Todos sofrem, em alguma medida, de algum preconceito contra a Espanha oriundo da Leyenda Negra. Se você pesquisar sobre o assunto, vai ser pego de surpresa, por mais instruído que seja. No meu caso, por exemplo, sempre tinha por conta que os piratas do Caribe eram espanhóis. Ledo engano. Os piratas mais famosos da era das Grandes Navegações eram em sua maioria ingleses, que viviam a importunar as cidades e as frotas navais espanholas no ultramar. É de se espantar que um fato tão notório (basta consultar o nome dos bucaneiros caolhos) chegue até nós de forma completamente invertida, a ponto de imaginarmos que as vítimas eram os algozes.
Esse é apenas um pequeno fato, talvez o menor deles, mas mostra a abrangência dessa vasta operação de propaganda contra o Império Espanhol.
O termo Lenda Negra não é estranho para os estudantes de história, mas ganhou recentemente nova relevância graças a historiadora espanhola Maria Elvira Roca Barea, que em sua obra Imperiofobia y Leyenda Negra: Roma, Rusia, Estados Unidos y el Imperio español [ainda sem tradução no Brasil] conseguiu enquadrar o tema dentro de uma perspectiva mais ampla. Ela mostra que a operação sistemática de difamações contra uma nação imperial não é uma excepcionalidade histórica sofrida pela Espanha, mas é algo recorrente na história, quando um império cresce a ponto de ser quase insuperável econômica e militarmente.
Contudo, os ataques atingiram tão profundamente a alma espanhola, que são poucos aqueles, dentro da própria Espanha, com coragem para defender seu próprio país contra uma historiografia estrangeira, normalmente de vertente franco-inglesa, que denigre ou ignora os feitos relevantes do país vizinho, por vezes transformando vitórias em fracassos, como no caso que cito no início deste artigo.
A leitura de Imperiofobia y Leyenda Negra é, portanto, bastante útil como introdução a alguns eventos praticamente desconhecidos, e que apenas por tomar conhecimento deles mudamos radicalmente nossa visão da história.
Listo aqui, portanto, um feito tirado do livro Eso no estaba en mi libro de Historia de España [também inédito no Brasil], de Francisco Garcia del Junco, apenas para exemplificar como nossa visão histórica ficou distorcida pela historiografia consolidada no século XIX.
O lago espanhol
Por 380 anos, Espanha dominou um oceano inteiro, tanto pelas descobertas de ilhas, rotas de navegação e conhecimento cartográfico, como pelo controle militar e comercial, de tal forma que esse oceano foi intitulado por seus próprios inimigos como “lago espanhol”. Trata-se do Oceano Pacífico, o maior oceano da Terra.
Ao final do século XVI, se a costa oeste da América era bem conhecida pelos espanhóis, a costa asiática era completamente desconhecida. A necessidade de lançar-se ao oceano ocorreu devido ao privilégio português de ter encontrado a primeira rota alternativa às Índias. Com coragem e destreza, os portugueses, no século XV, conseguiram contornar a África (algo completamente impensável até então) e estabelecer uma rota relativamente segura até o Oriente.
As especiarias vendidas ali eram fundamentais para as técnicas de conservação de alimentos, sobretudo a carne, e as rotas por terra ficaram extremamente comprometidas com a expansão dos muçulmanos no Oriente Médio.
Os espanhóis não poderiam usar as mesmas rotas sem infringir as leis de comércio que vigoravam à época. Portanto, encontrar um caminho para a Ásia dando a volta ao mundo seria vital para a economia da coroa espanhola. Vasco Núñez de Balboa foi o explorador que descobriu o Oceano Pacífico, atravessando o atual Panamá por terra, em 25 de setembro de 1513. A partir daí, Carlos V custeou a exploração de Fernão de Magalhães (curiosamente, um português) e Juan Sebastián Elcano para comprovar se era possível chegar a esse oceano contornando o sul da América e, assim, chegar aos distantes territórios da Ásia.
