Como aventamos no artigo anterior, é bem extensa a discussão sobre as consideráveis misérias que os ventos modernos trouxeram à humanidade na garupa de uma série de inegáveis melhorias tecnológicas e benesses materiais. Podemos, no entanto, ao menos tangê-la e tentar captar algumas das razões do fracasso moderno, por exemplo, na tarefa de assegurar a paz e a coesão social, ou de enobrecer as relações e os padrões de conduta das pessoas. Afinal, por que a modernidade falhou na construção de uma sociedade realmente justa e harmônica? Por que malogrou na edificação de uma cultura sã, solidária e virtuosa?
No final do século XIX a euforia com o progresso era imensa. As pessoas acreditavam que tinham alcançado um nível de civilização elevado e esclarecidíssimo. Apostavam no avanço científico, na sociologia e nas demais ciências que prometiam resolver todos os problemas da humanidade.
Mas o que toda essa ilustração desprovida de valores espirituais trouxe foram extermínios em massa, perseguições contra inocentes, desumanização e morticínios em escala industrial. Com o título Inventário após o Naufrágio, Guillebaud inicia o capítulo primeiro de seu livro A Reinvenção do Mundo recordando os assassinatos em massa que tornaram o “avançado século XX” um século de horrores.
Antes da “era dos extremos” – que tem sido, na verdade, uma era de guerras entre monstrengos ideológicos consanguíneos, entre versões irmãs de materialismo revolucionário –, nunca se tinha visto tanta violência racionalizada com pretextos sociológicos. Atrocidades numerosas foram cometidas em nome de princípios humanitários e direitos coletivos. Todo o esclarecimento que as nações civilizadas acreditavam ter alcançado não evitou que quase 200 milhões de vidas fossem ceifadas em guerras ideológicas no século XX, o mais assassino da história.
“[Hitler] era apenas um típico rebelde moderno com aviões de caça, bombas e tanques de guerra, um Charles Manson com uma colossal máquina de combate nas mãos”
Com o pretexto de instaurar uma sociedade mais desenvolvida, uma ordem mais igualitária e próspera, sem “burgueses exploradores”, “católicos reacionários” ou “judeus parasitas”, diversos regimes autoritários foram alçados ao poder por golpes de revolução ou até eleitos por maiorias populacionais de seus respectivos países. E isso certamente nos diz muito sobre o potencial destrutivo das narrativas ideológicas quando são disseminadas e assimiladas pelas massas.
É característico da mentalidade revolucionária o ímpeto de demolir completamente a ordem social existente, aceitando sacrificar os direitos dos cidadãos do presente ou de uma parcela específica da população, geralmente desprezada pelos donos do poder ou pelas grandes potências que hoje fazem um papel mil vezes pior que o das antigas metrópoles dos tempos do colonialismo.
É o caso dos ucranianos vitimados pelo confisco de alimentos que resultou na Grande Fomes de 1932-33 (Holodomor) e agora estão novamente ameaçados pelo expansionismo russo. Todo tirano revolucionário justifica os seus abusos com o pretexto de estar erigindo um mundo ideal para uma abstrata coletividade futura que exigirá sacrifícios dos cidadãos do presente, em prol dos cidadãos do futuro ou daqueles considerados dignos desse status.
Episódios como Auschwitz, Katyn e Tiananmen fizeram com que cada vez mais pessoas relativizassem os reais benefícios de todo o discurso humanitário fajuto difundido pós 1789 e de toda a empáfia “científica” desdenhosa com que os intelectuais europeus de fins do século XIX e início do séc. XX descreviam os povos antigos e medievais enquanto depreciavam os seus costumes e modo de pensar.
