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Bonum est diffusivum sui

(POL) Liberal-totalitarismo e a Torre de Babel

Liberal-totalitarismo e a Torre de Babel: a pretensão nimrodiana de John Rawls em O Liberalismo Político

Introdução

No artigo anterior desta série, busquei explicar como as formulações dos princípios da justiça e de questões correlatas – como a do problema da inveja -contidas no livro mais famoso de Rawls, Uma teoria da justiça, já prenunciavam, de certa maneira, os rumos que a política do partido democrata acabou empreendendo nos últimos anos. Eles apontam especialmente na direção de uma promoção da agenda de minorias em matéria comportamental, de uma certa leniência em relação ao lumpemproletariado da sociedade e de certa animosidade velada em relação à classe média (semelhante à de certa professora brasileira).

Neste artigo, complementar ao anterior, proponho algo um pouco diferente: lançar luz sobre a doutrina rawlsiana a partir do quadro teológico-hermenêutico proporcionado pela narrativa bíblica da Torre de Babel, contida no livro do Gênesis. Creio que uma interpretação simbólica desta nos fornece um arquétipo bastante adequado para promover uma leitura repleta de sentido daquilo que é proposto pelo autor norte-americano.

Ao lermos o primeiro versículo da narrativa bíblica da torre de Babel, contida no capítulo 11 do Gênesis, deparamo-nos, imediatamente, com algo significativo: Toda a terra tinha uma só língua, e servia-se das mesmas palavras.” (Gn. 11,1) De fato, se atentarmos bem à proposta de Rawls, daremos conta de que ela se apresenta como uma superação do utilitarismo. Este, por sua vez, baseia-se exatamente na pretensão de estabelecer uma linguagem unívoca nas coisas humanas, que, a exemplo das ciências físicas matematizadas, permitiria aos homens promover um cálculo hedônico, capaz de mensurar a soma dos prazeres da humanidade, de maneira a poder promover a maior satisfação para o maior número.

O que Rawls recrimina no utilitarismo, contudo, como já tivemos a oportunidade de dizer no artigo anterior, aparece, agora, reafirmado em O liberalismo político com ainda maior clareza: o que o incomoda naquela doutrina não é seu caráter instrumentalizador, mas sim a referência a uma unidade do bem, justamente aquilo que a assemelha a toda a tradição anterior, greco-católica:

“Uma das distinções mais importantes entre as concepções de justiça existentes é a que se verifica entre aquelas que abrem espaço para uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis, ainda que conflitantes, cada qual com sua própria concepção do bem, e aquelas que sustentam que não há senão uma concepção do bem […]. Platão, Aristóteles e a tradição cristã, representada por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, situam-se no lado de um único bem, razoável e racional. Essas visões sustentam que as instituições se justificam na medida em que promovem de modo efetivo esse bem. […]. O utilitarismo clássico de Bentham, Edgeworth e Sidgwick faz parte dessa tradição dominante.” [1]

No fundo, essa linguagem se baseia no desejo de poder (scientia propter potentiamfalam uma só língua: se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seus empreendimentos.” Como também visto anteriormente, a proposta de Rawls é proporcionar aos membros da sociedade por ele projetada os instrumentos para a consecução dos seus projetos de vida. Nisto, ela se afigura, como se afirmou no artigo anterior, mais utilitarista que o utilitarismo. 

Exatamente por este motivo, a consistência de sua proposta é semelhante à de uma barra de chocolate sob o sol escaldante do verão em Bangu, uma vez que a máxima prioridade do cidadão político hipotético rawlsiano é a manutenção da liberdade de submeter à revisão o seu “fim último” (deixar a meta em aberto).

Sem dúvida alguma, este é exatamente o mesmo grau de consistência de sua doutrina da justiça como equidade, não apenas como apresentada em Uma Teoria da Justiça, mas também em sua reformulação exposta em O Liberalismo Político. De fato, neste livro, o autor destaca ainda mais o caráter construtivista de sua empreitada, em um capítulo intitulado “O Construtivismo Político”.

