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Bonum est diffusivum sui

Política raiz 2: servir ao bem comum, ainda que custe

Virgílio, o célebre poeta romano e um dos cânones da literatura universal, escreveu num dos versos da Eneida: “Tu nunca cedas ao mal, mas luta cada vez mais bravamente contra ele.”

Pois bem. A defesa do bem comum também diz respeito a essa luta persistente e aguerrida contra todas as formas de mal existentes – tanto no espírito de cada homem quanto no mundo externo, tanto na esfera privada quanto na vida pública. Não é possível servir ao bem comum sem combater simultaneamente os males que acometem as nossas comunidades. Mas o que é esse bonum commune que precisamos servir e defender?

No primeiro artigo desta série fiz o compromisso de destrinchar aqui, sem eufemismos, o que é o bem comum no âmbito daquela boa “política raiz” que devemos recuperar e promover. Este valor essencial da verdadeira política merece ser bem explorado e compreendido.

Assim, neste segundo texto, quero mostrar os elos do bem comum com a dignidade da pessoa humana, e também questionar se estariam ou não de acordo com este princípio certas decisões autocráticas de potentados federais que têm sido debatidas em âmbito nacional e que parecem se chocar frontalmente contra direitos fundamentais que são indissociáveis do bem comum.

Refiro-me à crescente censura ideológica das vozes conservadoras nas mídias, bem como à perseguição de oponentes políticos por parlamentares e juízes federais que vêm atuando como polícia política ou tribunal de exceção – seja sob os auspícios de uma “CPI da Covid” ou de um “inquérito das fake news” no qual o mesmo sujeito acusa, se vitimiza, investiga e julga os seus alvos. Deixarei para descascar este abacaxi, porém, nos parágrafos finais. Voltemo-nos, por hora, para o significado do bem comum.

Prefiro começar pela via negativa, deixando claro o que o bem comum não é. Certamente não se harmoniza com o bem comum aquilo que não condiz com a nossa natureza racional e não contribui para uma vida comunitária digna e favorável à realização humana. Ser tratado apenas como uma engrenagem do sistema de produção ou um consumidor massificado que o retroalimenta, em vez de um produtor livre e um agente social independente, é uma forma franqueada de desumanização, como entendia Hilaire Belloc. Logo, todo sistema socioeconômico que favoreça uma despersonalização dos indivíduos humanos é claramente contrário ao bem comum.

Nas escolhas particulares, todos os aparentes bens obtidos por vias desonestas – em detrimento do que é justo para a comunidade – deixam de ser, por essa mesma razão, bens humanos verdadeiros. Logo, uma fortuna adquirida através da fraude não é um bem real, uma vez que ela consiste num mal diante de outros bens maiores, como a justiça e a caridade para com os demais. O mesmo podemos dizer dos comportamentos nocivos que são, muitas vezes, romanceados e estimulados pela mídia de massas em músicas, séries e filmes consumidos sobretudo pelos jovens. A vida de Cazuza, por exemplo, não se tornou automaticamente admirável e digna de ser seguida por ter sido enaltecida num filme da Globo.

A verdade não é determinada por maioria de votos”, dizia o Papa Bento XVI. Do mesmo modo, o bem humano tampouco é definido pela propaganda da indústria cultural.

O bem comum é algo que precisa ser ativamente sustentado contra as ideias, decisões e vulgarizações que o ferem, em todas as esferas. Pois as empresas, pessoas individuais e também os mandatários públicos, por mais que se declarem a favor dele, nem sempre fazem escolhas sábias e judiciosas que concorram para o bem de todos e de cada um.

Sendo assim, como podemos definir positivamente o bem comum?

Pensemos na vida humana. Todo mundo reconhece que a vida é, em si, um bem natural e universal para o ser humano. Ninguém nega que isso esteja na nossa natureza, entranhado na nossa essência: o homem é um ser para a vida, não para a morte. É verdade que alguns filósofos existencialistas alemães inventaram que o homem é um “ser para a morte” ou “para o sofrimento”, mas deixemos esses desvarios pessimistas para uma outra hora. O fato é que a nossa natureza e nossa razão nos solicitam contínua e efusivamente para a vida.

Entretanto, o bem comum vai muito além do direito fundamental à sobrevivência. Nós não existimos apenas para sobreviver; somos chamados a uma vida qualitativamente grandiosa, plena de sentido! Lavoisier e Mendel não vieram ao mundo apenas para sobreviverem, crescerem até a vida adulta e, por fim, morrerem, mas para serem os pais da química moderna e da genética. Já estava neles, desde o início, a vocação e o potencial para serem os grandes cientistas que vieram a ser, assim como Usain Bolt nas pistas de corrida ou García Moreno na política. Embora cada homem tenha a sua vocação específica, todo homem nasceu para o bem e para a excelência na sua vocação.

É a natureza racional, social e espiritual do ser humano que testemunha a sua alta dignidade e aponta para os seus fins últimos, os quais coincidem com o desígnio do bem comum. Estes fins se ligam à realização das nossas melhores potencialidades, da nossa missão no mundo, missão esta que passa pela busca da sabedoria, pelo aprimoramento nas virtudes, pelo serviço caritativo ao próximo.

Têm eles a ver também com a nossa relação pessoal com o Bom Deus que nos criou e redimiu, com uma amorosa convivência em família, enfim, com a autêntica felicidade – que descobrimos ao buscar a excelência e que não se reduz aos prazeres fugazes que possamos obter neste mundo.

