Platão já ensinava que o ser humano não nasceu só para si, mas para a pátria e para todos os seus. Numa sociedade sã, não pode reinar a lógica do “cada um por si e Deus por todos”, do “quem pode mais, chora menos” ou, numa ótica estritamente liberal, simplesmente esperar que os “vícios privados” dos indivíduos autocentrados gerem “benefícios públicos” suficientes e verdadeiros. O bem comum é impensável sem a solidariedade social.
Solidariedade e subsidiariedade: dois conceitos importantes e indispensáveis quando falamos de uma política do bem comum, e ainda pouco compreendidos. Mas o que significam concretamente? O primeiro, de compreensão mais intuitiva, fala da mútua responsabilidade dos concidadãos uns para com os outros, ou seja, da união solidária e do senso de comunidade dos membros do corpo social. A saúde orgânica da comunidade civil, formada por muitas e diversificadas vontades individuais, depende deste componente fundamental.
No nosso tempo, porém, a cultura do individualismo tende facilmente a corroer os laços da solidariedade. Atitudes egoístas amplamente difundidas já se tornaram a rotina dos relacionamentos modernos. E isso, não raro, até dentro das famílias. Ocorre que as mídias, as narrativas ideológicas e o próprio ambiente social têm induzido as pessoas a pensarem exclusivamente em termos de “meus direitos”, “meus desejos”, “meus sonhos”, “minha vontade”; é sempre “eu quero”, “eu decido”, “eu rejeito”, “eu cancelo”, “eu determino”. Conversar e conviver com quem pensa diferente e renunciar a algo pelo bem alheio e comum nunca esteve tão fora de moda.
Neste cenário, a ética do justiceiro lacrador – que nada mais é do que a contraparte socialista do self-made man ambicioso e competidor, quiçá até mais egoísta do que este – precisa ser substituída pela do herói anônimo do cotidiano, o trabalhador prestativo e solidário. Ele é o antídoto para uma sociedade que vai se tornando cada dia mais fragmentada e atomizada, para um mundo no qual as pessoas estão se isolando em suas bolhas e tribos, ou estão conectadas com todos virtualmente e com ninguém na vida real.
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O exemplo do herói anônimo convida o nosso ego a se importar com as necessidades alheias, a dar valor às conexões humanas reais, a derrubar barreiras e edificar pontes que transponham o individualismo e a atomização social.
A solidariedade chama a atenção para a responsabilidade individual-coletiva. No campo da política institucional, ela é um pressuposto basal do autêntico espírito público no serviço dentro do Estado, pois política é vida em comum, e o sujeito da política é, por excelência, a comunidade, da qual o agente público é membro e servidor. Logo, o gestor político que alegue trabalhar pelo povo, mas se mostre incapaz de se doar devidamente em prol do bem coletivo, de proceder honestamente e se colocar no lugar dos seus concidadãos, de ter compaixão pela dor e pela indigência dos outros, enfim, de traduzir o seu discurso em atos políticos e pessoais solidários, é um mero impostor – sobretudo se se apresenta como cristão ou, vá lá, “humanista”. Contudo, solidariedade “é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (Fratelli Tutti, 116).
Num plano mais amplo e econômico, é sensato admitir que quem concentra mais recursos e bens numa sociedade seja incentivado (jamais coagido) a compartilhar um pouco do que possui com os mais fracos e necessitados, principalmente através de iniciativas que os ajudem a dar passos no autodesenvolvimento. Existem, neste sentido, muitas iniciativas interessantes que já são aplicadas: a dedução de impostos por doações a instituições de caridade, os selos conferidos a empresas socialmente benfeitoras, o estímulo ao voluntariado nas escolas e universidades, entre tantas outras. Por outro lado, é uma barbaridade que existam regimes socialistas que imponham políticas de “redistribuição de renda” mediante desapropriações e impostos abusivos sobre bens privados, enquanto, de outra parte, existem gestores públicos que tentam eventualmente proibir a caridade dos cidadãos particulares.
Sob esta ótica da economia, a solidariedade liga-se ao princípio da destinação universal dos bens, que nos recorda que os bens da Criação não pertencem somente a uns poucos. A propriedade privada, ainda que consista num direito autêntico e definitivamente digno de ser defendido, não pode desvencilhar-se do reto cumprimento da sua função social. Entenda-se: é justo e perfeitamente legítimo que ela seja usufruída predominantemente pelos seus detentores, mas isto não a desonera moralmente de servir, de algum modo, também às demais pessoas.
