Abaixo seguem dois escritos separados, ambos publicados pelo prestigioso periódico norte-americano First Things. O primeiro é a resenha da biografia do estadista português publicada pelo britânico Tom Holland, Salazar: The Dictator Who Refused to Die. O segundo é uma carta de Holland enviada à First Things, em que o autor comenta alguns pontos da resenha.
O autocrata benevolente
Helen Andrews
O sinistro e famoso personagem Salazar Slytherin, da série de ficção Harry Potter, teve seu nome inspirado em António de Oliveira Salazar, primeiro-ministro de Portugal de 1932 a 1968, a quem J. K. Rowling aprendeu a desprezar durante os dois anos em que viveu na cidade do Porto, no início dos anos noventa. Por outro lado, o diplomata norte-americano Dean Acheson considerava Salazar aquilo que de mais próximo se viu de um rei-filósofo no século XX. “Um libertário pode bem reprovar o Dr. Salazar”, escreveu Acheson, “mas tenho dúvidas se Platão o faria”.
Qual visão é a correta? Tem sido difícil aos anglófonos chegar a uma conclusão bem instruída, dada a escassez de livros sobre o tema. Agora, até que enfim, foi lançada por Tom Gallagher, professor emérito de Política na Universidade de Bradford, uma biografia acadêmica convidando à leitura sobre Salazar. Gallagher o retrata como um ditador, mas não um fascista; um católico, mas não um teocrata; um homem que possuía todas as virtudes de um cavalheiro, e quase, mas não todas, as de um estadista.
Salazar era um professor de economia que poderia ter vivido de maneira pacata durante muitos anos no corpo docente da Universidade de Coimbra, não fosse o fato de ele haver sido escolhido para chefiar o Ministério das Finanças durante a ditadura militar que chegou ao poder em Portugal, em 1926.
A situação do orçamento era tão deplorável, que se Salazar não tivesse sido capaz de consertá-la, o governo teria sido obrigado a pedir um empréstimo no exterior, o que provavelmente envolveria ceder o controle do orçamento do país a uma comissão estrangeira. Com a soberania do país em jogo e dada a escassez de conhecimentos econômicos dos generais da junta, Salazar se viu de repente na situação de ser alguém indispensável.
A Primeira República portuguesa, que havia sido derrubada pelo golpe de estado dos militares, havia sido um interlúdio infeliz. Durante os dezesseis anos que seguiram à abolição da monarquia em 1910, não foram criados nada menos que 44 ministérios. A Igreja Católica foi perseguida, com políticos locais proibindo procissões públicas e o dobrar dos sinos das igrejas.
Ao clero, foi proibido ensinar nas escolas, e foram oferecidos cargos públicos em troca da renúncia a seus votos. Ruas com nomes de santos e reis tiveram seus nomes substituídos pelos de livre-pensadores. O Natal tornou-se o “dia da família”. Padres foram mortos; conventos, incendiados; a capela mariana de Fátima foi bombardeada por terroristas.
Salazar pôs um fim à perseguição anticatólica. Nada obstante, comenta Gallagher, ele não restabeleceu os antigos privilégios da Igreja. O casamento civil foi preservado, e o divórcio foi proibido apenas para quem tivesse se casado na Igreja. A educação religiosa era obrigatória nas escolas, mas o catolicismo não era reconhecido como religião oficial.
Tampouco o governo pagava o salário dos sacerdotes, como ocorria na Espanha de Franco. O cardeal patriarca de Lisboa de longa data, Manuel Gonçalves Cerejeira, tinha sido amigo de Salazar desde os tempos de faculdade, de modo que esta relação dava à hierarquia uma voz nos conselhos do regime, mas também dava a Salazar a confiança para uma separação da Igreja, sabendo que seu velho amigo iria aliviar a barra com os fiéis.
