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Cruz e cultura: uma análise das ideias de sacrifício e redenção da sociedade

Por Peter J. Leithart – 09 de julho de 2004

Segue um breve panorama de um projeto sobre a expiação que apresentei como minha palestra inaugural de membro sênior de Teologia na NSA há alguns anos. (Creio que ainda não foi publicado; se foi, minhas sinceras desculpas.)

O título é “Cruz e Cultura“, mas precisa ser mais específico. A cruz é descrita no Novo Testamento de várias maneiras: é uma operação militar, a vitória do Guerreiro Divino sobre Satanás, o pecado e a morte; é um ato de diplomacia, reconciliando o mundo com Deus; é também um ato legal, a execução de uma sentença de morte; é um, ainda, ato de culto, o sacrifício que encerra todo sacrifício. Este último será o meu escopo, e meu tema pode ser definido mais precisamente como “sacrifício e redenção da sociedade“.

Fica claro no Novo Testamento que a cruz possui dimensões teológicas e sociológicas. Ou seja, a cruz reconcilia Deus com o homem e também reconcilia o homem com o homem, redimindo a sociedade humana.

Meu objetivo é delinear alguns dos recursos que poderiam ser usados ​​no desenvolvimento de um relato bíblico da cruz que integre essas duas dimensões, um relato que mostre tanto que a dimensão teológica é indispensável à redenção da sociedade quanto que a redenção da sociedade está diretamente implicada em nossa reconciliação com Deus.

Meu objetivo final é responder à pergunta de Anselmo, “Cur Deus Homo?” [Por que Deus se fez homem?], de uma forma que demonstre não apenas a necessidade teológica, mas também a necessidade “sociológica” da cruz.

I.


Levantar a questão dessa forma imediatamente gera um conflito com o pensamento secular. Certamente, cristãos e secularistas concordam que a sociedade precisa ser redimida. Embora os secularistas possam se opor ao uso de uma palavra com forte carga religiosa como “redenção”, uma das forças motrizes da modernidade pós-iluminista tem sido a paixão por libertar a sociedade humana de suas patologias para que ela possa florescer em liberdade e paz.

Uma questão central que divide cristãos e modernos tem a ver com os meios para alcançar essa condição. Para o cristianismo, a sociedade é redimida pelo Filho Encarnado, que entrou em um mundo desordenado e pervertido, cambaleando sob a maldição e a ira de Deus (Rm 1, 18-32) para nos redimir “da maldição da Lei, fazendo-se maldição por nós” na cruz (Gl 3, 13). Pelo sangue de Cristo e por meio de Sua cruz, judeus e gentios foram restaurados como “um novo homem” e “reconciliados em um só corpo” (Ef 2, 11-16).

Por meio de Jesus, sociedades dilaceradas pela violência, pelo ódio e pela inveja, sociedades infladas de orgulho, sociedades distraídas e obcecadas pela sensualidade são renovadas em alegria, paz, paciência, amor, bondade, fidelidade e autocontrole.

Para os modernos, por outro lado, o cristianismo é uma das patologias das quais a sociedade deve ser libertada. Os modernos sentem repulsa pela ideia de expiação substitutiva e pelo sacrifício. Que Jesus tome o nosso lugar é injusto e impróprio de Deus.

Segundo Nietzsche, o “deus na cruz” não pode ser o redentor da sociedade e da vida humana; em vez disso, a cruz foi a negação da vida. Para outros, afirmar que uma morte violenta está no cerne da história acaba por legitimar a violência, e sugerir que a sociedade e a cultura humanas só podem ser redimidas por um evento ocorrido no primeiro século, um evento ocorrido nos confins orientais do Império Romano, é patentemente absurdo.

Quem precisa disso? Se liberalizarmos os sistemas políticos, ajustarmos a estrutura de incentivos da economia, quebrarmos as odiosas barreiras de classe… se tudo isso puder ser feito, em breve o leão se deitará com o cordeiro, e a vaca e o urso pastarão juntos. Essa confiança de que a sociedade pode ser redimida pelo esforço humano atravessa todo o espectro político; seja ao se defender a necessidade de um regime conservador de lei e ordem, seja uma agenda liberal de eliminação da discriminação e das desigualdades.

