pretensão de imposição paulatina de uma teoria “política, não metafísica” à sociedade. Estas duas obras serão o assunto do segundo e do terceiro artigos desta série.


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