O fato de Salazar não ter sido o líder de um regime explicitamente católico não significa, contudo, que ele tenha adotado uma ideologia secular como substituta para a religião. E isto, para Gallagher, é uma prova de que Salazar não era um fascista, pois enquanto seus contemporâneos na Alemanha e na Itália queriam politizar cada aspecto da vida; Salazar queria justamente o contrário. Ambos partilhavam da mesma desilusão com a forma parlamentar de governo – como se alguém em Portugal pudesse pensar o contrário após a Primeira República –, mas as semelhanças paravam por aí. Um emissário da Itália de Mussolini ficou boquiaberto com o fato de Salazar não fazer qualquer esforço para que o português comum “participasse da vida do Estado.”
Em parte, isto era uma questão de princípio para Salazar. “Esta boa gente que me celebra num dia, motivada pelo entusiasmo do momento, pode fazer um levante no dia seguinte por uma razão igualmente passageira”, disse ele, a um deputado. Em parte, isto se devia à sua personalidade. Ele detestava cerimônias, “correr para inaugurar coisas, etc.” e preferia trabalhar por trás dos bastidores, na solidão. Ele nunca se casou.
E teria sido difícil para Salazar agitar um movimento de massas, mesmo se ele o quisesse, dado que, na ocasião em que ele assumiu o poder, dois terços dos portugueses eram analfabetos – para se ter uma comparação, a Espanha, à época, tinha uma taxa de alfabetização de pessoas do sexo masculino acima dos 80%.
Portugal era, sob muitos aspectos, o país mais rústico da Europa. A política partidária que havia condenado a Primeira República estava restrita a uma minoria urbana. Nas áreas rurais, onde ainda vivia a maioria dos portugueses, era difícil encontrar alguém capaz de ler um jornal. Portanto, se é verdade que o fascismo era uma doença moderna, Portugal carecia das condições para contraí-la.
Salazar procurou governar essa terra de piedosos camponeses pela filosofia do corporacionismo, uma escola de pensamento derivada dos ensinamentos de Tomás de Aquino e das encíclicas de Leão XIII. Ela sustenta que os direitos pertencem, em primeiro lugar, aos grupos, não aos indivíduos, e que as classes sociais devem se esforçar para permanecer em harmonia, não em competição ou conflito, como no capitalismo.
Na prática, isto tomou a forma de uma câmara superior composta de representantes de várias comunidades, localidades e profissões (havia, por exemplo, um representante das belas artes e um dos pescadores). O governo fomentava sindicatos oficiais e associações de empregadores que se encontravam periodicamente para negociar salários, preços e condições de trabalho.
Este sistema cooperativo era apoiado pelo poder coercitivo da Polícia Internacional para Defesa do Estado (PIDE), a polícia secreta de Salazar. Em torno de 20 mil informantes civis mantinham-se atentos a potenciais atividades contrárias ao regime, desde planos de atentados a bomba pelos comunistas, até a organização clandestina de sindicatos. Ainda assim, para os padrões do século XX, a PIDE não figurava entre as polícias secretas mais temíveis da Europa. Ela sequer era competente o bastante para figurar. Um diplomata norte-americano recordava que uma vez seu consulado recebeu, por engano, um pedido de autoridades locais para instalar uma “linha de escuta” – um grampo telefônico. “É impossível liderar um estado realmente fascista quando você é ineficiente”, comentou.
O corporacionismo serviu bem ao propósito de elevar a qualidade de vida do português médio. A renda per capita dobrou nos dez anos após 1953. A taxa de alfabetização, opróbrio do país, chegou a 85% por volta de 1970. A estrada Lisboa-Porto ainda era uma modesta rodovia de duas pistas, mas Salazar estava disposto a tolerar um pouco de atraso. Ele poderia ter permitido mais investimento estrangeiro, mas preferiu sacrificar um modesto potencial de eficiência econômica em troca da preservação da independência de seu país e da dignidade dos trabalhadores cujo sustento teria sido tirado por força da competição estrangeira.
Comparem-se, por exemplo, os feitos de Salazar com o que seus herdeiros modernos foram capazes de realizar. Quando a Revolução dos Cravos suplantou o velho regime, em 1974, muitos acreditavam que Portugal iria rapidamente se equiparar ao restante da Europa Ocidental.