As diferenças entre conservadores e liberais são menos importantes do que seu acordo essencial de que a sociedade pode ser redimida pela lei. Ambos concordam que uma “nova ordem dos tempos” pode ser estabelecida pela convenção constitucional, sem o sangue da crucificação ou o milagre da ressurreição.

Teólogos do mundo moderno sentiram a pressão dessas objeções às teorias tradicionais da expiação. Começando com os [antitrinitários] socinianos do século XVI, e cada vez mais nos dois séculos subsequentes, as teorias sociológicas (e psicológicas) da expiação suplantaram as teorias teológicas anteriores.

Para os teólogos modernos, a cruz não efetuou uma transformação da vida humana, mas, em vez disso, estabeleceu um exemplo do tipo de vida que regeneraria o homem. Se todos vivêssemos como Jesus, dedicando-nos aos outros, simpatizando com os miseráveis, identificando-nos com os rejeitados, poderíamos inaugurar um novo milênio.

A história intelectual está repleta de paradoxos, e vários deles estão envolvidos no abandono, pela teologia moderna, das teorias da satisfação pela expiação. Com efeito, muitos pensadores modernos, ansiosos por escapar da longa sombra de Anselmo, descobriram que alguma ideia de expiação e substituição era essencial para qualquer filosofia moral coerente. Kant serve para ilustrar esse ponto.

De acordo com a análise oferecida por R. R. Reno, Kant, como outros pensadores do Iluminismo e do pós-Iluminismo, tentou unir três premissas relativas à possibilidade de conversão redentora para o homem ou para a sociedade.

Primeiro, de acordo com o critério da “continuidade pessoal“, um homem ou um corpo social que se converte do mal para o bem deve, de alguma forma, permanecer o mesmo ao longo do processo de mudança. Caso contrário, obviamente, nenhuma mudança ocorreu, mas apenas substituição.

Segundo, de acordo com o princípio da “determinação moral“, o que somos moralmente é quem somos. Nossa condição moral é a chave para a nossa identidade.

Finalmente, de acordo com o critério (pelagiano) de “potência pessoal“, o poder de mudar do mal para o bem deve estar nos próprios seres humanos. Mas Kant, em última análise, não conseguiu evitar algum tipo de expiação, mesmo uma expiação substitutiva.

Há evidentemente um conflito entre o critério de “continuidade pessoal” e o critério de “determinação moral“. Se nossa condição moral determina nossa identidade, então o “novo homem” não é a mesma pessoa que o velho homem e, se isso for verdade, não parece haver nenhuma continuidade moral significativa entre o velho homem e o novo.

O problema se torna agudo na análise de Kant sobre a punição. Aqueles que pecam devem ser punidos, mas o novo homem não é o mesmo que o velho homem e, portanto, é injusto que ele sofra as consequências das ações de seu antigo eu. Mas se o novo homem não sofre quaisquer consequências dos pecados de seu antigo eu, então não parece haver nenhuma continuidade moral significativa entre o velho homem e o novo.

A solução de Kant para esse dilema é introduzir um conceito de sofrimento vicário. Embora o novo homem não seja estritamente responsável pelos pecados de seu antigo eu, ele sofre as consequências dos pecados do velho homem.

Como afirma Reno: “A pessoa justa que procuro me tornar paga a dívida da pessoa pecadora que eu atualmente sou“. Kant não dispensou a necessidade de expiação substitutiva e sofrimento vicário, mas apenas os realocou.

Em vez de uma expiação externa por meio dos sofrimentos e da morte de Jesus, Kant oferece uma autoexpiação. Aqui fica claro que o critério de “potência pessoal” de Kant é supremo acima dos demais: o que Kant e o Iluminismo rejeitam não é a expiação em si, mas a ideia de que precisamos de outra pessoa para expiar por nós.

Fundamentalmente, o iluminismo rejeitou a doutrina cristã da expiação porque ela conflitava com a suposição básica de que o homem é autônomo, capaz de trilhar seu próprio caminho.