Nos países regidos pelo capitalismo “democrático” e liberal os problemas não chegam a ser tão absurdamente graves quanto os que existem nas ditaduras socialistas, mas sem dúvida vão se agravando cada dia mais, conforme crescem o poderio econômico-político dos grandes empresários e o controle dos meios de informação e produção cultural que estão concentrados nas mãos de uma elite que também maneja os partidos que se sucedem no governo. A desconfiança nas crias do materialismo liberal, à direita e à esquerda, vem crescendo há décadas:
Depois de 1975, o maior ou menor fracasso, mais ou menos patente de todos os grandes sistemas socioeconômicos e políticos do globo arrastou uma aceleração na crise do progresso. As nações ocidentais desenvolvidas revelaram-se incapazes de fazer face à crise da energia, à inflação e ao desemprego; os países ditos socialistas não conseguiram construir uma economia adequada às suas necessidades e infringiram, em maior ou menor grau, os direitos elementares da pessoa humana; a maioria dos países do Terceiro Mundo falharam nos planos econômico e político, vítimas de si mesmos e dos estrangeiros. No caso do Camboja, do Vietnã e de Cuba, a situação é dramática. Para além disso, nos países ocidentais, o apelo à energia nuclear suscitou ou reforçou um forte movimento de crítica à ideologia do progresso. (LE GOFF, idem, pp. 272-273)
As sensações de desilusão, frustração e desesperança se condensaram nos anos de 1960-70 e resultaram, por exemplo, nas vindicações de liberação sexual impulsionadas por herdeiros da psicanálise como Herbert Marcuse, no recurso aos narcóticos estimulado por Timothy Leary, nos arroubos antissociais dos movimentos hippie, punk, heavy metal e new age.
É claro que todas essas expressões revolucionárias marxistas, niilistas ou neopagãs acabaram só por agravar ainda mais o desespero e o vácuo de sentido sofrido pelo homem contemporâneo. Mas, para os intelectuais revolucionários por trás desse processo, o custo pareceu aceitável: subverter e transformar uma sociedade implica em provocar certa desordem e muitas mudanças prévias no modo de pensar e no comportamento de seus membros.
É interessante observar como, após a segunda grande guerra, o projeto moderno de desconstrução cultural, que já existia desde a chamada “renascença”, se reformula novamente e adquire uma roupagem mais hedonista e moralmente libertária. Influentes intelectuais em várias nações do Ocidente passam a instigar a massa de estudantes que estão sob sua influência nas escolas e universidades para quebrar os paradigmas morais vigentes e desprezar os preceitos de comportamento “ultrapassados e repressores” ensinados por seus pais.
Os heróis da liberdade, da paz e do amor deveriam, a partir de então, combater contra tudo o que a geração anterior tinha estabelecido como valor, em nome de uma nova utopia, de uma sociedade sem normas “repressoras” e sem religião, o que teoricamente a tornaria mais livre, igualitária e solidária.
“[o homem] deixa de ser visto como um ser dual, físico e metafísico, carnal e espiritual, pertencente não só ao tempo, mas também à eternidade, para tornar-se apenas um macaco pensante”
O que fizeram foi reerguer o velho broquel do liberalismo de forma ainda mais radical e com a desculpa de evitar o ressurgimento dos modelos autoritários da primeira metade do século (que eram igualmente “humanitários”, “progressistas” e derivados, em algum grau, das mesmas raízes teóricas do liberalismo). Dali em diante, passaram a investir todas as suas fichas políticas num tipo de progressismo libertino que deu origem aos movimentos identitários sexuais de hoje e seus respectivos lobbies na política e nas grandes companhias.
Deste modo, a “moral tradicional” – classificada ora como “burguesa”, ora como “ultrapassada” ou “medieval” – foi rechaçada por todas as gerações herdeiras dos rebeldes juvenis que se insurgiram em 1968 e pela arte revolucionária “visceral” que emergiu com a contracultura. Muito antes, ela havia sido rechaçada inclusive por um líder progressista cuja imagem se tornou posteriormente impopular. Sob o seu comando,
é a pulsão sem limites nem obstáculos de qualquer espécie (e sobretudo sem moral) que a propaganda nazista iria exaltar. ‘Nossa revolução’, jurava o Führer, ‘não tem nada a ver com as virtudes burguesas. Somos a explosão da força da nação. Por que não dizer da força de suas vísceras?’. (GUILLEBAUD, Ed. Bertrand, 2003, p. 45).
Hitler era apenas um revolucionário excêntrico influenciado pelo hegelianismo materialista, pelo pangermanismo neopagão e por Nietzsche, como muitos que vieram antes dele e que viriam depois. Em outras palavras, era apenas um típico rebelde moderno com aviões de caça, bombas e tanques de guerra, um Charles Manson com uma colossal máquina de combate nas mãos.
