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(POL) Transumanismo – rumo a uma sociedade pós-humana (Parte 1)

Transumanismo – rumo a uma sociedade pós-humana (Parte 1)

Deividi Pansera

Mutação da natureza humana para uma sociedade que abole o homem. Rumo ao pós-humano. Por que precisamos prestar atenção a isso?

Transumanismo e o movimento da História

A História se move. O presente está sempre em movimento (independente da filosofia do tempo que você adote, pois todas elas, desde presentismo até eternalismo, assumem a existência do presente). Ninguém, de natureza criada, consegue controlar absolutamente o curso desse movimento na História, mas, ainda que com imprevistos (revoluções, contra-revoluções, dissidências etc.), consegue atuar como um motor do movimento histórico. O que seria, por exemplo, do século XX sem a Revolução Bolchevique de 1917? O que seria da Europa (e do mundo) sem a Igreja Católica? O que seria do Brasil sem a proclamação da Independência?

Bom, todos esses fatos históricos possuem um ponto em comum. Eles são eventos dentro de uma cadeia de eventos que foi causada por agentes do movimento histórico. Dentre os principais agentes do movimento na História, estão os grupos de intelectuais. Como exemplo recente e cujas consequências estamos vivendo até hoje, cito os intelectuais franceses pós-modernos da década de 60 da França. Suas idéias levaram ao famoso Maio de 1968 e a um conjunto de absurdidades (desconstrucionismo, relativismo, ciência como meta-narrativa totalizante, sócio-construtivismo etc.) vividas hoje em dia. Se você tem interesse no poder efetivo no movimento da História a partir das idéias, recomendo o livro As idéias têm consequência de Richard Weaver.

Dessa forma, uma das maneiras de você ter alguma previsibilidade sobre o que pode ocorrer no rumo dos eventos é acompanhar as idéias de grupos de intelectuais. Hoje, penso eu, um grupo que merece uma atenção é o grupo que advoga idéias transumanistas.

A tese transumanista

O termo transumanismo foi popularizado pelo biólogo eugenista, primeiro diretor geral da UNESCO, irmão de, veja bem!, Aldous Huxley, Julian Huxley (que foi um socialista fabiano). Em um artigo de 1957, Julian descreveu o transumanismo como:

“Até agora, a vida humana tem sido geralmente, como Hobbes a descreveu, «desagradável, brutal e curta»; a grande maioria dos seres humanos (se eles já não morreram jovens) foram afligidos pela miséria… superada… A espécie humana pode, se quiser, transcender a si mesma – não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui de um modo, um indivíduo ali de outro, mas em sua totalidade, como humanidade.”

Os Huxleys vieram de uma família de eugenistas e defensores fervorosos da Teoria da Evolução de Darwin. O avô de Huxley, Thomas Henry Huxley ficou conhecido como “o Bulldog de Darwin”. Foi ele, inclusive, quem cunhou o termo “Darwinismo” e abriu o caminho para as interpretações de “Darwinismo Social”, que foi usado para aplicar conceitos biológicos de “seleção natural” e “sobrevivência do mais apto” à sociologia e à política. Julian, portanto, sofre influência significativa dessa concepção darwinista presente na sua família e, com ela, formula a concepção de transumanismo.

Antes de continuar, um pequeno comentário. A teoria de Darwin possui uma rede de influências que se estende desde a Psicanálise (tanto em Freud quanto em Jung) até o Socialismo Fabiano (um importante agente histórico no século XX). Os fabianos possuíam uma idéia de evolução (e não revolução armada) social em direção ao socialismo – em certo sentido, essas idéias foram herdadas de Charles Darwin, por meio de palestras proferidas à sociedade fabiana pelo professor darwinista D. G. Ritchie, que possui um livro chamado Darwinism and Politics. O darwinismo, então, enquanto agente histórico, tem a sua parcela de responsabilidade no surgimento do transumanismo. Mas isso fica para um outro artigo.

Continuando, essa concepção de transumanismo do Julian Huxley difere acidentalmente da concepção que está em uso desde a década de 1980. É nesse período que o transumanismo começou a ganhar notoriedade e força enquanto movimento intelectual e que, paulatinamente, está se transformando em um agente histórico. Foi exatamente no começo dessa década que os primeiros transumanistas (aqueles que se auto-descreviam como transumanistas) começaram a se encontrar formalmente na Universidade da Califórnia, que acabou se tornando um epicentro intelectual do movimento. Em 1986, Eric Drexler, um estudioso de nanotecnologia molecular, publicou Engines of Creation: The Coming Era of Nanotechnology e fundou o Foresight Instituteuma organização sem fins lucrativos que advoga e performa criônica. Aqui, a longevidade por meio de tecnologia ganha força no pensamento transumanista. Em 1988, Max More e Tom Morrow publicaram o primeiro volume da revista Extropy Magazineuma espécie de revista para discussões e publicações de idéias transumanistas. Mais tarde, em 1992, More e Morrow fundaram o Extropy Institute, que encerrou as suas atividades em 2006, declarando que a sua missão estava essencialmente concluída e apresentando um plano estratégico para os transumanistas continuarem seu trabalho no futuro. More, por meio da revista e do instituto, desenvolveu uma das idéias centrais do transumanismo como ele é pensado hoje. Segundo o More,

“O transumanismo é uma classe de filosofias que buscam nos guiar para uma condição pós-humana. O transumanismo compartilha muitos elementos do humanismo, incluindo o respeito pela razão e pela ciência, um compromisso com o progresso e uma valorização da existência humana (ou transumana) nesta vida. […] O transumanismo difere do humanismo por reconhecer e antecipar as alterações radicais na natureza e possibilidades de nossas vidas resultantes de várias ciências e tecnologias […].”

