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(DH) - Direitos Humanos como Excrescência do Verdadeiro Direito

Os “direitos humanos” como excrescência do verdadeiro Direito

Dando continuidade à nossa série sobre a invenção dos direitos humanos, vamos agora ver algumas críticas que já foram feitas a este conceito em nome de uma concepção mais clássica e autêntica do Direito.

O portal do UNICEF [1], que é um dos mais prestigiados órgãos da ONU (e também um dos mais ideologicamente eivados), afirma de forma peremptória que os direitos humanos

“são normas que reconhecem e protegem a dignidade de todos os seres humanos. Os direitos humanos regem o modo como os seres humanos individualmente vivem em sociedade e entre si, bem como sua relação com o Estado e as obrigações que o Estado tem em relação a eles.”

Não seria o caso de perguntar aos burocratas e ideólogos da ONU qual foi a nação democrática que conscientemente elegeu um instável e mal definido conceito iluminista – como vimos no primeiro artigo – como o critério supremo de dignidade e princípio regente de todos os povos? Ou qual é a legitimidade de uma identificação tão estreita entre o Direito – este, sim, digno de defesa – e os obscuros e instrumentais “direitos humanos”?

Michel Villey, ex-professor das universidades de Paris e Estrasburgo, constata em O Direito e os Direitos Humanos – sua obra mais famosa – que o próprio Direito, em sentido lato, padece modernamente de um desvio de compreensão e de fim. Para ele, os chamados “direitos humanos” não somente são uma invenção moderna como também não pertencem ao escopo do Direito no seu sentido primordial.

Entendido a princípio como uma ars, uma arte/técnica, o Direito foi criado para se aplicar, essencialmente, ao que é exterior ao homem, à justa distribuição das coisas (in rebus) partilhadas em sociedade. Essa ars juris não tinha a pretensão de moldar a política, a economia, as normas éticas e os costumes; tampouco conferia privilégios sociais a título de “reparação histórica”.

No mundo pré-moderno, “o direito só entra em cena se há litígio”. [2]

E sua finalidade não era outra senão a aequitabilitas, que Villey define como “uma igualdade não simples, dita aritmética, mas proporcional”, sendo que “o ofício jurídico é buscar uma proporção na partilha dos bens e ônus”. [3]

Recorda Villey que Aristóteles e os juristas romanos sustentaram essa compreensão mais precisa e adequada – porque essencialmente objetiva e distributiva – do Direito. Eles assumiam simplesmente que “os preceitos do Direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu”, nas palavras do jurisconsulto romano Ulpiano. [4] Tal definição liga-se historicamente ao conceito clássico de justiça: “dar a cada qual o que lhe é devido” ou agir em consideração ao “bem de um outro”. [5]

Logo,

“o direito nada mais seria, nesta interpretação, que a equidade na distribuição objetiva das coisas finitas e mensuráveis na civitas, isto é, dar a cada um o que lhe é devido na sociedade e impedir que usurpe o que não lhe é devido. Esta noção diverge, contudo, também do juspositivismo, pois o legítimo método jurisprudencial parte, para Villey, não da convenção, não da deliberação entre perspectivas subjetivas, mas da observação da realidade social objetiva, da natureza das coisas na cidade”. [6]

São Tomás de Aquino, por sua vez, soube conciliar a doutrina católica com essa concepção clássica do Direito, mantendo a sua aplicação naquela esfera estritamente objetiva. É fato que o mestre escolástico também promoveu o reconhecimento político das virtudes e das propostas mais exigentes da Ética cristã (filha da convergência entre a lei natural perceptível ao intelecto humano e a Lei de Deus revelada), mas isso não o levava, entretanto, a confundir a esfera da moralidade com a esfera da ars juris, resalva Villey.

Sobretudo, São Tomás evitou deturpar o Direito em função de interesses particulares. Para ele, a equidade prática que deveria orientar o Direito tinha, na lei natural, critérios civicamente mais básicos e universais do que as normas especificamente católicas. De um não-batizado não se poderia exigir, por exemplo, a profissão pública do Credo ou o jejum dos dias de preceito. 

O Aquinate interpretava que a lei moral orientada pelos preceitos do Evangelho não deveria adentrar na esfera do Direito, sendo este um domínio profano e do escopo da razão natural concedida aos homens por Deus. Pois, se a moral cristã é destinada às coisas eternas, à salvação universal das almas, a satisfazer Deus e cumprir uma justiça supratemporal, o Direito, por outro lado, se aplicaria apenas às coisas finitas e partilhadas entre os homens na terra.

Mas atualmente há Estados liberais que exigem dos seus cidadãos uma adesão absoluta a certos dogmas do credo progressista – a cada um dos projetos políticos e reivindicações da agenda LGBT, por exemplo. [7] E quem não adere a eles torna-se réu de algum tipo de lei recente que criminaliza quem resiste à moda de considerar como inegável “direito humano” todo comportamento discutível que, embora reprovado pelos adultos das classes médias e pelo trabalhador comum, seja apreciado pelo lumpenproletariado, por jovens universitários e pelas elites dominantes – do uso recreativo de maconha ao aborto de bebês indesejados.

Se, hoje, tais interesses distorcem e submetem ao seu talante o Direito – mesmo quando são patentemente opostos às normas mais universalmente reconhecidas do justo e da moral -, isso certamente pareceria ao autor da Summa um detestável abuso.

A jurisdicionalização da moral havia sido feita pela religião judaica na lei antiga, isto é, na tradição mosaica, com suas numerosas normas legais listadas na Torá, mas não era uma característica do cristianismo.

