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Liberdade religiosa e laicidade estatal no Brasil

Kayan Acassio da Silva

É fato notório que, antes da era Cristã, a distinção entre a religião e as outras esferas da vida era dificilmente imaginável, cabendo à instituição religiosa regulamentar todos os aspectos da vida comunitária. Atendo-se à história Ocidental, é possível constatar que já na Grécia antiga o cidadão ateniense, por exemplo, tinha o dever de participar do culto a Zeus e a Apolo, tendo sido Sócrates condenado por impiedade. No Império Romano, por sua vez, a despeito de uma relativa liberdade de cultos, a recusa em participar de atos públicos de adoração religiosa ao imperador era considerada atentatória ao Estado. 

O primeiro documento a garantir a liberdade de culto, após séculos de cruenta perseguição aos cristãos, foi o Édito de Milão, de 313, por iniciativa do Imperador Constantino, que o assinou um ano após a sua vitória, atribuída ao Deus cristão, na batalha de Ponte Mílvia. Tal decreto proibiu a perseguição ao Cristianismo, ao passo que garantia a liberdade de crença, nele reconhecida como a primeira e principal preocupação do Império, assegurando a todos a livre e irrestrita prática religiosa em conformidade com a estrutura estatal, a paz vigente e a garantia do bem comum.[1]

O Império Romano chegou ao seu fim no Ocidente em 476, restando apenas a parte oriental, que ainda duraria por mais um milênio. Antes disso, porém, o Cristianismo chegou a ser declarado a religião oficial do império (por decreto do imperador Teodósio, em  380, com a publicação do Édito de Tessalônica). 

Diante do vácuo de autoridade decorrente da invasão bárbara, os bispos romanos, devido à sua precedência, passaram a assumir a responsabilidade pelas questões judiciais, de defesa militar e demais matérias seculares. É em tal contexto que se adentra na Idade Média.

A fim de garantir a autonomia da Igreja em relação ao Império Romano do Oriente, o papa Gelásio I escreve, no ano de 494, a epístola Duo Sunt [2] ao Imperador Bizantino Anastácio, na qual discorre sobre a existência de duas esferas de governo: a espiritual, dos sacerdotes, e a temporal, dos príncipes, de modo que os governantes, em matéria religiosa, devem recorrer aos sacerdotes, enquanto esses devem cumprir as leis emanadas pela autoridade secular. 

Tal doutrina foi relativamente bem-sucedida em estabelecer uma divisão clara entre Estado e Igreja, impedindo que a administração de ambos coubesse a uma mesma autoridade – ao que se chamava de Cesaropapismo -, como ocorria no Império Romano ocidental e seguia ocorrendo no Império Bizantino. 

Na prática, porém, a relação entre a autoridade espiritual e o poder temporal continuou marcada por tensões. Estas permaneceram latentes durante o período Merovíngio – em que a Igreja se encomendou à proteção do Reino Franco do Ocidente – e, posteriormente, durante as dinastias Carolíngia e Otoniana, até a eclosão da chamada Querela das Investiduras, à qual, em 1075, a Reforma Gregoriana procurou dar solução. 

A querela versava sobre a investidura (isto é, a posse, no cargo) de bispos por senhores temporais, já que os primeiros também eram considerados, além de autoridades religiosas, administradores temporais das terras de suas dioceses e, portanto, vassalos dos senhores daquelas terras. A querela teve fim apenas no ano de 1122, com o martírio de S. Tomás Becket e a Concordata de Worms, que se considera uma vitória da posição gregoriana.

Voltando os olhos para a evolução dos institutos da laicidade estatal e da liberdade de crença na cronologia do Estado brasileiro, tem-se a fundação do Reino Português, em 1139, o qual passou a contar com o reconhecimento do papado no ano 1179, por meio da Bula Manifestis Probatum. [3]

Por ocasião da expansão marítima iniciada pelas Coroas Ibéricas no século XV, o Brasil foi “descoberto” por treze caravelas que ostentavam a Cruz da Ordem de Cristo, tendo sido celebrada, no domingo de Páscoa, a primeira Missa no território recém encontrado.

Até essa época, com base no que constava nas Ordenações portuguesas (compilados de leis que serviam como os atuais códigos jurídicos e que tiveram vigência no Brasil, em matéria cível, até a promulgação do Código Civil de 1916), não se falava em separação entre Estado e Igreja.

A primeira Constituição do Brasil, a do Império, de 1824, foi publicada “em nome da Santíssima Trindade”, estabelecendo, em seu art. 5º, o Catolicismo como religião oficial, admitindo apenas o culto doméstico ou privado de outras religiões, que permaneciam impedidas de erigir qualquer templo.

Ela consagrou também o instituto do padroado, que permitia ao monarca nomear bispos e acatar ou negar cumprimento a disposições eclesiásticas oriundas de Roma. Esta sobreposição do poder temporal à autoridade religiosa acabou por gerar, no Segundo Reinado, uma crise sem precedentes no Brasil, com a eclosão da Questão Religiosa. Na ocasião, dois bispos foram condenados e presos pelos tribunais seculares por terem seguido ordens do Papa que não haviam sido aprovadas pelo beneplácito do Imperador, mantendo fechadas irmandades religiosas que contavam, em seus quadros, com integrantes ligados à maçonaria.

Contudo, como a legitimidade da monarquia e da hereditariedade estava em grande parte fundamentada na religião Católica, a crise da Questão Religiosa foi um marco importante no enfraquecimento da monarquia brasileira. Neste sentido, a medida representou, para Dom Pedro II, “um tiro no próprio pé”. 