Desejo me concentrar, no entanto, em um segundo paradoxo, que é este: ao mesmo tempo em que teólogos se ocupavam em buscar alternativas aos relatos sacrificiais da morte de Cristo, antropólogos e psicólogos descobriam que o sacrifício estava no cerne da sociedade antiga e primitiva e havia deixado uma marca permanente na psicologia e na cultura humanas.

Freud acreditava que a sociedade surgiu de um assassinato primordial, e o monumental O ramo de Ouro, de James Frazer, traçou o mito do deus que morre e ressuscita através da mitologia grega e de outras mitologias, mostrando como isso forneceu o pano de fundo para rituais de morte e ressurreição capazes, como se acreditava, de renovar a natureza e a sociedade.

No início do século XX, Marcel Mauss descobriu vínculos entre intercâmbios religiosos e intercâmbios sociais ao se concentrar no fenômeno da troca de presentes. As relações com os deuses eram constituídas por oferendas sacrificiais, da mesma forma que as relações entre os homens eram nutridas pelo dar e receber mútuos.

Em meados do século passado, Mary Douglas defendia a lógica de noções supostamente primitivas de profanação, pureza e sacrifício, e afirmava que elas ainda estavam em ação em nossa própria cultura higienizada.

Nos últimos trinta anos, o relato mais completo sobre o sacrifício e seu papel na regeneração social foi oferecido pelo crítico literário e filósofo franco-americano René Girard. Girard desenvolveu uma teoria da religião e da cultura que destaca o papel formativo do sacrifício e da busca por “bodes expiatórios”, e essa teoria o levou a se converter ao cristianismo. Vale a pena refletir sobre a teoria de Girard por alguns instantes.

No centro da obra de Girard estão suas noções de “desejo mimético” e “rivalidade mimética“. Ao contrário da suposição iluminista de que os homens são autônomos, Girard afirma que somos radicalmente sociais, tanto que até mesmo nossos desejos — que frequentemente consideramos exclusivamente nossos — são socialmente formados. Desejamos “mimeticamente”, isto é, porque imitamos os desejos dos outros.

Quando vemos outra pessoa, especialmente alguém que admiramos, desejando algo ou alguém, começamos a desejá-lo também. Isso é simplesmente um fato da vida humana, de acordo com Girard, mas implica também num viés intrínseco tendente à rivalidade. Se noto o desejo do meu amigo por uma mulher e começo a reproduzir esse desejo, logo somos tragados para uma rivalidade por aquela mulher. Afinal, há apenas uma mulher entre nós.

As sociedades podem degenerar em pouco mais do que uma rede de rivalidades miméticas, e nesse ponto elas atingem o que Girard chama de “crise sacrificial“, um momento em que

o amor esfria, a amizade se desfaz, os irmãos se dividem. Nas cidades, motins; nos países, discórdia; nos palácios, traição; e o vínculo rompido entre pai e filho”, quando a vida é dominada por “maquinações, vacuidade, traição e todas as desordens ruinosas nos direcionam inquietamente para os nossos túmulos. (Rei Lear 1.2.106-109, 112-114)

Tal guerra de todos contra todos só pode terminar de duas maneiras: ou a sociedade se desintegra completamente, ou as rivalidades são neutralizadas pelo sacrifício. Uma sociedade em meio a uma crise sacrificial se reunifica e restaura a harmonia direcionando a violência da rivalidade para um bode expiatório.

Como cada membro da sociedade se une a outros em aversão ao “estranho” que serve como vítima sacrificial, o massacre do sacrifício ajuda a restaurar a ordem. Rivais se tornam amigos quando encontram um terceiro para atacar juntos. Para Girard, essa teoria sociológica leva a uma teoria da religião: sacrifícios rituais são repetidos regularmente para evitar a dissolução e manter a ordem e a unidade de uma comunidade religiosa.

