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Bonum est diffusivum sui

A administração do tempo

Em poucos temas encontramos tanta unanimidade como na falta de tempo entre as pessoas. Parece que todos nos sentimos pressionados por algo que nos foge ao controle e que nos impõe regras inexoráveis às quais não podemos resistir. Como o tempo é uma unidade física de medida, todos temos exatas vinte e quatro horas por dia, e como nada podemos fazer para alterar esta medida, resta-nos a opção de escolher entre o compromisso de bem ordená-lo conforme nossas prioridades, ou cair na tentação de espremê-lo entre nossas atividades e afazeres.

A atitude voluntarista de estender a jornada de trabalho para a conclusão de uma tarefa, ou de tirar algumas horas do sono para adiantar um estudo, pode até trazer uma certa sensação de êxito momentâneo, uma impressão de virtude laboriosa de quem cumpre os seus compromissos ainda que com algum custo, mas no longo prazo torna-se desastrosa quando assumida como rotina, acarretando consequências irreversíveis para a saúde física, psicológica e social. Estudos realizados em universidades dos EUA e do Japão têm mostrado que dormir menos do que precisamos eleva o risco de doenças e reduz a nossa expectativa de vida.

É natural que, uma vez ou outra, tenhamos que sacrificar algum bem por outro, rompendo com uma certa ordem estabelecida, sem sofrer maiores consequências, desde que tenhamos consciência do caráter transitório e excepcional desta atitude. O que não podemos permitir é que a exceção vire a regra por desordem pessoal, por ceder às pressões externas do ambiente ou por uma competitividade irracional, segundo a qual importa sempre fazer mais, sem se questionar quanto ao valor daquilo que se faz.

Se nos deixamos conduzir pelas pressões internas ou externas, perdemos o protagonismo na escolha do uso do tempo, e passamos a pautar nossas ações mais pela pressão daquilo que é urgente do que por aquilo que julgamos ser importante. O pior não é perdermos o tempo, mas perder-nos no uso do tempo, submetendo-nos às pressões de um ambiente que tem pressa por não saber o que quer.

O sentimento de impotência face as limitações físicas, somado às circunstâncias cada vez mais dinâmicas e invasivas que concorrem com os nossos planos, se não enfrentado, torna-se causa de uma perigosa frustração, por tirar o foco daquilo que realmente importa: o bem a ser feito dentro do devido tempo. Esta perda do controle físico temporal, se não compreendida e tratada, facilmente afeta as camadas mais internas do ser, tirando-nos o foco daquilo que realmente importa fazer.

A modernidade nos proporcionou uma exuberante abundância de meios tecnológicos que parecem nos ajudar no domínio e aproveitamento do tempo. Hoje o controle remoto tornou-se peça indispensável de nossa rotina, fazendo-se não só uma extensão de nossos braços como um objeto de satisfação em si mesmo. Quem de nós já não se questionou pelo fato de passarmos mais tempo escolhendo a programação do que propriamente assistindo a um programa de nosso interesse? Por falta de protagonismo em definir o que queremos, até o lazer ou a informação se ressentem da perda de tempo em algo improdutivo e desnecessário. Cada vez que sucumbimos à indecisão, fica-nos a impressão de que embora estejamos com o controle na mão, é ele quem nos controla.

Situação análoga se passa com os nossos carros, que apesar de estarem cada dia mais potentes e confortáveis, em vez de encurtarem as distâncias e diminuírem o tempo gasto em nossos deslocamentos, tornam-se objetos de tortura quando nos vemos num trânsito congestionado. Quem de nós já não esmurrou o volante pela angústia de um trânsito engarrafado, ou fechou alguém que queria nos tomar a vaga? Dá-nos vergonha a manifestação dos nossos mais primários instintos quando estamos atrás de um volante. E tudo por causa de alguns poucos minutos entre um deslocamento e outro que, ao final, provavelmente serão desperdiçados sobre um sofá no qual, irritados, sucumbimos ao famigerado controle remoto.

É evidente que a limitação do tempo não é apenas um problema físico, nem tecnológico e muito menos circunstancial, e que sua origem está na rejeição de nossa condição humana, neste desejo inconfesso, mas sempre presente, de não se submeter àquilo que nos foi dado como um meio em vista de um bem superior. Em seu livro A condição humana, a filósofa Hanna Arendt descreve esta tensão tipicamente humana de duas forças que agem sobre a pessoa. De um lado, há uma força que a impele a se elevar, a agir de acordo com o que é próprio da sua condição humana; de outro, uma força que a mantém na inércia, que a faz se acomodar na sua mundanidade.

Se o tempo é um dos elementos de nossa condição humana, algo que nos foi dado em vistas de nosso fim último (o qual, segundo Aristóteles, é a própria felicidade), qualquer tentativa de rejeição dessa condição corresponde a um artificialismo que nos liberta do desconhecido para nos aprisionar ao determinado. Assim, ao proclamar a nossa independência do Criador, nos tornamos prisioneiros das nossas próprias criaturas, com todas as suas limitações e inconstâncias temporais.

