O artigo que você está prestes a ler é uma tradução do IBC do primeiro capítulo do livro Utopia of Usurers and other essays, de G. K. Chesterton. Nele, você encontrará reflexões muito interessantes sobre a instrumentalização da arte para a obtenção do dinheiro. Pode-se dizer que é genial a intuição de Chesterton sobre o que se tornaria o marketing.
Arte e Propaganda
Gilbert Keith Chesterton
Sugiro, contando com a paciência do leitor, dedicar dois ou três artigos a profecias. Como todos os profetas de mente sã, sejam eles sagrados ou profanos, posso apenas profetizar quando estou furioso e quando penso que as coisas estão feias para todo mundo. E, assim como todo profeta de mente sã, eu profetizo na esperança que minha profecia não se torne realidade. Pois o vaticínio feito pelo bom profeta é como uma advertência dada por um bom médico. E o verdadeiro sucesso do médico acontece quando o paciente que ele havia condenado à morte retorna à vida. A ameaça é justificada no momento exato no qual é refutada.
Agora, eu disse reiteradamente (e continuarei a repetir sem exceção nas ocasiões mais impróprias) que devemos golpear o Capitalismo, e golpeá-lo em cheio, pela clara e definitiva razão de que ele está ficando mais forte. Muitas das desculpas que servem aos capitalistas como máscaras são, claro, as desculpas dos hipócritas. Eles mentem quando advogam pela filantropia; eles não sentem nenhum amor particular pelos homens, tal qual Albu [1] não sentiu afeição pelos chineses. Mentem quando dizem que alcançaram sua posição por meio de suas próprias habilidades organizacionais. Eles geralmente têm de pagar homens para organizar a mina, exatamente como pagam homens para descer nelas.
Eles frequentemente mentem sobre sua riqueza presente, tal como geralmente mentem sobre sua pobreza passada. Mas quando dizem que apoiam uma “política social construtiva”, eles não estão mentindo. Eles realmente apoiam uma política social construtiva. E nós devemos apoiar de modo igual uma política social destrutiva; e destruir, enquanto ainda está pela metade, essa maldita coisa que eles constroem.
O exemplo das artes
Proponho, agora, pegar em sequência certos aspectos e departamentos da vida moderna, e descrever como penso que eles se parecerão nesse paraíso dos plutocratas, nessa “utopia do ouro e do latão” que muito provavelmente parece ser o termo da grandiosa história da Inglaterra. Proponho dizer o que penso que farão nossos novos senhores, meros milionários, com certos interesses e instituições do homem, tais como a arte, a ciência, a jurisprudência, ou a religião – ao menos que ataquemos cedo o suficiente para impedi-los. E, por amor ao debate, tomarei nesse artigo o exemplo das artes.
A maioria das pessoas viram uma pintura chamada “Bubbles” [2], que é usada no anúncio de um famoso sabão. Uma pequena barra dele é introduzida no pitoresco desenho. E qualquer um com instinto para isso (o caricaturista do Daily Herald, por exemplo) imaginará que isso não era originalmente parte da pintura. Ele verá que a barra de sabão destrói a pintura enquanto tal; tanto quanto se a barra de sabão fosse usada para esfregar a pintura. Pequena como seja, ela quebra e confunde todo o equilíbrio dos objetos na composição. Não faço nenhum julgamento aqui sobre a atitude de Millais no caso; de fato, não sei qual foi. O ponto importante para mim, no momento, é que a pintura não foi pintada para o sabão, mas o sabão foi adicionado à pintura. E o espírito da mudança corruptora que nos separou da época Vitoriana pode ser mais bem visto nisto: que a atmosfera Vitoriana, com todos os seus erros, não permitiu, por princípio, que tal estilo de mecenato avançasse como coisa natural.
Michelangelo deve ter ficado orgulhoso por ter ajudado um imperador ou um papa; porém, de fato, penso que ele estava mais orgulhoso que eles por sua própria conta. Eu não acredito que Sir John Millais estava orgulhoso por ter ajudado um fabricante de sabões. Não digo que ele tenha pensado que isso é errado; mas que ele não ficou orgulhoso disso. E isso marca precisamente a mudança do seu tempo para o nosso. Nossos mercadores realmente adotaram o estilo dos príncipes mercantes. Eles começaram abertamente a dominar a civilização do Estado, como os imperadores e papas abertamente dominaram na Itália.