Há mais na teoria de Girard, mas este esboço é suficiente para indicar como Girard foi levado a abraçar o cristianismo. Na visão de Girard, embora os Evangelhos pareçam endossar esse mecanismo sacrificial, eles na verdade o minam. Jesus é transformado em bode expiatório, mas os Evangelhos (ao contrário dos mitos antigos) insistem em sua inocência e, assim, expõem a dinâmica do sacrifício.

A disseminação do Evangelho e os próprios Evangelhos, portanto, desvendam a dinâmica da busca por bodes expiatórios que serviu de base para todas as sociedades anteriores e abre a possibilidade de uma outra cidade, uma sociedade baseada não na vitimização e no massacre, mas no amor. Apesar do interesse e da admiração de Girard pelos Evangelhos e por Jesus, ainda ficam questões pendentes.

Primeiro, não está claro se a teoria de Girard requer algo como uma cristologia ortodoxa: por que é necessário que o bode expiatório seja o Filho de Deus em carne, ou que exista um deus? Girard afirma em sua obra mais recente que somente o Filho de Deus pode pôr fim ao mecanismo do bode expiatório, mas toda a teoria foi desenvolvida antes que Girard chegasse a essa confissão. Parece, na teoria, que a encarnação [do Filho] é extrínseca à expiação, algo que pode não ser o caso.

Segundo, na teoria de Girard, a redenção não ocorre de fato na cruz; em vez disso, a história da cruz expõe os fundamentos da cultura e, portanto, a pregação do Evangelho é o momento da redenção. Por mais verdadeiro que isso seja sob certos aspectos, fato é que, na doutrina cristã ortodoxa, a pregação do Evangelho é o anúncio de um evento consumado que objetivamente, independentemente de qualquer resposta ou anúncio, mudou o mundo.

Apesar dessas fragilidades, a teoria de Girard levanta, em outro nível, questões que foram inadequadamente respondidas nas teorias tradicionais da expiação. Ao situar a cruz no contexto de uma história cultural de sacrifício, Girard demonstra com impressionante clareza por que a redenção teve que assumir a forma que assumiu: a morte sacrificial de uma vítima inocente.

E Girard demonstra que existe uma conexão interna entre a cruz e a redenção da sociedade. Em suma, ele insiste na necessidade sociológica da cruz e, se não podemos aceitar inteiramente suas respostas, pelo menos podemos apreciar a força de suas perguntas.

II.


Além de Girard e outros estudos antropológicos, diversos desenvolvimentos na teologia recente fornecem recursos para explorar as dimensões sociológicas da expiação. Enumerarei três, desenvolvendo o último com um pouco mais de detalhes.

Primeiro, um trabalho detalhado e valioso foi realizado sobre Levítico durante o século XIX e, inspirado pelo trabalho de Jacob Milgrom, Mary Douglas e outros, o estudo do livro de Levítico tornou-se uma indústria em crescimento nos estudos do Antigo Testamento. Isso produziu uma compreensão mais sutil e precisa da natureza do sacrifício na Bíblia, que é um pano de fundo essencial para a compreensão do significado do sacrifício de Jesus.

Dois pontos ilustrarão como isso pode afetar a teologia da expiação. Os sacrifícios do Antigo Testamento eram de fato expiações, purificando o pecado por meio da morte de um substituto, mas esse era apenas um momento de uma sequência sacrificial maior. Após ser morto, o animal era transformado em fumaça para ascender ao céu e sua carne era dada ao adorador como alimento, e todo esse ritual se enquadra na rubrica de sacrifício.

Biblicamente, falar de Jesus como “sacrificial” significa não apenas que Ele foi morto por nossos pecados; o “sacrifício” de Cristo abrange Sua ressurreição, ascensão, Pentecostes e até mesmo a Eucaristia. Falar do sacrifício de Cristo é dizer que Ele alcançou a expiação ao passar da morte para a presença de Seu Pai.

Em segundo lugar, o sacrifício é um ato litúrgico e, se a expiação foi sacrificial, então foi um ato de adoração. Mas como um ato de adoração do Filho Encarnado expia o pecado?