Se uma casa possuída por um homem serve de abrigo à família dele, ela já está cumprindo bem a sua função social. E da mesma forma a cumpre se alberga quaisquer pessoas que façam algum bem ou sejam, pelo menos, inofensivas à sociedade. Mas se ela é usada como covil de assaltantes e esconderijo para atividades criminosas, é evidente que a sua finalidade social não é cumprida.
Outro exemplo: imagine-se uma indústria degradante ao meio ambiente, insalubre, socialmente nociva e que gere pouquíssimos empregos, trazendo benefícios mínimos ao lado de incontáveis malefícios para a população; esta seria uma indústria parasitária, não cumpridora da sua função social, mas avessa à própria razão de ser do direito de propriedade, que é desenvolver e melhorar a vida humana, inclusive em nível comunitário, ou servi-la de algum modo.
O nosso próprio desenvolvimento pessoal está sujeito à solidariedade alheia, pois o ser humano “é sempre dependente dos outros, e não apenas para experimentar uma ajuda prática, mas também para ter um interlocutor e poder crescer e desenvolver plenamente a sua personalidade através do debate de ideias, de argumentos, de necessidades e de desejos” (DoCat, 100). Mesmo que alguém fosse capaz de construir a própria casa, tecer as próprias roupas e produzir a própria comida, ainda precisaria dos demais para se realizar como pessoa, pois o homem carece não apenas do necessário para o seu corpo, mas também do que alimenta a sua alma. E já dizia o eloquente Carlos Lacerda que “quem só aspira a coisas materiais na vida é aspirador de pó”.
Em suma, o princípio da solidariedade defende uma visão de sociedade baseada naquela clássica “regra de ouro” da ética cristã: “Fazei pelos outros o que gostaríeis que fizessem por vós mesmos” (Lc 6, 31). E este axioma não se restringe a quem nós conhecemos ou enxergamos, mas a todo o corpo social. O bem que fazemos não precisa necessariamente ter um donatário visível.
O filósofo francês Jean-Luc Marion, tratadista da dinâmica do amor e da autodoação, diz que a exigência de identificar o recebedor dos nossos gestos de bondade é perfeitamente dispensável. É claro o mérito e a superioridade de todo ato anônimo de altruísmo, de toda doação indireta, de todo bem que fazemos “sem ver a quem”. A caridade não se ressente de ser cega.
SUBSIDIARIEDADE
Contudo, se as práticas espontâneas de solidariedade dos cidadãos são sempre bem-vindas, “uma intervenção exagerada do Estado pode constituir uma ameaça à liberdade e às iniciativas pessoais” (CIC, 1883). Assim, para evitar intromissões abusivas nesta relação da esfera governamental com a sociedade civil e em outras relações análogas, o princípio da subsidiariedade – do latim subsidium: “ajuda” – prescreve que “uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem comum” (idem). Isto é, o governo não deve se impor ao corpo social além do necessário, mas assisti-lo naquilo que for realmente preciso.
Em outras palavras, a subsidiariedade previne contra a extrapolação de poder das autoridades superiores, de maneira que a autoridade maior não absorva nem destrua a menor, mas a apoie e complemente na medida das necessidades dela. Impedir o excesso de centralização do poder é tão importante quanto subsidiar as instâncias inferiores.
Na política governamental, estabelece-se que o governo central deve evitar imiscuir-se naquelas questões que podem ser resolvidas pelas instâncias menores e locais – as quais, de fato, conhecem mais de perto os seus problemas e demandas particulares. Com efeito, “a experiência revela que a negação da subsidiariedade, ou a sua limitação em nome de uma pretensa democratização ou igualdade de todos na sociedade, limita e, às vezes, também anula, o espírito de liberdade e de iniciativa.” (CDSI, 187)
Não cabe ao Estado intervir, por exemplo, em questões familiares que competem aos pais resolver, como o tipo de educação que é melhor para os seus filhos e os serviços de saúde adotados pela família. Porém, em casos de grave violação do bem comum por poderes locais, é claro que o governo central deve intervir para reestabelecer o direito, a tranquilidade pública, a boa ordem civil ou a provisão dos bens de primeira necessidade.