No entanto, após décadas de governos modernizantes, a agricultura e a indústria portuguesas ainda estão atrasadas se comparadas aos padrões europeus. Remessas de dinheiro de emigrantes continuam a ser um recurso crucial para a economia nacional. A única diferença é que agora Portugal tem uma dívida de bilhões de dólares com a União Europeia. A crise econômica de 2010 revelou o quanto de independência Portugal havia sacrificado, bem como quão prevalente ainda era a corrupção, com os amigos e contatos de políticos ganhando generosos salários de bancos e empresas estatais.
A crítica mais severa dirigida a Salazar, e que mesmo um biógrafo compassivo como Gallagher endossa, é a de que ele se apegou por tempo demais às possessões imperiais de Portugal. Salazar não tinha vergonha de seu império Africano. Portugal desde há muito já se orgulhava de ser a potência colonial mais ilustrada em questões de raça, e com certa razão.
Os portugueses eram encorajados não apenas a se estabelecerem em Angola e Moçambique, mas a se miscigenarem com a população local para criar um “novo Brasil”. Os espaços públicos eram integrados. Em Lisboa, os Estados Unidos fizeram do diplomata Clifton Wharton seu primeiro cônsul-geral negro, precisamente porque se esperava que os portugueses seriam mais receptivos a um diplomata negro que outros europeus, como de fato provaram sê-lo.
Mas as revoltas coloniais que começaram em 1961 eram mais do que o governo poderia aguentar. A frustração com uma guerra que parecia não ter fim foi um dos principais fatores por trás da revolução de 1974 – especialmente a insatisfação com o alistamento militar obrigatório, que punha um em cada quatro homens num uniforme. Salazar acreditava que a guerra podia ser ganha porque ele culpava a União Soviética, que fornecia aos rebeldes armas e mísseis antiaéreos, e os Estados Unidos, que lhes fornecia apoio retórico e subvenções da CIA. Sem esta ajuda externa, as revoltas teriam malogrado.
Salazar não queria voltar o relógio até o século XIX, só até 1959, antes de seu aliado da América do Norte começar a patrocinar levantes violentos contra seu país. Ao se levar em conta o que aconteceu com as colônias a partir da independência delas, a posição de Salazar não deveria ser imediatamente desclassificada como reacionária.
Mas será que a trajetória de Salazar encerra alguma lição para os Estados Unidos de hoje? Importar o seu tipo de corporacionismo seria algo difícil, uma vez que muito do seu sucesso dependia do tamanho de Portugal. Como Lee Kuan Yew, Salazar se beneficiou do fato de governar um país pequeno o suficiente para que um só homem pudesse estar por dentro dos detalhes. Em um país não maior que Indiana, o exílio de alguns dissidentes bem selecionados poderia neutralizar a ameaça de levantes violentos por uma geração. Um líder norte-americano teria de recorrer a assassínios em massa para obter o mesmo.
Curiosamente, Gallagher afirma que as democracias liberais do Ocidente já adotaram sua própria forma de corporativismo. Após a II Guerra Mundial, observa:
Constatou-se uma tendência crescente entre os governantes de fazer questão que assuntos anteriormente vistos como pertencentes à arena política fossem afastados e decididos “pré-politicamente” por ONGs, funcionários públicos e pela União Europeia. Especialistas selecionados na sociedade civil e em outros lugares tornaram-se agentes políticos importantes, por si sós, assim como os agentes corporativos o haviam sido em Portugal.
Decerto, a sociedade norte-americana é cada vez mais administrada “pré-politicamente” por várias elites – burocratas, empresas de tecnologia, ONGs etc. A diferença é que nossos agentes corporativos não são responsáveis perante nenhuma autoridade. A sociedade portuguesa tinha Salazar como mediador único entre os vários interesses da sociedade. Eles também tinham uma ideia consensual de bem comum e um vocabulário moral católico ao qual as partes em disputa podiam recorrer. Sem estas balizas exteriores, o governo das elites acaba sendo não um corporacionismo, mas uma oligarquia. Ao apresentar um retrato equilibrado do regime de Salazar, o livro de Gallagher nos ajuda a entender a diferença entre as duas coisas.
Helen Andrews é editora sênior do American Conservative.