Explorar essa questão pode nos aproximar de Tomás de Aquino, que ensinou que o ato supremo de Cristo, de obediência reconciliadora, era uma Eucaristia suprema e redentora. A principal explicação de Jesus para Sua morte ocorreu na Última Ceia, e isso pode ser mais significativo do que os protestantes, pelo menos, imaginam.

Voltando-se para os estudos do Novo Testamento: desde o artigo marcante de Krister Stendahl, “Paul and the introspective conscience of the West“, estudiosos do Novo Testamento reconheceram que Paulo não era um teólogo da alma, mas sim um teólogo de Israel e um arauto apostólico de um Evangelho contra-imperial.

A teologia política é tão central para Paulo quanto o perdão dos pecados individuais. Claramente, Paulo também é um arauto de Cristo crucificado. Se ele é tanto um teólogo da cruz quanto um teólogo de Israel, as cartas de Paulo são centrais em qualquer esforço para explorar as dimensões sociológicas da expiação.

Além disso, se Paulo via Jesus como o clímax da história de Israel, então essa história deve desempenhar um papel muito maior em nossa compreensão da expiação do que o tem feito tradicionalmente. Nossa teologia da expiação não pode ignorar o Antigo Testamento e passar imediatamente do pecado de Adão para a cruz. A teologia da expiação deve voltar-se primeiro para o judeu, e também para o grego.

Por fim, e de forma um pouco mais abrangente, as abordagens recentes da Trindade são muito relevantes para esta discussão. Como disse Bonhoeffer, a questão “Quem” é mais fundamental do que a questão “Como”. A pergunta “Quem é o Redentor?” molda nossa resposta à pergunta “Como a redenção se realiza?”.

E a resposta do Novo Testamento à pergunta “Quem” é: Pai, Filho e Espírito. Como isso se encaixa em nossa compreensão da cruz? Seguindo o exemplo de Barth, a maioria dos autores da teologia trinitária enfatiza que devemos passar da trindade econômica para a ontológica, isto é, da história da redenção para a nossa compreensão de quem Deus é em Si mesmo.

A teologia propriamente dita deve se inspirar na revelação de Deus, em Seus tratos com Israel, e em Jesus. Michael Ramsey resumiu: “o Deus [do Antigo Testamento] é tal como o Cristo, e n’Ele não há, de forma alguma, qualquer diferença em relação a Cristo“.

Se nos movermos na direção oposta — da Trindade ontológica para a econômica —, corremos o risco de formular uma doutrina genérica de Deus que limita de antemão o que Deus poderia fazer, uma teologia apofática que define Deus sem qualquer referência às Suas palavras ou obras reais.

Isso sugere que a doutrina da expiação deve se “encaixar” e ser consistente com o que sabemos da vida interior do Pai, Filho e Espírito, e que a expiação, de fato, é uma das principais realidades nas quais essa vida interior é revelada. Para completar este ponto, podemos tomar emprestados alguns insights do teólogo católico francês François Xavier Durrwell.

Dois temas guiam a teologia trinitária de Durrwell. Primeiro, à maneira agostiniana, ele concentra a atenção no Espírito como o vínculo de unidade do Pai e do Filho e como o amor no qual o Pai gera o Filho. Segundo, na trilha dos insights de Atanásio, ele insiste que as relações entre Pai e Filho são recíprocas, mutuamente determinantes.

O Pai é tão dependente, para Sua Paternidade, da existência do Filho quanto o Filho é dependente do Pai, para Sua Filiação. Não há Filho sem Pai, mas também é verdade que o Pai não é Pai a menos que tenha um Filho.

A maneira de Durrwell apresentar esses pontos, no entanto, é peculiarmente esclarecedora. Como resumido por Anne Hunt, Durrwell ensinou que

O Espírito Santo… flui do Pai não apenas em um sentido primordial ou originário, mas em resposta amorosa ao Filho. Em outras palavras, podemos entender que o amor do Filho pelo Pai incita o amor do Pai pelo Filho.

O próprio Durrwell declarou o ponto desta forma: “O Pai enche o Filho com seu Espírito de Amor, e o amor que toma conta do Filho extrai do Pai o dom do Espírito em um ciclo perpétuo“.

