Joseph Pearce
The Imaginative Conservative
Em sua famosa conferência-ensaio “Sobre os contos de fadas”, Tolkien sustenta que os contos de fadas mostram um espelho para o homem, que eles nos revelam a nós mesmos. Uma maneira de testar a veracidade dessa sua afirmação é ver como suas próprias histórias, “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”, exibem um reflexo para a humanidade. Nós nos vemos nas histórias de Tolkien? Nós vemos nossos vizinhos?
Vamos examinar os vários rótulos antropológicos que colamos em nós próprios para ver se as várias facetas da humanidade estão presentes na Terra-Média.
O rótulo “científico” que damos a nós próprios, homo sapiens (“homem-sábio”), é evidente inadequado. Ninguém em sua plena consciência consideraria a sabedoria como a característica definidora da humanidade. Errando ao distinguir entre inteligência e sabedoria, os filhos do arrogante e autonomeado “Iluminismo” não queriam realmente dizer que a humanidade fosse sábia, mas meramente inteligente.
Eles não queriam dizer realmente que nós somos homo sapiens, porém homo technologicus. É interessante, portanto, que Tolkien faça a distinção entre sabedoria e inteligência em “O Hobbit”. Ele nos conta que “goblins… não fazem coisas belas, mas… muitas coisas inteligentes”:
Não é improvável que eles inventaram algumas das máquinas que desde então causaram problemas no mundo, especialmente os dispositivos engenhosos para matar um grande número de pessoas de uma só vez… mas naqueles dias e naquelas partes selvagens eles não tinham avançado (como se diz) tão longe.
Carentes de sabedoria, e admiradores da tecnologia em vez da virtude, os orcs atuais, na qualidade de homo technologicus, inventaram armas de destruição em massa, capaz de matar milhões de pessoas, como bombas nucleares e vírus artificiais.
Outro rótulo que foi colado no homem pela modernidade é o homo economicus, cujo papel a ser desempenhado é servir como produtor e consumidor de produtos comercializáveis. O homo economicus não tem um fim último, nenhum propósito, apenas uma função de comércio. O perigo dessa visão materialista e consumista está descrita em “O Hobbit” como a “doença do dragão”, que afeta aqueles que estão tão ligados às suas posses materiais que se tornam possuídos por elas.
Bilbo Bolseiro sofre da doença do dragão no começo da história. Ele é uma criatura de conforto viciada em coisas confortáveis e que se recusa a sair de sua zona de conforto, sua toca de hobbit. É por isso que Gandalf lhe diz que embarcar na aventura perigosa com os anões lhe fará bem. Ele precisa aprender a arte do auto-sacrifício, de dar sua vida por outros, que é a arte própria do amor, a fim de se libertar do apego às “coisas” e do vício em conforto.
O fato de que a missão foi bem-sucedida em curá-lo da doença do dragão fica evidente nas últimas palavras de Thorin, cuja doença do dragão prova-se fatal. “Se mais de nós valorizássemos comida, música e alegria partilhada, em vez de ouro”, confessa Thorin a Bilbo, “o mundo seria melhor”.
“Meu querido Bilbo!”, exclama Gandalf ao final da jornada. “Algo mudou em ti! Não és mais o hobbit de antes.” Gandalf está certo. Bilbo não é mais o mesmo. Ele descobriu que é muito mais do que meramente um homo economicus. Ele cresceu em sabedoria e amor. Ele alcançou aquela sanidade derradeira que os sábios chamam de santidade. Isso o torna objeto de desconfiança para os seus vizinhos mundanos, que são afligidos pela doença do dragão da qual ele se curou.
“Bilbo descobriu… que ele tinha perdido sua reputação… ele não era mais tão respeitável”. Tampouco ele se importava. “Lamento dizer que ele não ligava. Ele estava bastante contente; e o som da chaleira em sua lareira tornou-se para ele cada vez mais musical…” A chaleira soa mais doce porque agora ele a possui e não mais é possuído por ela. Ele alcançou o desprendimento das posses materiais que lhe permite se livrar das algemas que o homo economicus usa.
Uma outra face da humanidade que Tolkien nos mostra é o homo viator. Este é o entendimento cristão sobre a pessoa humana, cuja vida não é meramente uma jornada, mas uma aventura, e não só isso, mas uma peregrinação. O propósito da vida é crescer em santidade para que possamos chegar ao Céu. Não há outro propósito, nem outro objetivo. Ou temos sucesso nessa aventura até o Céu ou falhamos. Não há outro fim para a vida humana. Ou viveremos felizes para sempre, ou não.
Este aspecto da humanidade é evidente tanto em “O Hobbit” como em “O Senhor dos Anéis”, no sentido de que o chamado para o auto-sacrifício toma a forma de uma jornada perigosa pelo território inimigo. O sucesso na jornada somente é possível se o homo viator também é um anthropos, alguém que olha para cima, humilde e esperançosamente, com admiração, para a luz que transcende e ilumina todas as trevas. “Acima de todas as trevas, move-se o sol”, diz Samwise Gamgee em sua hora mais sombria.
Aquele que se recusa a olhar com admiração não consegue ver nada além de sombras e a escuridão atrás das sombras. Este é o homo superbus, o homem orgulhoso, que recusa-se ao auto-sacrifício necessário para a aventura, esquecendo a jornada e a alegria no final dela, para que possa satisfazer desejos viciantes. O homo superbus está possuído pela posse do Anel do Poder ou pelo seu desejo de possuí-lo. Ao buscar, egoisticamente, o auto-empoderamento, ele se golluminiza em seu orgulho, procurando aquilo que satisfaz, mas nunca sacia.
Tolkien está certo. Os contos de fadas mostram um espelho para o homem. Eles revelam-nos a nós próprios. Quanto ao Espelho da Terra-Média, ele se parece muito com a magia élfica do Espelho de Galadriel. Enquanto o espelho mágico, ou místico, da rainha élfica mostra “as coisas que eram, as coisas que são e as coisas que podem vir a ser”, o Espelho de Tolkien nos mostra quem nós somos, quem podemos nos tornar e quem nós somos chamados a ser. Mirar em tal espelho é perigoso; deixar de fazê-lo é ainda mais.
Joseph Pearce é colaborador sênior do The Imaginative Conservative. Natural da Inglaterra, o Sr. Pearce é Diretor de Publicação de Livros no Instituto Augustine, editor da St. Austin Review e editor da série das Edições Críticas Inácio.
The Imaginative Conservative, todos os direitos reservados. Publicado com permissão. Link original: “Tolkien Shows Us Ourselves”.