Depois disseram: ‘Vamos, façamos para nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre o nosso nome, para que não sejamos dispersos pela face de toda a terra’.” (Gn.11,4). Semelhantemente ao que ocorre na narrativa bíblica, a proposta de Rawls consiste na construção de uma cidade terrena, com uma “torre cujo cimo atinja os céus”. Sua doutrina da justiça como equidade apresenta-se exatamente como uma proposta de construtivismo político, isto é, sua proposta de cidade com uma torre. Deixando de lado, por ora, o significado desta última, indagamo-nos: em que consiste, afinal, esse construtivismo político?

Para Rawls, ele consiste sobretudo na apresentação de determinados “princípios de justiça” como resultado de um procedimento de construção baseado essencialmente na “razão prática”. Aqui, evidentemente, trata-se não do conceito aristotélico de razão prática, voltada à ação em vista de uma vida boa, mas de uma razão que “se ocupa da produção de objetos de acordo com uma concepção desses objetos” [2]. Essa produção de objetos mentais mediante um procedimento mental, baseia-se em suposições sobre a pessoa e a sociedade, “estipulações… necessárias para elaborar a ideia de que os princípios de justiça resultam de um procedimento adequado de construção”. [3] Mas, o que significa, afinal, um procedimento adequado?

Para Rawls, significa adotar “uma visão construtivista para especificar os termos equitativos de cooperação social, tal como determinados pelos princípios de justiça adotados pelos representantes de cidadãos livres e iguais, quando situados de forma equitativa.” [4]

Essa perspectiva, poderíamos até pensar, assemelha-se à democracia, como ela acontece “na prática” – isto é, no sentido corrente de ‘prática’. No entanto, os cidadãos do mundo da “razão prática” rawlsiana, chamada também “posição original” (à qual já aludimos no artigo anterior) em muito pouco se assemelham aos cidadãos livres e iguais na prática. Nas palavras do próprio autor:

“Para explicar o construtivismo político necessitamos fazer três perguntas[:]
[…]
[C]omo artifício procedimental de construção, a própria posição original é construída? Não, ela é simplesmente modelada. […] nosso objetivo é expressar, nesse procedimento, todos os critérios relevantes de razoabilidade e racionalidade que se aplicam aos princípios e critérios de justiça política.”
Isso nos leva à terceira pergunta: o que significa dizer que as concepções de cidadãos e de sociedade bem ordenada estão embutidas no procedimento construtivista ou são modeladas por ele?” [5]

A resposta é dada algumas páginas mais adiante:

“As restrições impostas às partes na posição original de fato são externas a elas como agentes racionais de construção, meros personagens artificiais que habitam o nosso dispositivo de representação. A despeito disso, as restrições expressam o razoável“ [6]

Isso nos põe, contudo, diante de outra questão – e é muito justo que a perguntemos –: no que consistirá, pois, o razoável? Em primeiro lugar, é necessário notar que “o construtivismo político aceita a visão de Kant de que os princípios da razão prática originam-se… em nossa consciência moral, informada pela razão prática. Não se originam de nenhuma outra parte. Kant é a fonte histórica da ideia de que a razão […] prática, origina e se autentica a si mesma.” [7] Ou seja, o construtivismo político se assenta declaradamente sobre um raciocínio circular. Isso fica ainda mais claro em outra passagem, na qual Rawls admite que isso se aplica não apenas à categoria do que é racional, mas também do que ele chama de “razoável”:

“Afirmei desde o princípio que o construtivismo procede a partir da união da razão prática com as concepções apropriadas de sociedade e de pessoa e do papel público que desempenham os princípios de justiça. […]. Mas quais são as concepções apropriadas e como elas surgem?
A resposta geral é a seguinte: os princípios da razão prática… e as concepções de sociedade e de pessoa são complementares […] os princípios da razão prática são expressos pelo pensamento e pelo julgamento de pessoas razoáveis e racionais e são aplicados por elas em sua prática social e política.
Assim, podemos denominar as concepções de pessoa e de sociedade de “concepções da razão prática”: elas caracterizam os agentes que raciocinam e especificam o contexto dos problemas e das questões aos quais os princípios da razão prática se aplicam. Desse modo, a razão prática apresenta dois aspectos: princípios de razão e juízo práticos, de uma parte, e pessoas, naturais ou corporativas, cuja conduta é moldada por esses princípios, de outra. Sem as concepções de sociedade e de pessoa, os princípios da razão prática não teriam sentido, uso ou aplicação. …
O fato de serem razoáveis e racionais significa que são capazes de entender, aplicar e agir de acordo com os dois tipos de princípios práticos.” [8]