Essa concepção da vida trinitária é certamente evidente na economia da salvação, isto é, na obra expiatória do Filho Encarnado. Como Pedro disse em seu Sermão de Pentecostes, o Filho que obedeceu até a morte foi exaltado por Seu Pai e recebeu o dom do Espírito, que foi então derramado sobre os discípulos reunidos. (Atos II, 14-36)

Se pudermos raciocinar da economia para a ontologia — partindo do pressuposto de que Deus é como Ele se revelou — então esta é uma revelação da vida inter-trinitária: o Pai dá o Espírito ao Filho que, no Espírito, se oferece ao Pai em amor e obediência, o que, por sua vez, provoca o derramamento do Espírito do Pai para o Filho. Eis o círculo; ou, como disse Catherine LaCugna, a vida trinitária como eterno movimento quiástico e intercâmbio.

Isso nos dá uma ideia da estrutura da expiação, bem como de sua importância sociológica. Na cruz, o Filho, encarnado em semelhança de carne pecaminosa e operando de acordo com as exigências do mundo caído, ofereceu-se ao Seu Pai em perfeita obediência até à morte e, como resultado, obteve o dom do Espírito de Seu Pai amoroso. A dimensão sociológica se segue imediatamente.

O Espírito é o vínculo da comunhão, o Senhor e doador da vida, incluindo a vida social. Quando o Espírito é derramado, a terra é renovada, os frutos do Espírito florescem, o justo decreto da lei é cumprido e os homens adoram e servem ao Criador em vez da criatura.

A necessidade da redenção da sociedade pode ser declarada como uma necessidade do derramamento do Espírito, que é a unidade da sociedade do Pai e do Filho, e o Espírito nos é assegurado pela obediência do Filho ao Pai.

Uma teologia trinitária da expiação integra, portanto, as dimensões teológica e sociológica e dá um passo em direção à explicação da necessidade sociológica da cruz. O Espírito é necessário para a redenção da sociedade; a obediência do Filho na cruz assegura o Espírito; e, portanto, o “sacrifício” de Jesus é a condição necessária para a redenção da sociedade.

Um excelente artigo recente de Kahled Anatolios, publicado na Pro Ecclesia , destaca outra característica de um relato trinitário da expiação. Anatolios descreve o Espírito como agente imanente (dentro da vida trinitária) do “amor mútuo” do Pai e do Filho, e a obra econômica do Espírito (as ações de Deus fora de Si mesmo) como a “disponibilidade” de Deus para nós. É por meio do Espírito que passamos a compartilhar a filiação inerentemente “incompartilhável” do Filho Eterno. Essa soteriologia trinitária também assume uma dimensão eclesial ou social.

O Espírito, que é o agente da disponibilidade de Deus para nós, trabalha para nos abrir à disponibilidade para os outros. Como Anatólio afirma:

Pelo Espírito, experimentamos, desde dentro, o apelo para disponibilizar aos outros tanto amor quanto nós mesmos recebemos enquanto “amados”, de modo que a disponibilidade externa desse amor, no Espírito, se torna igual ao nosso status de amados, no Filho.

Como a disponibilidade mútua é o pré-requisito da comunidade, é o Espírito, assegurado e dado a nós pelo (e no) Filho em Sua expiação, que é o vínculo de qualquer verdadeira “comunidade”.

III.


Tenho discutido a teologia e a “teoria” da expiação e buscado maneiras de expressá-las. Mas Robert Jenson está, sem dúvida, correto ao afirmar que uma teoria da expiação é muito menos importante do que sua proclamação, e particularmente sua proclamação litúrgica.

Quer dizer, o que tornará a necessidade sociológica da cruz mais óbvia e persuasiva não são as investigações de um teólogo, mas a alegria, o louvor e o autossacrifício de uma Igreja que conhece, adora e serve a Jesus, e a Ele Crucificado.

Originalmente publicado em: https://firstthings.com/cross-and-culture/ (Tradução nossa, com permissão do First Things)

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