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Da mesma forma, quando as instâncias locais são impotentes e o auxílio do governo é solicitado, este deve se dispor a subsidiar as comunidades locais com os recursos e serviços necessários ao seu bom andamento. Logo, não se configura uma violação deste princípio quando o Estado toma a guarda de uma criança que sofre abusos físicos severos em casa ou quando envia tropas federais para conter uma onda de saques e depredações numa cidade, por exemplo.
A subsidiariedade também prescreve o apoio aos corpos sociais intermediários. Deste modo, visa também a uma proteção para famílias, entidades culturais, religiosas e beneficentes, iniciativas educacionais e políticas independentes, órgãos de classes profissionais, cooperativas, empresas familiares e outras associações civis espontâneas.
Enquanto permaneçam lícitas as suas atividades, essas instituições particulares devem ser protegidas e respeitadas pelo Estado em sua justa liberdade. O ideal é que tais entidades menores consigam cumprir bem as suas finalidades, potencializar as vozes dos cidadãos nelas inseridos e servir de ponte entre eles e o governo, levando as demandas populares às instâncias estatais e se interpondo entre o povo e as possíveis ingerências abusivas.
O PROBLEMA DO ASSISTENCIALISMO
Outra questão que se sobressai quando falamos de solidariedade e subsidiariedade é o problema do assistencialismo estatal. Em diversos casos, observa-se que os programas de ajuda do governo aos mais pobres se prolonga indefinidamente, tornando as pessoas dependentes da esmola pública e se convertendo em um instrumento de política eleitoreira. É claro que muitas vezes é preciso, sim, dar o peixe ao faminto; existem casos de urgente necessidade. Mas melhor ainda é dar a vara com anzol, ensinar a pescar e, depois, ajudar na compra das redes, na profissionalização da pesca, no financiamento do barco, na abertura da peixaria. Estou falando de criar condições para que cada cidadão seja produtivo e livre, se desenvolva, consiga crescer economicamente e melhorar de vida.
É famosa a máxima de Ronald Reagan que diz que “o melhor programa social é o emprego”, pois as políticas de assistência governamental não conseguem reduzir a pobreza de uma forma eficaz e permanente. Uma política do bem comum deve fortalecer a liberdade e a independência dos cidadãos em relação ao governo.
Outro ex-presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, dizia que “a dependência continuada de ajuda induz a uma desintegração moral e espiritual do cidadão e, fundamentalmente, da fibra da nação.” Importa, portanto, que favoreçamos a iniciativa individual e a ideia de ascender socialmente com os próprios esforços, pois poder ajudar-se a si mesmo é algo importante inclusive para a percepção da própria dignidade.
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Na dimensão econômica, isso se faz potencializando a capacidade de geração de empregos, incentivando o empreendedorismo, os negócios familiares, reduzindo impostos e burocracias, oferecendo capacitação e crédito. Se, por um lado, seria contrário à subsidiariedade negar o auxílio direto aos mais pobres e miseráveis, por outro também vai contra este princípio mantê-los sob o favor paternalista do Estado quando eles bem poderiam ser independentes. É mais digno conceder o subsídio emergencial e, ao mesmo tempo, ajudar o beneficiado a se mover para cima, a buscar uma qualificação profissional, a se inserir no mercado de trabalho.
Seguramente, os dois princípios aqui discutidos precisam caminhar juntos, evitando-se o predomínio de um sobre o outro, pois “se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (Caritas in Veritate, 58). E enquanto a subsidiariedade ordena sobretudo as competências dos entes mais amplos – Estado e outras instâncias de poder superiores –, a solidariedade edifica as relações humanas inclusive nos níveis mais domésticos e pessoais.
Podemos pensar em ambas como sendo, cada uma, um prato pendente da balança da justiça social – não a do discurso socialista panfletário, mas a verdadeira, a que regeria as sociedades humanas se o justo em si desse a tônica em vez das ideologias reinantes. Uma sociedade organicamente sã e forte é aquela onde existe uma genuína concatenação de bons princípios e serviços solidários mútuos associados a uma proporcionada e justa distribuição do poder.