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Bonum est diffusivum sui

A felicidade do ser está na realização da sua última potência

Aristóteles reconhece na felicidade o objetivo da vida, e na virtude o caminho para alcançá-la. São as virtudes que formam o homem na sua ação atualizando sua potencialidade natural. Quanto mais consciente for esse processo, mais a pessoa se apropriará dos frutos do seu trabalho em busca da sua realização pessoal.

Em seu Hino a Zeus, o poeta grego Píndaro descreve a cena em que Zeus oferece um banquete para mostrar aos demais deuses a perfeição de sua obra que acaba de concluir. Para espanto de todos, um dos presentes aponta um grave defeito da obra, faltam criaturas que louvem e reconheçam a beleza divina da criação, pois mesmo o mais excelso dos seres criados, o homem, é um ser que esquece!

Essa deficiência relatada por Píndaro não é um mero acidente ou falha da faculdade da memória, mas um defeito congênito que acompanha o ser humano desde antes de seu nascimento, e que é agravado tanto pelas pressões do ambiente como pelas paixões desordenadas em seu interior. Esta deficiência mnemônica não se supera só com a ciência racionalista; exige filosofar, pensar no porquê das coisas.

É a partir dessa constatação – dessa trágica constatação de nossa condição ontológica (também ela, hoje, esquecida…) – que se edifica toda a educação ocidental. E é por essa mesma razão que os grandes pensadores da tradição ocidental consideravam as descobertas filosóficas, não tanto um deparar-se com algo novo ou insólito, mas, precisamente, com des-cobertas: trazer à tona algo já visto, já sabido, mas que, por essa entrópica tendência para o esquecimento, não permanecera na consciência. Assim, a missão profunda da educação não é a de apresentar-nos o novo, mas, algo já experimentado e sabido que, no entanto, permanecia inacessível: precisamente o que se expressa com a palavra lembrar. Claro que ao afirmar o caráter esquecediço do homem, não estamos dizendo que ele se esqueça de tudo, mas, principalmente – e é até uma constatação de ordem empírica – do essencial. [1]

Bom seria se de vez em quando pudéssemos fazer uma espécie de limpeza de memória, deletando tudo o que não nos convém ou que só está ali para ocupar espaço. Melhor ainda se pudéssemos esvaziar não só as nossas “prateleiras” da nossa memória, mas também as do nosso comportamento, pois ainda mais nocivo que um conhecimento inútil é um hábito corrosivo. Lembrando sempre que se é importante “limpar” o que é acessório na memória ou nocivo em nossos hábitos, ainda mais importante é “cultivar” o essencial que constitui o nosso ser.

“se o objetivo da vida é a felicidade, esta só se desenvolve pelo caminho das virtudes, ou da vida de excelência”

A ciência cartesiana, ao decompor o todo em partes, não só comprometeu a compreensão do todo, como abdicou de conhecer os valores e as possibilidades implícitas em cada ser. Segmentado o ser, perde-se a possibilidade de identificar com clareza o que lhe é essencial, o seu fim último e, por consequência, a importância do seu significado pleno e final.

Limitando-se a demonstrar a evidência do que pode ser reproduzido e controlado através de processos técnicos e quantificáveis, a ciência moderna limitou a capacidade do ser ao que lhe é natural e atual. Sem a perspectiva do todo e do pleno, rompeu-se a unidade do ser e, por consequência, a sua motivação em ser mais, em ir além do que vê ou comprova. A ciência racional, quando vinculada ao estudo das partes, pode até oferecer um melhor conhecimento das coisas, mas atrofia o saborear deste conhecimento, que só é possível no entendimento do todo e na sua razão de ser. Esta busca pela razão do ser tem como fruto a sabedoria, objeto primeiro da filosofia.

O ser humano só é pleno quando entendido e construído em sua unidade. Não pode ser ele feliz no trabalho desprezando sua saúde física ou o seu ambiente familiar. Existem princípios que regem sua formação e sua conduta. Princípios que, se não forem respeitados, põem a perder tudo o que se constrói. Para ser feliz, a pessoa precisa conduzir-se de acordo com um bem elevado, com uma sabedoria prática, com uma ética que seja baseada nas virtudes e ajude a pessoa a realizar o seu fim. E, como é um ser que esquece, toda pessoa precisa ouvir para poder, depois de refletir, escolher o bem maior.

“É a prática de atos bons que leva à virtude, e esta prática, livremente desejada, proporciona facilidade de atuação”

Aristóteles é uma dessas vozes a quem se deve ouvir. Como discípulo de Platão, herdou também a maiêutica de Sócrates, método que consiste em conduzir o aprendiz ao encontro da verdade através do fazer pensar. Como seus mestres, foi um amante da filosofia porque via nela o caminho para a felicidade. Em seus escritos, demonstrou que, se o objetivo da vida é a felicidade, esta só se desenvolve pelo caminho das virtudes, ou da vida de excelência. A virtude é, assim, um justo meio entre duas tendências de excesso, uma escolha pelo bem mais excelente que só se revela à razão madura e flexível.

A excelência é uma arte obtida com o treinamento e o hábito: não agimos corretamente porque temos virtude ou excelência, mas a temos porque agimos corretamente; essas virtudes se formam no homem enquanto ele vai agindo, nós somos aquilo que fazemos repetidas vezes. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito: o bem do homem é a alma trabalhar no caminho da excelência uma vida inteira. [2]

O pensamento grego tem claro que as paixões não representam vícios em si, mas constituem a matéria prima, tanto para as virtudes como para os vícios. Isto reforça o pensamento socrático de entender a virtude como conhecimento, ou o platônico, de reconhecer a virtude como uma ação harmoniosa.