Entretanto, a cartada final no pensamento transumanista como ele é visto hoje só ocorreu a partir de 1998, quando Nick Bostrom e David Pearce fundaram a World Transhumanist Association (hoje Humanity+), uma organização internacional não-governamental que trabalha para o reconhecimento do transumanismo como um assunto legítimo de investigação científica e política pública. E é graças a Bostrom, Pearce e à Humanity+ que, hoje, a tese transumanista pode ser expressa nas seguintes palavras:

“O transumanismo é o movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e a conveniência de melhorar fundamentalmente a condição humana por meio da razão aplicada, especialmente desenvolvendo e tornando amplamente disponíveis tecnologias para eliminar o envelhecimento e aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas.”

Ademais, é também graças à Humanity+ que há um Manifesto Transumanista, cuja última atualização é de 2020, e uma Declaração Transumanistaadotada pela organização em 2009 e elaborada, originalmente, em 1998 por intelectuais transumanistas como Doug Baily, Anders Sandberg, Gustavo Alves, Max More, Holger Wagner, Natasha Vita-More, Eugene Leitl, Bernie Staring, David Pearce, Bill Fantegrossi, den Otter, Ralf Fletcher, Tom Morrow, Alexander Chislenko, Lee Daniel Crocker, Darren Reynolds, Keith Elis, Thom Quinn, Mikhail Sverdlov, Arjen Kamphuis, Shane Spaulding e Nick Bostrom.

A tese transumanista, portanto, postula, no limite, uma mutação da natureza humana. Não é simplesmente aprimoramento de capacidades humanas, mas mutação do homem. Por isso o prefixo “trans”. No fundo, o projeto transumanista é uma evolução do projeto baconiano mecanicista. Ou seja, o controle absoluto da Natureza em prol do homem. Tudo isso com a tecnologia. O objetivo é a simbiose entre o homem e a tecnologia de tal forma que o resultado transcenda o homem; que o homem se perca no meio do caminho e uma nova natureza surja.

Variedades transumanistas

Como todo movimento intelectual, há uma variedade de opiniões dentro do pensamento transumanista, que, por meio dos seus intelectuais, estão em constante revisão e desenvolvimento. Todas alinhadas, é claro, com a tese central transumanista. Eis algumas das correntes distintas do transumanismo:

  • Transumanismo democrático: uma ideologia política que sintetiza democracia liberal, democracia social, democracia radical e transumanismo;
  • Equalismo: uma teoria socioeconômica baseada na idéia de que as tecnologias emergentes acabarão com a estratificação social por meio da distribuição uniforme de recursos na era da singularidade tecnológica;
  • Extropianismo: uma escola inicial do pensamento transumanista caracterizada por um conjunto de princípios que defendem uma abordagem proativa, por meio da ciência e da tecnologia, à evolução humana;
  • Imortalismo: uma ideologia moral baseada na crença de que a extensão radical da vida e a imortalidade tecnológica são possíveis e desejáveis, e defendem a pesquisa e o desenvolvimento para garantir sua realização;
  • Transumanismo libertário: uma ideologia política que sintetiza libertarianismo e transumanismo;
  • Pós-generismo: uma filosofia social que busca a eliminação voluntária do gênero na espécie humana através da aplicação de biotecnologia avançada e tecnologias de reprodução assistida;
  • Pós-politicismo: uma proposta política transumanista que visa criar um “Estado pós-democrático” baseado na razão e no livre acesso de tecnologias de aprimoramento às pessoas;
  • Singularitarismo: uma ideologia moral baseada na crença de que uma singularidade tecnológica é possível. E defende uma ação deliberada para efetivá-la e garantir sua segurança;
  • Tecnogaianismo: uma ideologia ecológica baseada na crença de que tecnologias emergentes podem ajudar a restaurar o meio ambiente da Terra e que o desenvolvimento de tecnologias alternativas seguras e limpas deve, portanto, ser um objetivo importante dos ambientalistas.

Perceba que, em certo sentido, muitas idéias transumanistas já estão sendo aplicadas e estão mudando radicalmente a ordem social. Cito, como exemplo, o pós-generismo. Além disso, na chamada Big Tech, tecnologias estão sendo desenvolvidas com idéias transumanistas subjacentes. Mais ainda, o discurso transumanista domina o vale do silício. Eu chego a imaginar os temas das conversas de corredores. “Após a colonização de Marte, que regime político devemos implementar nas colônias?” Ou ainda, “as crianças devem receber implantes para línguas estrangeiras?” Quem sabe, “devemos começar a falar sobre o direito dos robôs?”

O transumanismo como agente histórico está acontecendo!

Bom, como os filósofos da tecnologia dizem há tempos, a visão transumanista reduz com muita facilidade toda a realidade a dados, a informação a ser processada, o que leva à conclusão inevitável de que “os humanos não são nada além de objetos de processamento de informações”. Isto é, o transumanismo não passa incólume aos pressupostos filosóficos. E é sobre eles que, nos próximos artigos, tratarei com mais detalhe.

Por enquanto, preste atenção ao transumanismo!


*Publicado originalmente em Transumanismo – rumo a uma sociedade pós-humana (Parte 1).

Reproduzido aqui com expressa permissão do autor.

Deividi Pansera é escritor, doutor em matemática e cientista de dados.

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