Essa distinção entre Direito e códigos morais particulares, no entanto, se perde na modernidade quando, na pena dos iluministas, certas necessidades subjetivas e certos valores de cariz humanitário são indevidamente incorporados ao Direito. A partir daí, o locus fundamental do Direito deixa de ser a realidade objetiva ajuizada segundo uma justa deliberação das coisas externas e devidas a cada homem, e passa a ser as aspirações e demandas dos “sujeitos de direitos”, isto é, dos indivíduos que o Estado reconhece como titulares de direitos – e o mais surpreendente é que este conceito não inclui sempre todos os seres humanos, pois historicamente já se excluiu dele pessoas de raças consideradas inferiores, deficientes físicos e mentais e, ainda hoje, nos países onde o aborto é legalizado, bebês em idade gestacional (nascituro).

Os pais filosóficos do Estado moderno quiseram que os D. H. fossem o garantidor da felicidade humana na terra. Com isso, adulteraram o direito natural dos antigos e medievais, corrompendo o fundamento do Direito ao apartá-lo de uma compreensão mais estável e objetiva da justiça e da lei natural, e o identificaram com “direitos” meramente subjetivos. 

Se, antes, sabia-se que era proibido matar outro cidadão porque isto é errado e injusto em si mesmo – porque o diz a razão e o mandamento divino -, agora presume-se que o homicídio é proibido apenas porque o outro cidadão tem o direito subjetivo de viver e o Estado o reconhece. O foco estava no dever moral de não causar dano a outrem, não no direito de alguém a isto ou àquilo. 

Stuart Mill, teórico do liberalismo, ensinou que a liberdade do indivíduo pode ir até o ponto em que ela não cause dano aos outros. [8] Ou seja, tudo me é permitido se eu, aparentemente, não estiver prejudicando ninguém.

Mas o paradigma moral anterior – a chamada “regra de ouro” do Evangelho – positivamente manda fazer pelos outros o que eu gostaria que fizessem por mim [9] – o que, logicamente, também implica não lhes fazer nada que eu não gostaria que me fosse feito.

Assim, o paradigma moderno dá apenas um limite, enquanto o tradicional dava um mandamento positivo. O foco estava no dever altruísta, não no “direito” egoísta. 

A esse respeito, Leo Strauss faz uma observação pertinente, distinguindo o que a concepção tradicional chamava de lei natural e o que modernamente passou-se a chamar por este nome:

“A lei natural tradicional é, primária e principalmente, uma ‘regra e medida’ objetiva, uma ordem que obriga e que é anterior à vontade humana e independente dela, ao passo que a lei natural moderna é, ou tende a ser, primária e principalmente uma série de ‘direitos’, de reivindicações subjetivas, originadas da vontade humana.” [10]

Se, antes, o fundamento do Direito repousava na natureza ou em Deus – que comunicavam o “justo em si” à consciência do homem -, agora é o indivíduo, com suas necessidades e demandas, que reivindica o “justo para mim”, “para a minha classe”, “para o meu partido”, “para o meu grupo identitário”, etc.

Neste cenário, dá-se ocasião ao reino do puro convencionalismo jurídico, onde os critérios do justo variam conforme o interesse em jogo, e acabam sendo, portanto, completamente relativos. Em tal reino, até ser um habitual maconheiro sem que isso o exponha ao risco de ser preterido numa seleção de emprego ou locação de imóvel pode ser declarado como “direito”. [11]

Mas e se você for um trabalhador autônomo e não quiser pegar um trabalho para pessoas cuja conduta seja um pecado contra a sua fé? Não pode! [12]

Rejeitar um candidato a professor particular para o seu filho porque ele vive uma sexualidade excêntrica? Nem pensar!

Os direitos dos empregadores, locadores, trabalhadores e pais não importam quando estão em jogo os sagrados direitos de uma “minoria perseguida”, certo?

Afastados os critérios de justiça fundados numa realidade objetiva, perene e estável, o despotismo de hoje pode vir a ser a “democracia” de amanhã. Então, como escreveu Hannah Arendt, torna-se

perfeitamente concebível (…) que, num belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria -, à conclusão de que, para a humanidade, como um todo, convém liquidar certas partes de si mesmas.” [13]

Ou, como reclamam os ambientalistas mais radicais, sacrificar uma parte dos seres humanos – talvez todos os bebês concebidos a partir de tal data – para “salvar o planeta”, em nome dos “direitos humanos das plantas e dos animais” (sic). Não está longe de ser cogitado.


Notas:

[1] Sigla para United Nations International Children’s Emergency Fund.

[2] VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 57.

[3] VILLEY, Michel. Ibidem, p. 56.

[4] Citado no Digesto do Corpus Iuris Civilis, código de leis compilado pelo imperador romano-bizantino Justiniano, no séc. VI.

[5] PLATÃO. República, 343. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, V, 1.

[6] SILVA, Luiz Henrique de M. O problema da filosofia política moderna em Leo Strauss. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (PPGFIL-UFPR), Curitiba: 2020, p. 169.

[7] A ponto de uma mãe de família ser perseguida judicialmente e presa na nação genitora do liberalismo (Inglaterra) por ser contra a mutilação genital de crianças que teoricamente nasceram no sexo errado: https://www.acidigital.com/noticias/catolica-denunciada-por-ativista-lgbt-e-presa-na-frente-de-sua-familia-97206 

[8] On Liberty, chapter IV.

[9] S. Mateus VII, 12.

[10] STRAUSS, Leo. A Filosofia Política de Hobbes, suas bases e sua gênese. São Paulo: É Realizações, 2016, p. 26.

[11] https://en.wikipedia.org/wiki/Cannabis_rights

[12] https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/quero-trabalhar-respeitando-minha-fe-diz-designer-crista-censurada-nos-eua/

[13] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 332.

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