Também importante é a noção que Aristóteles tem do ser ao considerá-lo não apenas por aquilo que já existe, mas também por aquilo que pode vir a ser, a virtualidade, a potência. A passagem da potência ao ato é o que irá constituir, segundo Aristóteles, o movimento. Todo movimento constitui a atualização da potência de um ser que somente ocorre pela atuação de um ser já em ato. Cada ser atualiza suas virtualidades devido à ação de outro ser que, possuindo-as em ato, funciona como motor daquela transformação. Entende, em sua construção lógica, que não pode o mais vir do menos, ou o superior do inferior. Em consequência, defende a existência de uma unidade harmoniosa a reger todo o universo, hierarquizando suas ações.

Concebe, então, todo o universo como regido pela finalidade e torna os vários movimentos (atualizações das virtualidades de diferentes naturezas) interdependentes, sem fundi-los, todavia, na continuidade de um único fluxo universal. Haveria uma ação encadeada e hierarquizada dos vários motores, o mais atualizado movimentando o menos atualizado. [3]

Neste encadeamento de motores mais atualizados haveria um primeiro motor, o que daria origem aos demais, ato puro, a quem Aristóteles chama de Deus. É a causa final de todos os seres, incorpóreo e auto-contemplativo. Estas relações metafísicas (matéria-forma, potência-ato) comandam a explicação aristotélica do homem, correspondendo ao objetivo primordial da investigação ética: o de descobrir a causa verdadeira da existência humana. Num universo regido pela finalidade, a causa é a procura do bem ou da felicidade que a alma alcança apenas quando exerce as atividades que lhe permitam a plena realização.

O pensamento grego a respeito de virtude, potência e realização, não é exclusivo na filosofia grega. Outras culturas desenvolvem esta percepção e pensamento.

Na filosofia chinesa, a palavra que designa virtude (Te, em chinês) é por vezes traduzida como potência. Trata-se de uma imagem adequada, pois uma virtude é uma forma de poder. É o potencial de uma pessoa. É aquilo que permite que nos tornemos quem de fato somos. Mas quem somos depende dos papéis que desempenhamos na vida, e as maiores virtudes são as que nos ajudam ao longo do caminho (Tao, em chinês). [4]

Para Josef Pieper,

“A virtude é, em termos gerais, a elevação do ser na pessoa humana. (…) É o máximo a que pode aspirar o homem, ou seja, a realização das possibilidades humanas no aspecto natural e sobrenatural. O homem virtuoso é aquele que realiza o bem obedecendo às suas inclinações mais íntimas. [5]

A concepção de Pieper destaca em referência a Tomás de Aquino a inclinação do homem ao bem elevado, a sua última potência, e a capacidade de realizá-la.

De acordo com Nicolás Abbagnano, o termo virtude “designa uma capacidade qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença.” [6] Enquanto a capacidade de realizar uma tarefa é um conceito platônico, o hábito ou disposição racional constante para realizar algo é um conceito aristotélico, sendo este o mais difundido na ética clássica.

Segundo Adolph Tanquerey, “virtude são hábitos bons, adquiridos pela frequente repetição de atos, que fazem mais fácil a prática do bem honesto.” [7] No conceito de Tanquerey, a influência aristotélica é patente. É a prática de atos bons que leva à virtude, e esta prática, livremente desejada, proporciona facilidade de atuação; ou seja, há um efeito positivo que estimula a se buscar mais, a se fazer melhor. Não pode, portanto, limitar-se a um ato isolado, um vencimento momentâneo que, por mais elevado e heróico que seja, não cria a disposição constante, marca própria da virtude.

“SIGNIFICA alçar voos elevados onde podemos contemplar o sol de frente em busca de um destino realizável”

Seja pela capacidade platônica de Pieper, ou pela prática aristotélica de Tanquerey, a virtude apresenta-se como um bem que deve ser buscado pelo esclarecimento racional, e imposto pelo querer decidido do homem na atualização de si mesmo, onde suas faculdades mais elevadas, as da inteligência e da vontade, atuam em sintonia para realizar o seu próprio bem.

A aquisição desses hábitos bons é uma decisão que propõe a luta por uma vida de excelência que implica na realização do ser em sua mais plena potência. Significa dar o máximo de si para obter aquilo que lhe é próprio e que o identifica como ser único e irrepetível em toda a humanidade. Significa alçar voos elevados onde podemos contemplar o sol de frente em busca de um destino realizável. É o que propõe Tomás de Aquino quando afirma que a verdadeira moral aponta para o ultimum potentiae [8], o máximo daquilo que uma pessoa pode ser.


NOTAS:

[1] LAUAND, A unidade da ideia de homem em diferentes culturas. <http://www.hottopos.com/seminario/sem2/jean.htm>

[2] DURANT, W. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 91.

[3] PESSANHA, José A. da Motta. Aristóteles, Vida e Obra. In ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 20.

[4] SOLOMON, R. C. A melhor maneira de fazer negócios. São Paulo: Negócio, 2000, p. 111.

[5] PIEPER, J. Las virtudes fundamentales. 7. ed. Madri: Rialp, 2001, p. 15.

[6] ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1003.

[7] TANQUEREY, A. Compendio de teologia ascética e mística. 2. ed. Madri: Palabra, 1996, p. 531.

[8] PIEPER, J. A Virtude como “Ultimum Potentiae”. <http://anjosdeadoracao.blogspot.com/2012/04/virtude-como-ultimum-potentiae-josef.html>

Paulo Luccas

Economista, especialista em Estratégia Econômica de Empresas pela FAE e em Desenvolvimento Pessoal pela Univesidad de La Sabana.

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