Mas qual foi o fator determinante que permitiu que homens como Hitler concentrassem tanto poder ou que tantas matanças com pretextos humanitários fossem perpetradas num século devotado à “ciência”? Há quem diga que foi a substituição da crença cristã numa Providência Divina benevolente e, ao mesmo tempo, julgadora por “forças históricas” meramente mundanas que seriam as verdadeiras responsáveis pelo destino das nações – como, por exemplo, a “vontade de poder”, a “evolução das espécies”, o “espírito do mundo” hegeliano ou a “luta de classes”.
‘Foi no século XIX’, observava François Furet, ‘que a História substituiu Deus, tornando-se todo-poderosa sobre o destino humano, mas é no século XX que vão ser vistas as loucuras políticas nascidas desta substituição’. (Ibidem, p. 41)
De acordo com Bobbio, o progressismo está ligado historicamente ao processo de secularização do pensamento político moderno que, fazendo do plano temporal o lugar da completa autorrealização do homem, conferiu à ação política e ao desenvolvimento técnico o papel de instrumentos libertadores da humanidade. A salvação dos povos, que antes dependia dos auxílios da Graça, da obediência humana aos mandamentos divinos e das orações dos homens, agora parecia depender apenas da atuação voluntária das próprias forças humanas nos cursos da história.
Para entender essa ruptura, devemos recordar que, no horizonte do pensamento ético pré-moderno, sobretudo na esteira do legado filosófico clássico e cristão, o fim último do homem era identificado com uma realização ontológica transcendente, um prêmio (ou castigo) que está muito além das ambições terrenas e dos efêmeros bens presentes. Acreditava-se que as nossas decisões presentes respondem, de algum modo, a um juízo eterno e geram consequências eternas. Logo, a política e todas as demais atividades humanas deveriam orientar-se, portanto, em vista do fim transcendente do homem e sob a advertência de um juízo supratemporal que pesaria sobre todas as escolhas e atividades humanas sobre a terra.
No mundo pré-moderno, a natural autonomia da razão humana era submetida aos códigos de conduta inspirados na moral clássica – numa visão finalista da vida, que deveria incentivar virtudes e desmotivar vícios – e na revelação cristã. Elas convergiam para formar uma compreensão ética bem definida da lei natural, isto é, daquelas regras balizadoras do pensar e do agir que são ordenadas pela própria natureza das coisas, em vista de seus fins naturais. Com efeito, o pensamento pré-moderno evitava absolutizar o mundo presente, idolatrar a história ou superestimar os bens terrenos.
“Em nome da razão, traíram a mesma razão, transformando-a em ídolo”
Nessa perspectiva, as vicissitudes da história e os recursos disponíveis no agora, longe de poderem libertar realmente o homem e torná-lo completamente feliz e realizado nesta vida, prometiam apenas amenizar as dificuldades terrenas da humanidade e ajudá-la a alcançar o seu verdadeiro fim, sua excelência em todos os campos da vida, segundo os imperativos próprios da nossa natureza intelectiva e social. Havia, portanto, uma hierarquia de fins e um princípio de orientação supratemporal para a ação humana. O bem comum tinha precedência sobre os interesses individuais e a natureza humana era respeitada nas suas mais autênticas aspirações essenciais.
Com o advento do humanismo, ganhou relevo a ideia de que o homem pode e deve buscar uma felicidade estritamente mundana, confiando na autonomia da sua vontade imediata, na capacidade dos vícios privados de gerarem benefícios públicos, e na ação histórica apta a tornar a sociedade cada vez mais apta a gerar bem-estar e a satisfazer o maior número possível de indivíduos.
Tem-se aí a secularização da própria noção de homem, que deixa de ser visto como um ser dual, físico e metafísico, carnal e espiritual, pertencente não só ao tempo, mas também à eternidade, para tornar-se apenas um macaco pensante. Opera-se, no nível teórico, uma espécie de rebaixamento ontológico. A concepção antropológica hegemônica retrocedeu deste então, como se o homem tivesse sofrido um verdadeiro rebaixamento na hierarquia dos seres e agora se identificasse com as suas necessidades e instintos primários.
Paralelamente ao deslocamento do eixo de sentido da vida humana, a modernidade opera uma quebra de paradigma político ao romper com a visão clássica e cristã da vida em sociedade e do exercício do poder na polis. Maquiavel e sua descendência fizeram com que a pura conveniênciapassasse a pautar o agir político no lugar dos mandamentos divinos e de uma reta compreensão jusnaturalista e finalista (teleológica) da quididade das coisas, isto é, da sua natureza essencial. Assim, a realização humana deixou de ter relação com a busca pela excelência e com o serviço ao próximo, passando a mirar apenas a satisfação dos interesses individuais.