Eis, em suma, a concepção de Rawls, exposta em vários livros, ao longo de centenas, talvez milhares de páginas, sintetizada em alguns parágrafos. Ela não passa, ao fim e ao cabo, de uma petitio principii — em português claro: ‘raciocínio circular’, “falácia de Tostines” ou, para pôr de uma maneira ainda mais simples, ‘enrolação’! Aqueles que preferirem uma linguagem ainda mais popular podem se utilizar também da palavra ‘migué’.

“E disseram uns aos outros: “Vamos, façamos tijolos e cozamo-los no fogo”. Serviram-se de tijolos em vez de pedras, e de betume em lugar de argamassa.” (Gn. 11,3): modelados a partir do barro lodacento da mente do autor – erigida à categoria de uma razão prática autossuficiente e autodivinizatória – os cidadãos razoáveis por ele ideados não passam de meros fantoches: são os tijolos de sua construção, mantidos juntos pelo betume da falácia denominada consenso sobreposto, que consiste “das doutrinas abrangentes razoáveis que provavelmente perdurarão e conquistarão adeptos ao longo do tempo sob uma estrutura básica justa (tal como a concepção política a define)”. [9] Soa como aquela música do Pink Floyd, só que com mais prudência e sofisticação.

E “…uma torre cujo cimo atinja os céus”: a novidade de O liberalismo político

Porém, boa parte do que até aqui se comentou sobre O liberalismo político não passa de uma reformulação, em termos mais claros, do que já estava presente em Uma teoria da justiça. Tudo isso diz respeito àquilo que ele denomina “o primeiro estágio” de sua empreitada (a teoria da justiça como equidade). A grande novidade da obra consiste, contudo, na passagem que Rawls faz, a partir da Parte II do livro, a um “segundo estágio…”, a saber: “de que maneira a sociedade democrática bem-ordenada de justiça como equidade pode estabelecer e preservar a unidade e a estabilidade, considerando o pluralismo razoável que é inerente a essa sociedade.” [10]

Como afirma o autor noutro lugar, uma teoria “puramente procedimental, que não contivesse princípios para uma ordem social justa, não teria utilidade em nosso mundono qual a meta política consiste em eliminar a injustiça e guiar a mudança em direção a uma estrutura básica equitativa” [11] No entanto, uma teoria que contivesse princípios sem modelos de aplicação, também morreria na praia. É destes procedimentos que Rawls trata aqui.

Acabamos de ver, mais acima, o que significa ‘razoável’ para ele: qualquer um que preste assentimento aos dois princípios de justiça elaborados por ele em seu construto mental. A forma como ele pretende ver essa “razoabilidade” aplicada nas instituições talvez acabe por soar familiar para aqueles de nós que estão suficientemente atentos ao desenrolar das nossas instituições políticas nos últimos anos, encharcadas de liberalismo de esquerda norte-americano:

“Se […] entendemos que o poder político é o poder dos cidadãos como corpo coletivo, perguntamos: sob que condições esse poder é exercido de forma apropriada [de forma tal] que esse nosso exercício seja justificável a outros e respeite o status dos outros cidadãos de pessoas razoáveis e racionais?
A essa questão, o liberalismo político responde: nosso exercício do poder político é plenamente apropriado só quando é exercido em conformidade com uma Constituição […]. A isso, o liberalismo político acrescenta que todas as controvérsias que […] envolvam elementos constitucionais essenciais, ou questões de justiça básica também devem ser dirimidas, tanto quanto possível, com base em princípios e ideais que se possam subscrever de modo similar.” [12]

Para Rawls, essas “controvérsias […] devem, tanto quanto possível, ser resolvidas recorrendo-se somente a valores políticos”. Segundo ele, “os valores políticos expressos pelos princípios e ideais do liberalismo político costumam ter peso suficiente para prevalecer sobre todos os demais valores que podem conflitar com eles.” [13]