No tempo de Millais, em termos gerais, a arte deveria significar boa arte; e a propaganda deveria significar uma arte inferior. A cabeça de um homem negro, pintada como propaganda de graxa de alguém, poderia ser considerada um símbolo grosseiro, como uma placa de estalagem. O homem negro deveria ser apenas negro o bastante. Um artista exibindo a pintura de um negro deveria saber que um homem negro não é tão negro quanto ele o pintou. Esperar-se-ia dele que aplicasse milhares de tintas cinzas e marrons e violetas: pois não há tal coisa como um homem totalmente preto assim como não há um homem totalmente branco. Uma linha bastante clara separava a propaganda da arte.
O Primeiro Efeito
Eu diria que o primeiro efeito do triunfo do capitalista (se o deixarmos triunfar) será que essa linha de demarcação desaparecerá completamente. Não haverá arte que não poderá ser também um anúncio. Eu não digo que necessariamente não haverá boa arte; muitas delas serão, muitas delas já o são. Você pode, se preferir, afirmar que houve uma ampla melhoria na propaganda.
Certamente, não haveria nenhuma surpresa se a cabeça de um negro anunciando a Graxa d’Alguém fosse hoje em dia finalizada com cores tão sutis e cuidadosas quanto aquelas que um dos velhos e supersticiosos pintores teriam usado no rei negro que trouxe presentes para o Cristo. Mas o aprimoramento da propaganda é a degradação dos artistas. É sua degradação pela clara e vital razão de que o artista trabalhará não somente para agradar ao rico, mas apenas para aumentar suas riquezas; o que é consideravelmente um degrau mais baixo.
Afinal, era enquanto ser humano que um papa se comprazia com um desenho de Rafael, ou um príncipe, com uma estatueta de Cellini. O príncipe pagou pela estatueta; mas ele não esperava que a estatueta lhe pagasse. Tenho a impressão de que nenhuma barra de sabão pode ser encontrada em qualquer parte dos desenhos que o Papa encomendou de Rafael. E ninguém que conheça o cinismo mesquinho de nossa plutocracia, seu sigilo, seu espírito de jogatina, seu desprezo pela consciência, pode duvidar que o artista-publicitário geralmente servirá a empresas sobre as quais não terá nenhum controle moral, e sobre as quais não sentiria nenhuma aprovação moral. Ele trabalhará para divulgar medicamentos enganosos, investimentos suspeitos; e trabalhará para a Marconi [3] em vez dos Médici [4]. E para essa vil engenhosidade, ele terá de dobrar a mais honrada e pura das virtudes intelectuais, o poder de atrair a atenção dos irmãos, e o nobre dever de louvar.
Por ser essa pintura de Millais tão alegórica, ela é quase uma profecia sobre os usos que aguardam a beleza da criança por nascer. O seu louvor será de um tipo que poderá ser chamado corretamente de sabão; e os empreendimentos de um tipo que poderiam ser descritos verdadeiramente como Bolhas.
[1] Sir George Albu, magnata da mineração na África do Sul durante a ocupação inglesa. Possuiu uma das maiores minas de ouro do mundo. No período de 1904 a 1910 estima-se que cerca de 60 mil chineses trabalhavam nessas minas em condições análogas à escravidão.
[2] Pintura de Sir John Millais para a empresa Pears Soap. Uma bela pintura de uma criança sentada olhando uma bolha de sabão. No canto inferior direito está uma pedra de sabão com o nome “Pears”.
[3] A Marconi foi uma empresa britânica de telecomunicações e engenharia que abriu um processo contra Cecil Chesterton, irmão de Chesterton, após este emitir opiniões sobre o Escândalo Marconi .
[4] Família de banqueiros italiana dos séculos XV-XVIII e grande financiadora da arte renascentista.