First Things, todos os direitos reservados. Publicado com permissão. Link original: “Benevolent Autocrat”.
Salazar
É invariavelmente um prazer para um autor quando seu livro cai nas mãos de um resenhista cujo conhecimento do assunto é tão penetrante quanto o demonstrado por Helen Andrews, que resenhou meu livro sobre António Salazar na edição de fevereiro. Ela repara que Salazar continua a dividir opiniões. A escritora J. K. Rowling, famosa por Harry Potter, tomou o autocrata como modelo para Salazar Slytherin. Fico imaginando se, à luz do assassinato de reputação que a autora vem sofrendo por parte do lobby da militância trans – por ousar dizer que as identidades de gênero são binárias -, ela continuaria a ver sob uma luz tão sombria alguém que buscou defender a sociedade das forças do caos e da desordem permanentes.
Por outro lado, como apontado por Andrews, o saudoso Secretário de Estado Dean Acheson (um democrata) via o líder português como uma fonte de perspicácia. Ele pode ter lamentado o fato de Salazar ter se decidido tão irrevogavelmente contra uma democracia multipartidária, mas ele estava pronto a ouvir respeitosamente o argumento de Salazar de que a ambiciosa competição entre partidos frequentemente ocorre às custas da ordem e da liberdade.
Salazar foi um firme advogado da paz e dos acordos durante as eras do fascismo e da democracia liberal, ambos modelos dentro dos quais a sua ordem tradicional não se sentia à vontade. Ele assumiu um papel ativo ao insistir em sanções contra Mussolini pelo receio de que este fosse invadir a Etiópia. Ele não tinha receio, porém, de apoiar Franco na Guerra Civil Espanhola, porque ele via que, sob tal figura, de quem jamais fora simpático, a Espanha tinha uma chance maior de alcançar a estabilidade e o progresso que durante tanto tempo lhe fugiram.
Andrews insinua que eu lamentaria a obstinada resistência de Salazar em conceder independência às colônias. Na verdade, eu acredito que foi uma tragédia que a atuação de Portugal na África tenha sido abruptamente extinta com o golpe de 1974. Se Salazar fosse, então, mais jovem e enérgico, ele poderia ter buscado implantar uma política de criação de uma Comunidade Lusitana, o que teria feito de Portugal um Estado Euro-Africano. Isso teria sido certamente muito melhor que as trágicas condições do mundo luso no ultramar a partir de 1974.
Tanto eu como Andrews somos capazes de aduzir argumentos que mostram que Salazar estava longe de ser um fascista. Não há, em Portugal, saudades da censura, da polícia secreta, ou de uma prudência econômica tão estrita. Há conservadores nacionalistas cujo apelo vem crescendo, mas eles não estão procurando “limpar a barra” de Salazar.
Ele é visto pelos portugueses como um ditador incomum. Foi um choque para muitos quando sua reconhecida honestidade, a sobriedade de sua vida e a força de seu patriotismo o levaram a ser escolhido como o maior português de todos os tempos por 41% da audiência numa pesquisa organizada em 2007 pela rede estatal de televisão.
Salazar era um autoritário relutante, que normalmente vencia por ser um estadista hábil, não pela força bruta. Seu regime quase sempre evitou exibir as formas de militarismo tão patentemente exibidas em Washington, D.C., durante as primeiras semanas do governo Biden.
Seu Estado Novo era apoiado não apenas pelas elites urbanas, mas também pelos precavidos pragmatistas da burguesia provincial. Eles desconfiavam de experimentos e não eram naturalmente autoritários. Eles viam em Salazar um guia de passos firmes, capaz de blindar Portugal de um jugo caótico e arbitrário, com base num sistema de força bem dosada e de progresso gradual, mas constante.
O modo estoico como Salazar encarava a volatilidade humana fê-lo manter a paranoia afastada e nunca sofrer de esgotamento, mesmo após tantos anos no poder. Muitos, hoje em dia, poderiam aprender um pouco de sua abordagem equilibrada nas questões políticas.
Tom Gallagher – Universidade de Bradford | Bradford, UK.
First Things, todos os direitos reservados.
Publicado com permissão. Link original: “Letters”.