No entanto, como isso não é uma garantia absoluta numa democracia, na qual as pessoas de carne e osso têm suas concepções abrangentes de bem, o autor se indaga ”como é possível que os valores do domínio especial do político… em geral possam prevalecer sobre quaisquer outros valores com que possam conflitar? [14]

O único argumento – se é que se pode chamar assim – aduzido pelo autor é que tais valores (“[n]a justiça como equidade […] – os valores da justiça – […] expressos pelos princípios de justiça para a estrutura básica”) “são muito importantes”. Após isso, ele passa a apresentar uma série de “outros grandes valores políticos – os da razão pública –”, que “se expressam nas diretrizes para a indagação pública e nos passos dados para tornar essa indagação livre e pública, bem como informada e razoável.” [15]

Mas, no que consiste, afinal, a razão pública? Responde o autor: “o conteúdo da razão pública… é fornecido pelo que denominei ‘concepção política de justiça’ que suponho ser de caráter liberal, no sentido amplo do termo. Com isso, quero dizer três coisas: a primeira, é que essa concepção especifica determinados direitos, liberdades e oportunidades fundamentais…; a segunda é que atribui prioridade especial a esses direitos, liberdades e oportunidades, sobretudo com relação às exigências do bem geral e de valores perfeccionistas.” [16]

Deste modo, “no ideal de razão pública, é que os cidadãos devem conduzir suas discussões fundamentais nos marcos daquilo que cada um considera uma concepção política de justiça fundada em valores que se pode razoavelmente supor que outros subscrevam e cada qual se dispõe, de boa fé, a defender tal concepção.” [17] Evidentemente, tais valores serão os valores liberais esposados pelo autor.

Isto significa o seguinte: “em matérias políticas fundamentais, as razões que se baseiam explicitamente em doutrinas abrangentes jamais devem ser introduzidas na razão pública. As razões públicas que uma doutrina dessa índole subscreve” – isto é, aquelas conclusões dessa doutrina abrangente que porventura concordem com a concepção política de Rawls – “podem, com certeza, ser apresentadas, mas não a própria doutrina. Denominemos esse entendimento da razão pública de ‘visão exclusiva’.” [18]

No entanto, dado o peso da realidade, Rawls também apresenta, ”em contraposição a esta visão exclusiva”, “outra visão, que permite aos cidadãos, em determinadas circunstâncias, apresentar o que veem como a base de valores políticos e que está arraigada em sua doutrina abrangente, desde que o façam de maneiras que fortaleçam o próprio ideal de razão pública. Podemos denominar esse entendimento da razão pública de ‘visão inclusiva’.” [19]

Ao final, de sua elucubração, ele mesmo se pergunta, então, “se devemos entender o ideal de razão pública de acordo com a visão exclusiva ou de acordo com a visão inclusiva”. [20], respondendo, mais adiante, o seguinte:

“Em diferentes circunstâncias, nas quais diferentes doutrinas e práticas se manifestam, o ideal pode realizar-se melhor de diferentes maneiras: nos bons tempos, com base no que à primeira vista parece ser a visão exclusiva e, em tempos não tão favoráveis, no que parece corresponder à visão inclusiva”. [21]

Ora, como expressa o autor, em outro trecho, “em um regime constitucional em que há controle jurisdicional de constitucionalidade das leis ou ‘revisão judicial’, a razão pública é a razão de seu tribunal supremo” [22]

Porém, “o papel do tribunal supremo não é meramente defensivo, mas também o de fazer valer a razão pública, de forma apropriada e contínua, ao servir de modelo institucional dessa razão” […]. É o único ramo dos poderes do Estado que se apresenta, de forma visível, como uma criatura dessa razão e exclusivamente dela.”[23]

Neste sentido, Rawls assinala, como papel do tribunal, “dar força e vitalidade à razão pública no fórum público”. Ele desempenha esse papel, segundo o autor, “quando interpreta clara e efetivamente a Constituição de maneira razoável”. [24] Qualquer semelhança com o contexto brasileiro atual pode ser (bem, talvez não seja) mera coincidência.