No fundo, seria possível afirmar que ela atentava mais contra a monarquia do que a tentativa de assassinato que o imperador viria a sofrer mais tarde, em 15 de julho de 1889, pois punha em xeque não apenas a vida do rei, mas as próprias bases da instituição monárquica.

Pouco mais de um mês após a Proclamação da República foi publicado o Decreto nº 119, assinado por Rui Barbosa, Benjamin Constant e Campos Salles, futuro presidente da República, que mudaria as relações entre Estado e religião. Nos seus termos, ficava estabelecida a proibição de intervenção da autoridade federal e dos estados em matéria religiosa, consagrada a liberdade de cultos e extinto o padroado.

A Constituição de 1891, ao estabelecer a liberdade de culto de qualquer fé e proibir incentivos a qualquer religião por parte dos governos federal e estaduais, foi responsável por confirmar um processo que há muito já se delineava. 

É impossível deixar de notar, porém, a predominância de uma certa atmosfera secularizante no país. Graças a ela, conferiu-se reconhecimento, à época, exclusivamente ao casamento civil, e o ensino religioso foi abolido nas escolas públicas – ambos atualmente reconhecidos pela Constituição de 1988.

Esse exemplo, do início da República, torna possível constatar a desproporcionalidade das decisões tomadas pelos governantes de então, profundamente ignorantes da realidade fática e dos anseios da população, cuja maior parte almejava (e ainda almeja) celebrar o casamento religioso (e apenas esse, se for o caso, ficando facultado o seu registro civil) e que seus filhos recebessem ensino religioso.

Recentemente, o tema da autonomia das esferas secular e religiosa voltou à tona, por ocasião de determinações governamentais que resultaram no fechamento de templos religiosos devido à transmissibilidade do novo Coronavírus. 

Tal qual a Questão Religiosa de 150 anos atrás, o cerne da discussão estava na submissão das ordenações religiosas ao poder secular. Se o Estado se quer “laico”, poderia se imiscuir no funcionamento dos templos? De outra feita, estando as religiões envoltas em um ordenamento jurídico civil, até onde podem negar a aplicação da lei quando esta afeta a sua prática? A resposta é controversa

Por um lado, é importante reparar que, nos últimos anos, o STF tem prolatado decisões que alegam favorecer a chamada “liberdade religiosa”. Em um caso, a corte afirmou, por unanimidade, que é constitucional a lei de proteção animal que permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana. 

Em outra decisão, a Suprema Corte garantiu, também, aos sabadistas, a realização de etapas de concursos públicos em datas e horários distintos dos previstos em edital por candidato que invoca escusa de consciência e crença religiosa.

Por outro lado, ao julgar, no ano passado, a ADPF 811, o STF decidiu, por nove votos a dois, que chefes de poder executivo estadual e municipal poderiam proibir, por decreto, a realização de cultos religiosos. Especialmente relevante para o problema que temos discutido aqui é o seguinte trecho do acórdão, que expõe toda a ambiguidade e até mesmo insegurança do princípio da laicidade: 

A dupla função da liberdade religiosa é proteger todas as fés, as crenças e os cultos, mas também afastar o Estado laico de ter que tomar suas decisões, principalmente decisões fundamentais para a sobrevivência dos seus cidadãos, com base em dogmas religiosos. O Estado não se mete na fé, a fé não se mete no Estado!!!”.

Esta alegação (de que os princípios religiosos podem ser prontamente afastados quando o que está em jogo é um potencial risco à sobrevivência dos cidadãos) certamente causa perplexidade quando se recordam outras decisões da mesma corte. Afinal, os princípios da moral cristã também são os primeiros a serem solenemente ignorados (juntamente, aliás, com princípios básicos de biologia e embriologia), quando se trata da sobrevivência de crianças no útero, menosprezada por decisões permissivas de atos intencionalmente contrários a ela. Em outras palavras, certas autoridades mandam facilmente fechar igrejas em nome da vida corporal, mas ao mesmo tempo buscam permitir práticas contraceptivas e abortivas que atentam frontalmente contra ela.

Tais ambiguidades são uma prova cabal do conhecido paradoxo de Böckenförde: “o Estado liberal secularizado assenta-se em pressupostos que ele mesmo é incapaz de garantir”. E uma amostra de que, na prática, promove-se hoje exatamente aquilo que Habermas chamou de “adaptação cognitiva do ethos religioso às leis impostas pela sociedade secular” [4], o que não se coaduna, nem de longe, com um modelo político que se queira real e minimamente democrático.

Nesse sentido, para que se alcance a desejável harmonia entre os poderes secular e religioso, faz-se necessária uma reflexão sincera e aprofundada a respeito dos limites da laicidade, a fim de que não se coloque em risco a legítima liberdade religiosa.


Kayan Acassio da Silva é advogado atuante em Direito Religioso e membro efetivo da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR.

[1] BETTENSON, Henry. Documentos da igreja cristã. 2 ed. São Paulo: Aste, 1963, p. 45.

[2] Gelasius I on Spiritual and Temporal Power, 494. Disponível em  https://sourcebooks. fordham.edu/source/gelasius1.asp

[3] Alexandre PP. III, Bula Manifestis probatum, 23 de Maio de 1179: Lisboa, Torre do Tombo, Cx. das Bulas, m. 16, doc. 20. Disponível em https://www.arqnet.pt/portal/ portugal/documentos/manifestis_probatum.html

[4] HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph. Dialética da Secularização: sobre razão e religião. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007, p. 54.

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