É inegável que o que é bom para o ser humano – em vista da sua realização final e de acordo com a especificidade da sua natureza –, é naturalmente bom para o comum dos homens, isto é, para todos nós. E é deste bonum commune enraizado na dignitatis personae humanae que se devem deduzir as normas sociais e o direito.

Por isso, o jusfilósofo brasileiro José Pedro Galvão de Souza afirmava:

“tem o homem um fim pessoal – a própria felicidade – que só pode conseguir com auxílio dos seus semelhantes, pelo que deve viver em sociedade, respeitando os direitos dos outros homens e satisfazendo às demais exigências da vida em comum.”

Neste sentido, bom para todas as pessoas é poder viver dignamente, trabalhar e conservar a gratificação pelo seu trabalho, associar-se com outras pessoas, cultivar amizades, formar família e educar os próprios filhos. Também é condizente com a nossa dignidade atuar na cultura e na política, desfrutar de um sadio lazer, informar-se e expressar-se politicamente sem sofrer represálias, ter direito à legítima defesa de si e dos seus, enfim, usufruir de todas as justas liberdades e direitos civis em paz e em coerência com os próprios deveres de estado.

Em suma, podemos afirmar que a noção da dignidade do ser humano é a base e o motor do propósito social do bem comum. São percepções correlatas. Reconhecer a grandeza do homem no cosmos nos permite enxergar a excelência à qual as sociedades humanas são chamadas! Por isso, promover uma política do bem comum não equivale a eleger uma ideologia histórica qualquer ou fazer uma opção partidária dentre as muitas que existem no espectro político. Trata-se simplesmente de tomar uma decisão: ser leal à vocação mesma da política, à sua própria razão de existência.

Essa decisão foi o que deu ao mundo ícones políticos da estatura de um Cícero, o sábio cônsul romano; de um Luís IX, o virtuoso rei francês; de uma Isabel do Brasil, a abnegada princesa que pôs o seu povo em primeiro lugar e aceitou o risco de perder o trono para libertar os brasileiros escravizados.

E não é sem propósito que cito aqui os exemplos um senador republicano da antiguidade, um monarca francês dos tempos da cavalaria e uma aspirante a imperatriz constitucional parlamentar falecida há menos de um século. Quero, com isso, ressaltar que o bem comum não somente é um princípio apartidário, mas que está acima também das diferenças históricas, geográficas e até do regime de governo adotado por um país em qualquer época. Pois, se a natureza das coisas e do homem é universal e atemporal, igualmente o são os critérios do bem comum.

É cabível, portanto, que coloquemos em questão, à luz deste princípio, os diversos problemas que estamos enfrentando na atualidade e que agridem patentemente a saúde da nossa democracia. Precisamos debater, por exemplo, onde foi parar a equidade democrática dos dirigentes que admitem a censura político-ideológica, permitindo que vozes e canais amplamente representativos dos valores da população sejam tolhidos, destituídos de suas fontes de sustento ou simplesmente banidos do debate público nas redes.

Não há verdadeiro compromisso com o bem comum onde há autoridades constituídas que pretendam impor um mal disfarçado regime “progressista” de pensamento único e de censura às verdades “inconvenientes”. O livre acesso à verdade dos fatos é um pressuposto do bem comum.

Por isso, é quase inacreditável, por exemplo, que existam parlamentes à frente da CPI da Covid que estejam mais interessados em bloquear a doação de recursos de particulares a canais de imprensa conservadores do que em investigar e punir os bilhões de reais desviados por gestores corruptos em plena crise da pandemia. Ou, também, que os aplicadores das leis e soi-disant “guardiões da Constituição” deixem de cumprir o seu dever legal para se transmutarem em superlegisladores e algozes de crimes de opinião.

Pior ainda é notar que as ameaças à liberdade de informação e de expressão vêm não apenas de agentes ativos do judiciário e do legislativo, mas também de um ex-presidente da república que é forte candidato a um novo mandato no executivo federal. Isso sem falar nas agências de fake fact-checking, nas milícias virtuais ligadas ao ativismo de esquerda e nas chamadas Big Techs, que hoje controlam o grosso das informações circulantes na internet e literalmente decidem quem pode e quem não pode ter voz nas suas grandes ágoras online.

Vemos autoridades públicas que, à revelia de tudo aquilo que se espera delas, se unem a “woke corporations como Google, Youtube, Facebook, Twitter e Instagram para impor medidas de discriminação e censura cada vez mais ousadas contra usuários, associações e empresas que assumam posições “politicamente incorretas”, questionamentos incômodos ou convicções conservadoras pró-vida nas suas plataformas. Paralelamente, o povo brasileiro presencia, estarrecido, o agravamento dos expedientes discutíveis de uma suprema corte de justiça que extrapola as suas atribuições constitucionais e se arvora em polícia política para enquadrar simpatizantes do presidente da república que são críticos das decisões do tribunal e acabam se tornando, por conseguinte, desafetos dos ministros.

Em tudo isso, podemos perguntar: onde está a reverência e o zelo dessas autoridades – que são, acima de tudo, servidores públicos – pela democracia e o bem comum? O que parece é que elas já não sabem mais sequer o significado de nenhum dos dois.


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