Essa missão, para a época, era algo que beira ao fantástico, ainda mais com os poucos recursos disponíveis naquele século, entretanto a rota foi descoberta, numa viagem que começou em agosto de 1519 e terminou em setembro de 1522. Magalhães não chegou ao termo da viagem, fora morto por indígenas na ilha de Mactán, atual Filipinas (nomeadas assim em homenagem ao Rei Felipe II de Espanha), mas Elcano conduziu a nau Vitória até seu termo.
Assim, a Espanha descobriu não apenas que era possível uma rota alternativa às Índias, mas algo ainda mais assombroso: que todos os oceanos estavam interligados. A partir daí muitas e muitas explorações começaram a ser realizadas, e a Espanha cartografou rotas e ilhas que nunca antes se podiam imaginar. Muitas delas viraram posteriormente refúgios de piratas e almirantes ingleses, porque não era possível popular todas elas.
Nem todas essas expedições acabavam bem, pois o oceano era imenso e desconhecido e muitos se perdiam. Como não se sabia o regime de ventos e as correntes marinhas, era comum que barcos se perdessem e ficassem à deriva até que acabassem a água e o alimento e a tripulação perecesse. Um dos problemas da exploração do Pacífico era que suas correntes marinhas empurravam sempre ao oeste, e não se sabia, até 1564, que caminho deveria ser feito para voltar. Foi o espanhol Andrés de Urdaneta o responsável por encontrar o caminho de retorno ao México, que foi batizado de torna-viagem, navegando das Filipinas rumo ao noroeste do Pacífico. Finalmente estava estabelecida uma rota relativamente segura entre Filipinas e Nova Espanha (atual México) bem como o estabelecimento da comunicação entre todas as colônias espanholas do mundo.
Essa rota possibilitou um sem fim de novas expedições e o número de ilhas encontradas pela Espanha é quase incontável. Cito apenas algumas famosas: Filipinas, Marianas, Hawaii, Papua-Nova Guiné e Galápagos. Ela também facilitou enormemente as relações internacionais espanholas na Ásia e durante o século XVI e XVII o “lago espanhol” era um feito incontestável.
Enquanto vigorou o domínio do Pacífico pela Espanha, existiu intenso comércio internacional, sobretudo pelas relações estabelecidas com o império chinês da Dinastia Ming. Também graças a primeira moeda de alcance mundial, o Real de a ocho, também chamado de dólar espanhol, uma moeda de prata, de aproximadamente 38 milímetros de diâmetro, que, justamente por ser de difícil falsificação e ter seu valor derivado de sua própria natureza, era aceita em muitos países asiáticos como moeda de reserva e de curso legal, sem contar é claro nas próprias posses ultramarinas espanholas, que eram enormes.
Para se ter ideia do alcance dessa moeda, ela era aceita como moeda de curso legal até nos Estados Unidos, mas isso acabou em 1857, com a promulgação do Coinage Act, a lei que proibiu a utilização de moedas estrangeiras de ouro e prata nos Estados Unidos .
Ao observar feitos como esses e sopesá-los na balança da história, Elvira Roca Barea sustenta que a primeira globalização ocorreu, de fato, durante o domínio espanhol do Pacífico.
Porém, a balança de poder foi se alterando ao longo do século XVIII e, no século XIX, o domínio inglês das rotas marítimas era uma realidade incontestável.
Some-se a isso a guerra entre Espanha e Estados Unidos em 1898, que acabou com as últimas colônias espanholas, e Cuba, Porto Rico, Filipinas e a ilha de Guam passaram ao domínio dos Estados Unidos. Espanha correu para vender à Alemanha as poucas ilhas que restavam, antes que fossem tomadas: Palaos, Marianas e Carolinas. Foi este o fim do império e do lago espanhol. Essa é só uma pequena amostra de como fatos relevantes podem ser subestimados e ignorados a tal ponto de ficarem quase esquecidos. Conhecer a Lenda Negra é muito importante para compreendermos questões históricas relacionadas ao início da modernidade, à globalização e à mudança do eixo político-econômico no Ocidente do sul da Europa para o norte e, daí, para os Estados Unidos. Espero voltar ao assunto em breve.
- Ver também: Quem está do lado certo da História?