O convencionalismo antiteleológico já se exprimia nas primeiras teorias do contrato social, desde Thomas Hobbes (séc. XVII) pelo menos. A convenção e as possibilidades da ciência experimental ganham primazia sobre a natureza ontológica e os fins metafísicos. Na esteira dessas mudanças, o progressismo se destaca pelo
acento dado ao valor do conhecimento científico e ao significado da progressiva desintegração da ordem hierárquica na sociedade. Enquanto a tese radical fazia do homem uma criatura exclusivamente histórica e capaz de se amoldar, na vida prática, a níveis de conhecimento cada vez mais elevados e, correspondentemente, a formas sempre novas e mais frutíferas, porque racionais, de convivência social (BOBBIO, Ed. UnB, 1998, p. 244).
Antes de Bacon e Hobbes descartarem a metafísica e a filosofia política clássicas, tivemos ainda Maquiavel que, com o seu “realismo” político amoral (fundado num pretexto de “razões de Estado” próprias), favoreceu a posterior ascensão do progressismo histórico-materialista. E se voltarmos ainda antes poderemos, sem dúvida, encontrar pequenas raízes do progressismo moderno no nominalismo de Guilherme de Ockham. Contudo, um rastreamento histórico completo desse pensamento não é exatamente o nosso intuito aqui, pois importa mais entender as consequências trágicas da ideologia progressista do que identificar os seus antepassados.
A modernidade, ao desprezar grande parte da contribuição filosófica clássica (greco-romana) e cristã (patrística e escolástica), precipitou-se em uma verdadeira era de credulidade antropocêntrica, alucinada por um suposto paraíso terreno vindouro. A tradição filosófica precedente – e mesmo autores contemporâneos como Hans Jonas – advertia quanto às limitações de uma razão humana que tem a pretensão de ser autônoma, autorreferenciada e praticamente onipotente. Os sábios do passado e do presente sempre declararam a importância de um arcabouço ético capaz de nortear a humanidade segundo uma justa hierarquia de fins e conforme uma sensata escala de valores que possa orientar as nossas escolhas e o nosso agir no mundo.
Mas os modernos execraram a tradição filosófica e desdenharam das suas advertências. Em nome da razão, traíram a mesma razão, transformando-a em ídolo. No fim, essa crença acabou por revelar-se como uma espécie de “messianismo imbuído de cientismo e historicismo” e teve uma de suas expressões mais desastrosas com as tentativas socialistas de realização do “mito de planificação social do desenvolvimento” (BOBBIO, p. 245-6).
Diante desse cenário, parece legítimo, e até urgente (!), sugerir encaminhamentos para uma necessária superação das noções de tempo associadas à visão moderna de um progresso histórico linear. É esta concepção que hoje leva algumas pessoas a crerem, por exemplo, que o aborto eugênico ou o adiantamento sexual precoce de crianças não podem ser considerados antiéticos porque a ciência atual nos permite empregá-los e porque, afinal de contas, “estamos em pleno século XXI”…
À guisa de um primeiro passo para essa superação, e também para ensaiar uma ruptura com tal concepção materialista e linear da história – que fomenta a crença no progresso material e técnicocomo meta suprema e resultante máxima das transformações (legítimas?) da modernidade – faz-se necessário confrontar o pensamento progressista com, no mínimo, um questionamento:
O modo de pensar mais recente, a tendência “da hora”, a última invenção da “ciência” e o projeto político mais “progressista” realmente são sempre mais justos e melhores que os mais antigos? Se conseguirmos fazer as pessoas pensarem seriamente nessa questão e criarem o hábito de sempre questionar as “últimas tendências” e os discursos mais avançadinhos, isso já será uma vitória preventiva contra as mais recentes formas de totalitarismo e de neobarbarismo 5.0 de última geração.
Referências:
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 1998.
CHESTERTON, G. K. O que há de errado com o mundo. Campinas: Ecclesiae, 2013.
GUILLEBAUD, Jean-Claude. A Reinvenção do Mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã: diagnóstico da enfermidade spiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva & Cia. Editores, 1946.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1990.
STRAUSS, Leo. Uma Introdução à Filosofia Política – Dez ensaios. Trad. Élcio Verçosa. São Paulo: É Realizações, 2016.