Interlúdio: um pouco mais sobre a Torre de Babel

Falemos um pouco mais sob a Torre de Babel, tanto em seu significado histórico e teológico, antes de nos encaminharmos à conclusão. Ele nos é proporcionado pelas interpretações de seus comentadores – de Flávio Josefo a Bento XVI – e pela realidade histórica na qual, segundo fundados indícios, a narrativa se inspirou.

Flavio Josefo, em seu clássico Antiguidades Judaicas (cujo título optou-se por traduzir no Brasil como História dos Hebreus), diz que o propósito de Deus era que mandassem colônias a outros lugares, a fim de que, multiplicando-se e estendendo-se, pudessem cultivar mais terras, colher frutos em maior abundância e evitar as divergências que de outro modo poderiam ser suscitadas entre eles.” [25]

“Porém […] Ninrode [citado em Gn. 10, 9] os levou a desprezar a Deus.” Ele “persuadiu-os de que deviam unicamente ao seu próprio valor, e não a Deus, toda a sua boa fortuna. E, como aspirava ao governo e queria que o escolhessem como chefe, abandonando a Deus, ofereceu-se para protegê-los contra Ele (caso Deus ameaçasse a terra com outro dilúvio), construindo uma torre para esse fim, tão alta que… as águas não poderiam chegar-lhe ao cimo”. [26]

Santo Agostinho, em A cidade de Deus, destaca o caráter de inimizade entre Nimrode e Deus que, segundo o bispo de Hipona, não teria suficientemente destacado pelo tradutor da Bíblia ao empregar a expressão “venator ante dominum” (na Vulgata, venator coram Domino; em ambos os casos caçador diante do Senhor), e não de oposição, a qual também pode ser expressada pelo vocábulo grego ἐναντίον. Para ele, o correto seria venator contra dominum (caçador contra o Senhor).[27] Esta expressão faz mais sentido ainda, se nos damos conta de que o vocábulo grego κυνηγὸς expressa, num sentido figurado, não somente um caçador, mas também um perseguidor. [28]

Mas talvez o aspecto mais interessante a se salientar para a compreensão da doutrina de Rawls à luz da narrativa bíblica seja seu necessário complemento histórico na figura dos zigurats assírios. O teólogo Luis Arnaldich enfatiza o propósito religioso do edifício, cuja finalidade consistia em obrigar a divindade a descer dos céus do modo escolhido pelos homens. [29] Por isso, essas construções contavam com uma série de escadarias em espiral. Daí, ressalta o comentador da Bíblia de Salamanca, o significado da palavra Bâb-ilâni, a saber, porta dos deuses. [30] A Babilônia, complementa, era o centro comercial do Oriente. [31]

Essa realidade está expressa também na Bíblia, de maneira velada, no próprio livro do Gênesis, que relata o sonho de Jacob:

“Jacó… tomou o caminho de Harã. Chegou a um lugar, e ali passou a noite[…]. Serviu-se como travesseiro de uma das pedras que ali se encontravam, e dormiu naquele mesmo lugar. E teve um sonho: via uma escada, que, apoiando-se na terra, tocava com o cimo o céu; e anjos de Deus subiam e desciam pela escada. No alto estava o Senhor, que lhe dizia: “Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai e o Deus de Isaac; darei a ti e à tua descendência a terra em que estás deitado […] e todas as famílias da terra serão benditas em ti e em tua posteridade”. Jacó, despertando de seu sono, exclamou: […]“Quão terrível é este lugar! É nada menos que a casa de Deus; é aqui, a porta do céu”. No dia seguinte, pela manhã, tomou Jacó a pedra sobre a qual repousara a cabeça e a erigiu em estela, derramando óleo sobre ela. […] “Esta pedra da qual fiz uma estela será uma casa de Deus, e pagarei o dízimo de tudo o que me derdes”. (Gn. 28,10-14;16-18;22)

Suprema Corte como Torre de Babel, os zigurats assírios e a “cultura” da morte

Diante de tudo o que se disse até aqui, é possível interpretar a empreitada de Rawls como uma grande paródia da obra de Deus e uma releitura moderna (ou pós-moderna) da torre de Babel. Em seu construtivismo político, o autor, a partir do barro de sua mente, modela o novo Adãocriado em justiça e razoabilidade com a finalidade pura e simples de recriar – em sua mente, mas não sem a pretensão de torná-la realidade – a sociedade à sua imagem e semelhança.