Assim como não resolvemos o problema do trânsito só alargando as rodovias, também não resolveremos os nossos problemas de tempo só aumentando a velocidade de nossas ações, imprimindo pressa ao que deveria contemplar antes o rumo e a razão do que fazemos, do quanto fazemos e em que tempo fazemos. Quando o destino é conhecido, todo vento serve para nos conduzir, ainda que de momento possa nos ser contrário. Um barco sem velas pode não progredir, mas sem leme vai se perder.

E já que falamos de barco: quando em alto mar, nem sempre temos como orientar visualmente nossa direção, obrigando-nos a lançar mão dos instrumentos e rotas, confiando assim mais na experiência do comandante e nos mapas de navegação do que em nossos instintos e sentidos. O respeito à tradição, aos bons mapas de conduta e aos valores universais são como cartas náuticas que nos permitem navegar em águas profundas. Se delas abrimos mão, obrigamo-nos a navegar só pelas costas, onde os sentidos podem nos informar sobre nossa localização.

O desejo de liberdade, quando dissociado do compromisso com o bem e a verdade, mais tolhe do que eleva, fazendo-nos prisioneiros de nossa arrogância e limitando-nos aos nossos pobres e primitivos instintos e sentimentos. Usar bem o tempo exige partir de algo já dado para poder ir além, e não desbravar tudo de novo como se nada de valor existisse.  Não podemos sucumbir ao desejo de novidades. Inovar é aperfeiçoar aquilo que comprovadamente já é bom e fazê-lo melhor. Novidade é moda, um bem passageiro, enquanto a inovação é um bem criativo que contribui para o aperfeiçoamento do ser.

No segundo seminário sobre o uso do tempo realizado em 2010 no Rio de Janeiro, representantes de governos, pesquisadores e especialistas de 13 países –  Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Equador, Estados Unidos, França, México, Inglaterra, Portugal, Suíça e Uruguai – analisaram que do tempo médio por dia dedicado às atividades principais das pessoas com dez anos ou mais, gastamos 30% com trabalho profissional e doméstico; 30% com o sono; 30% com refeições, asseio pessoal e mídias de comunicação, o que nos leva a concluir que em média nos restam apenas 10% do nosso tempo para as atividades criativas de nossa escolha, como leitura, estudo, socialização e outros. Em outras palavras, gastamos 90% do nosso tempo com custeio e apenas 10% em investimento. Logo, saber escolher como aplicamos este tempo é fundamental.

A ideia de que estamos sujeitos ao tempo e ao espaço levou autores como Nietzsche e Heidegger a desenvolverem uma visão pessimista, identificando o homem com sua condição temporal. Essa visão estaria correta se o homem não transcendesse seu próprio tempo. Estaria correta se não pudesse conhecer, amar, dialogar, sonhar… pois onde existe inteligência existe simultaneidade. Somos felizes na medida em que superamos o nosso tempo mediante a esperança, a fantasia e o amor. E podemos afirmar que superamos o nosso tempo porque somos capazes de nos anteciparmos ao que virá, de nos propormos metas futuras e de organizarmos as coisas em relação com os fins.

A temporalidade humana se desenvolve segundo um ritmo cíclico, que destina um momento a cada coisa e repete uma série de alternâncias que nos completam. Assim estamos sujeitos à alternância do dia e da noite, do calor e do frio, da dor e da alegria, fazendo-nos a cada passo que se alterna. Não somos capazes de reter o tempo, mas podemos nos apropriar do desenvolvimento que ele nos propicia. Esta é a dimensão do ser que cresce e se realiza no tempo, que se faz à medida em que cresce e respeita sua condição de ser chamado a mais.

Como podemos, então, harmonizar o tempo e a vida dentro deste ritmo cíclico? Sugerimos três condições:

  1. Pelo retorno à condição natural, abolindo a pressa, sendo donos do nosso tempo e da situação, vivendo com serenidade e sem sobressaltos, não nos tornando escravos dos horários ou dos resultados, e muito menos das expectativas alheias. Apreciando o bom, o belo e o verdadeiro.
  2. Apropriando-nos do uso do nosso tempo, valorizando o enriquecimento da nossa pessoa e de nossas experiências, expressando de forma verdadeira a nossa interioridade. Quando somos donos verdadeiros de nossas obras, e, em consequência de nossa vida, reconhecemo-nos naquilo que fazemos e afirmamos nossa personalidade.
  3. Praticando a contemplação, pois através dela nos dirigimos ao mundo, à realidade e às pessoas de um modo benevolente, sem pensar em quanto custam, sem comercializar o tempo. Só quem abandona seus interesses é capaz de contemplar a beleza das coisas, das pessoas e da vida.

Se a vida é bela, não pode o tempo que nela passamos ser atropelado pelos projetos transitórios ou alheios, temos de ocupá-lo com o que de mais nobre existe em nós, a percepção da eternidade, na qual o tempo não tem fim.

Paulo Lucas

Economista, especialista em Estratégia Econômica de Empresas pela FAE e em Desenvolvimento Pessoal pela Univesidad de La Sabana.

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