Sua ideia de tribunal supremo como criatura exclusivamente da razão pública, cuja função é definir de que maneira os princípios superiores de doutrinas abrangentes (religiosas ou filosóficas) podem descer dos céus ao encontro dos homens, à semelhança dos zigurats assírios, afigura-se como uma nova Torre de Babel, uma “porta dos deuses” cujo propósito é ficar, se possível, para sempre fechada.

Por outro lado, é possível notar, na doutrina de Rawls, uma certa teofobia, semelhante à atribuída por Josefo a Nimrode. No caso deste, ela era motivada pelo medo de um novo dilúvio. No caso do primeiro, ela parece se mover pelo medo de que uma “doutrina abrangente irrazoável” comprometa o pluralismo liberal, ocasionando divisão na democracia, fazendo reemergir os conflitos ideológicos que marcaram o século XX, ou as guerras de religião do século XVI. Aqui, a teofobia se manifesta sobretudo na forma de agathofobia e de alethofobia.

Afinal, como afirmado pelo autor, seu construtivismo político “não emprega… o conceito de verdade”; “prescinde do conceito de verdade”. [32] Baseia-se, ao fim e ao cabo, num capricho do autor liberal. A semelhança entre tal projeto e o da Torre de Babel não poderia resultar mais explícito do que desta leitura de Ratzinger:

“Enquanto depender de decisões humanas, a marcha da história se afigurará como um eterno retorno ao episódio da Torre de Babel. As pessoas buscam incessantemente construir […] uma ponte que leva ao céu, isto é, […] desejam que o homem goze daquela liberdade plena, daquele bem-estar irrestrito, daquele poder ilimitado que lhes parece ser a essência do divino e que gostariam de ver cá embaixo e reter na própria vida. No entanto, essas tentativas […] se fundamentam […] num ‘sufocamento da verdade’. […]. Seu chão não as sustenta.” [33]

Tampouco seu destino nas últimas décadas, em que as minorias da esquerda liberal multiplicam-se em seu número e em sua mútua conflitividade – desprovidas de doutrinas abrangentes e cheias de apetites desordenados – deixa de se assemelhar ao da Torre: Vamos: desçamos para lhes confundir a linguagem, de sorte que já não se compreendam um ao outro.’. Foi dali que o Senhor os dispersou daquele lugar pela face de toda a terra, e cessaram a construção da cidade.” (Gn. 11, 7)

Esta postura, comenta novamente Ratzinger, parece “punitiva, mas… não se trata de um Deus invejoso. Na realidade, essa mesma mão, ao contrário do poder de uma ação autodestrutiva e baseada em inverdades, […] é […] a visibilidade da lei interior de uma ação humana que se contrapõe à verdade e, assim, tende ao nada, à morte.” [34]

Obviamente, tampouco a pretensão nimrodiana de John Rawls escapa a esta última constatação de Ratzinger acerca da tendência intrínseca aos sistemas que, à semelhança do seu, contrapõem-se à verdade. Prova disso é que, em uma das poucas passagens de seu livro em que exemplifica uma aplicação específica de seu conceito de razão pública a uma discussão judicial acerca de uma questão fundamental, acaba por afirmar “que qualquer doutrina abrangente […] que exclua aquele direito […] de interromper a gravidez no primeiro trimestre não é nessa medida, razoável; … estaríamos indo contra o ideal de razão pública se votássemos com base em uma doutrina abrangente que negue esse direito” [35]

Este é o destino de qualquer doutrina (abrangente ou não), que se negue a reconhecer realidade da Encarnação Divina, centro de gravidade da Revelação Cristã, tal qual expressa no Evangelho de João, em que Cristo se revela como o verdadeiro mediador entre o Céu e a terra e, portanto, a verdadeira escada de Jacó: – “Em verdade, em verdade vos digo: vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem.”  (Jo 1, 51) – e sua continuidade histórica na Igreja – “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16, 18). Como expressou o cardeal Ratzinger, em uma de suas conferências sobre as virtudes teologais:

“parece-me relevante que a magnanimidade da vocação humana supere a dimensão individual da existência humana e não possa ficar restrita apenas à esfera privada. Uma sociedade que transforma a essência do homem em algo meramente privado e se define a si mesma segundo uma secularização completa (a qual inevitavelmente se transformará numa pseudorreligião e numa nova totalidade escravizante) será uma sociedade inerentemente triste, um lugar de desespero, uma vez que estará baseada na redução da dignidade da pessoa humana.” [36]

Como afirmado pelo próprio Rawls, “a origem histórica do liberalismo político (e do liberalismo em geral) está na Reforma e em seus desdobramentos”. [37] Os fautores desta – e aqui não vai, obviamente, nenhum juízo a respeito daqueles que já nasceram no seio das instituições moldadas por tais doutrinas –, ao negarem a continuidade da Encarnação na Igreja visível e instituir como princípio fundamental a livre interpretação das Escrituras, dentro de um marco individualista da salvação, reintroduziu a confusão babilônica entre o Povo de Deus, por meio da linguagem da soberba.

A partir desse princípio, inerentemente fragmentador – que não é exclusivo do protestantismo, mas sim do nominalismo, que lhe é precedente e, em parte, ocasionador –, não supreende que a tendência das instituições criadas a partir desse episódio seja de se esfacelar em cada vez mais denominações, levando o Povo de Deus para cada vez mais longe da unidade, a despeito de ações de indivíduos protestantes para retomar a unidade dos cristãos: sejam aquelas de Leibiniz e Bach; sejam as de cristãos mais recentes.

Por outro lado, a figura de Rawls se assemelha, em sua perseguição sutil à religião, não apenas à de Nimrode, mas também à de outro personagem bíblico: “O Dragão, vendo que fora precipitado na terra, perseguiu Mulher que dera à luz o Menino. […]. E ele se estabeleceu na areia da praia” (Ap. 12,13;18)

Este dragão – cuja marca é a perseguição à Mulher, isto é, à Igreja que dá o Menino à luz, constantemente – assenta-se sobre a areia da praia, isto é, na multidão de indivíduos isolados, filhos da discórdia provocada pelo seu princípio degenerador.

Continuando a nos servir das preciosas lições de Bento XVI:

“Pieper dizia então que a «tristeza preguiçosa» era «um dos traços determinantes da secreta face de nosso tempo[…]. Essa tristeza», continua, «determina, enquanto sinal visível da secularização, a face de toda época em que a chamada às tarefas verdadeiramente cristãs começa a perder sua obrigatoriedade pública.” [38]

“Esta tristeza preguiçosa, continua o então cardeal, é justamente aquela “preguiça metafísica” que a tradição cristã denominou «acídia», na qual pode ser encontrada, segundo S. Tomás, a raiz do desespero. “Um desespero” que “pode também vestir a máscara do otimismo – e mais: do otimismo ideológico,[…] a qual, no fundo, é sempre uma máscara do desespero.” [39]

Dentre as modalidades de otimismo ideológico inclui-se, segundo Ratzinger, “o pelagianismo burguês liberal, cujo alicerce encontra-se no argumento: se Deus existe, e se Ele de fato se preocupa com os homens, não há de ser tão terrivelmente exigente como leva a crer a fé da Igreja. […]. Implícita nessa postura amplamente difundida encontram-se tanto a autorredução do homem […] quanto sua autossuficiência”. [40] O liberal é habitado por um paradoxo: abriga em si a preguiça (falsa humildade) metafísica e o orgulho da negação “em relação ao amor infinito de que ele, em seu contentamento burguês, acredita não precisar. Em tempos mais tranquilos, até se pode viver um pouco nessa atitude. Quando, porém, sobrevém um momento de crise, só há duas possibilidades: ou o homem se converte, ou cairá no desespero.” [41]

Desta maneira, o homem acaba por seguir a mesma sorte dos princípios que regem a sua sociedade, pois “[u]ma sociedade cuja ordem pública é determinada pelo agnosticismo não é uma sociedade que se tornou livremas uma sociedade desesperada, marcada pela tristeza do homem que foge de Deus e se contradiz a si mesmo.”

Por outro lado,

“[u]ma Igreja sem coragem de apresentar, inclusive publicamente, o valor de sua visão do homem não seria mais sal da terra, luz do mundo, cidade situada sobre a montanha“[42]. Também ela seria, portanto, parte do problema. “Mais importante, no entanto,” salienta o autor, “é que o diagnóstico também aponta o caminho para a cura. Somente a coragem de reencontrar e aceitar a dimensão divina de nosso ser pode restabelecer em nosso espírito e nossa sociedade uma estabilidade nova e íntima.” [43]

Essa totalidade plena do ser, cuja chave está na fé, é um amor incondicional, um amor que consiste num enorme «sim» à minha existência.”[44] O amor, que é afirmação no ser, é, antes de mais nada, afirma Ratzinger, criativo: “o amor de Deus foi a força que criou o ser a partir do nada.” [45] Não se trata, aqui, de “algo meramente particular, individual”, que “me encerra num mundinho próprio. Antes, abre para mim o universo inteiro, que por meio desse mesmo amor torna -se «paraíso». […].” [46]

Mas isto só se torna possível, se escutarmos “o segundo grande sim de Deus, dado na cruz […], nosso renascimento …, que nos tornará definitivamente vivos.” Por isso, “todos nós, confirmados por Deus, fomos chamados a participar de seu sim. Nós recebemos o encargo de continuar a Criação, de sermos cocriadores com Ele, com a «nova» tarefa de ser para o outro no sim do amor, de converter verdadeiramente o dom do ser num dom.” [47]


Referências:

[1]   John Rawls, O Liberalismo Político, Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011 p. 158-159.
[2]   Ibid., p. 110.
[3]   Ibid., p. 111.
[4]   Ibid., p. 115.
[5]   Ibid., p. 122-123.
[6]   Ibid., p.126.
[7]   Ibid., p. 118. 
[8]   Ibid., p. 127-128.
[9]   Ibid., p. 166.
[10] Ibid., p. 157.
[11] Ibid., p. 337.
[12] Ibid., p. 161.
[13] Ibid., p. 162.
[14] Ibid., p. 163.
[15] Ibid., p. 164.
[16] Ibid., p. 263.
[17] Loc. cit.
[18] Ibid., p. 293.
[19] Loc. cit.
[20] Loc. cit.
[21] Ibid., p. 298.
[22] Ibid., p. 272.
[23] Ibid., p. 278.
[24] Ibid., p. 280.
[25] História dos Hebreus, Liv. I, Cap. 4. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
[26] Loc. cit.
[27] A Cidade de Deus, Liv. XVI, Cap. 5.
[28] Cf. o significado dos verbos κυνηγετέω e κυνηγέω, no Lidell-Scott-Jones.
[29] BABEL, Torre de. In: Gran Enciclopedia Rialp, p. 567.
[30] Profesores de Salamanca, Biblia Comentadat. 1. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960, p. 160.
[31] Ibid., p.161.
[32] Rawls, O Liberalismo Político, p. 111.
[33] Joseph Ratzinger. Olhar para Cristo: exercícios de fé, esperança e caridade. Traduzido do alemão por Kristina Michahelles. São Paulo: Quadrante, 2019, p. 61-62.
[34] Ibid., p. 62.
[35] Rawls, O Liberalismo Político, p. 288.
[36] Ratzinger, Olhar para Cristo…, p. 83.
[37] Rawls, O Liberalismo Político, p. xxvi.
[38] Ratzinger, Olhar para Cristo…, p. 82-83. 
[39] Ratzinger, Olhar para Cristo…, p. 87.
[40] Essa postura é nitidamente assumida por Rawls, que afirma, quanto ao assunto, o seguinte: “É possível que a doutrina da fé livremente professada [credo  ao gosto do freguês] tenha se desenvolvido porque resulta difícil, senão impossível, acreditar na condenação eterna daqueles com quem cooperamos de forma frutífera e por longo período de tempo, com confiança e lealdade, na preservação de uma sociedade justa”. – O Liberalismo Político, p. xxvii.
[41] Ratzinger, Olhar para Cristo…, p. 87-88.
[42] Ibid., p. 83.
[43] Ibid., p. 85.
[44] Ibid., p. 77.
[45] Ibid., p. 85
[46] Ibid., p. 78.
[47] Ibid., p. 96.

Marcos Paulo

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