Pierre Manent
First Things
Desse ponto em diante, uma tarefa ingente – e indefinida – fica implícita, porque semelhante homogeneidade nunca pode ser total, ou ela o será apenas “no fim da história”, quando a natureza, tanto humana quanto não humana, tiver sido dominada. Mas em certo sentido, e este é o ponto de Kojève, já atingimos um nível suficiente de dominação.
A ciência necessária para a conquista da natureza é interminável, é verdade, mas isto quer dizer que seu poder está destinado a crescer indefinidamente, o que significa que a razão nos possibilita imaginarmo-nos, desde já, onipotentes. Quanto à vida humana, propriamente, as diferenças opressivas vão continuar a emergir por muito tempo, mas elas já estão todas, a princípio, sobrepujadas pela declaração e institucionalização da igualdade de direitos. Em suma, os milagres da ciência e as boas obras da democracia estão suficientemente comprovados para legitimar a fé de que a democracia liberal respondeu a todas as grandes questões da política.
É claro que tal fé pode ser perdida. Quando as boas obras da democracia são menos aparentes, ou quando os delicados mecanismos do governo constitucional, necessários à garantia dos direitos, tornam-se indisponíveis numa certa situação, surge a tentação de se fazer valerem as promessas da democracia por todos os meios disponíveis – isto é, mesmo ou especialmente por meios antidemocráticos –, levar a ciência à sua plenitude e atingir a homogeneização humana pela subversão da democracia.
Aqui reside o que se chamou, com propriedade, a “tentação totalitária”. Neste sentido, como apontado pelo filósofo francês Claude Lefort em A invenção democrática (1981), sua penetrante análise da democracia, o totalitarismo é a tentativa de “encorpar” ou “hipostasiar” a democracia, de transformar a democracia “indeterminada” em um “corpo” visível. A democracia é “indeterminada” porque, no arranjo democrático, a “sede do poder”, está “vazia” – ocupada apenas provisoriamente por representantes sucessivos.
A presença do Rei era imponente; o estadista democrático é, via de regra, desdenhável. Enquanto os cidadãos não tiverem se acostumado à digna, porém modesta, função de escolher seus representantes, os representantes não serão páreo para a majestade do povo. Mas algum demagogo haverá de explicar ao povo que ele irá liderá-los até o local vazio para que eles próprios possam ocupar a sede do poder.
“O totalitarismo estabelece um mecanismo que… visa a fundir novamente poder e sociedade, a eliminar todos os sinais de divisão social, a banir a indeterminação que assombra a experiência democrática…. A partir da democracia, e contra ela, cria-se novamente um corpo.” Ao escrever estas linhas, Lefort tinha em mente principalmente o regime soviético, mas resta claro que a “raça”, não menos que a “classe”, pode proporcionar a base para a construção desse corpo novo e homogêneo.
Assim, Lefort, inspirando-se em parte na tradição fenomenológica, chama nossa atenção para o caráter corporal do político, ou o caráter político do corpo. Esta relação estreita, embora às vezes emerja no discurso em expressões como “corpo político”, permaneceu durante muito tempo eclipsada em nosso arranjo democrático. Nossos fundadores, pelo contrário, estavam todos cientes disso.
Aliás, haverá maneira melhor de definir a ordem pré-democrática? Se olharmos para um traço que a resume, então teremos de defini-la como uma ordem fundada na filiação. O lugar de cada um na sociedade era, em princípio, determinado por seu “nascimento”. O nome e situação da pessoa eram determinados pela hereditariedade. Havia apenas famílias, pobres ou ricas, nobres ou comuns, mas cada uma governada pelo chefe de família.
Ao contrário das cidades antigas, em que os chefes de família eram politicamente iguais e participavam de um mesmo “espaço público”, nas sociedades ocidentais pré-democráticas não havia espaço público. Ou melhor, o que se tornou público foi a analogia da família, a lógica da filiação e da paternidade, o fato de que a mesma representação dos laços ou uniões humanas permeava tudo. O que era, em última instância, público, isto é, o que era sagrado, era a pessoa do Rei, o corpo do Rei.
A ordem familiar, baseada como era na fecundidade do corpo e nas circunstâncias de nascimento, parece-nos hoje em dia esquisita, e até repugnante. Se formos sofisticados o bastante, diremos, com requintada altivez: era o sistema de valores de nossos antepassados; o nosso é diferente e o dos nossos netos também será diferente do nosso. Receio que eu não seja tão sofisticado.
A nossa ordem familiar não era apenas um sistema de valores ou uma construção cultural. Ela tirava sua força, sua durabilidade, sua universalidade quase-universal (antes da democracia), da consciência generalizada de que ela estava radicada não apenas em um fato indubitavelmente natural, mas naquele fato que, por assim dizer, mantém a “natureza” unida, isto é, nascimento e filiação.
É um erro comum, mesmo entre especialistas, confundir qualquer referência ao “corpo” com “organicismo”. Ele é visto ou como mera figura de linguagem, ou, com ainda mais horror, como uma representação “holista” eivada de potenciais opressões. De fato, um “corpo” é muito diferente daquilo que se entende normalmente por “organismo”. Neste, a parte está estritamente subordinada ao todo. Assim, a ideia de corpo não é absolutamente uma ideia mecânica, ou mesmo física. Ela é, ao contrário, espiritual: cada parte é ao mesmo tempo ela mesma e o todo. Neste sentido, toda sociedade, toda república, é um corpo.
Estas observações, bastante esquemáticas, ajudam-nos a compreender o sentido e a força da ordem corporal, e, pela mesma razão, a indagar-nos sobre seu repentino e quase completo desvanecimento. Lefort descreve a natureza e considera a enormidade do processo da seguinte maneira:
O antigo regime era feito de inumeráveis corpos menores que conferiam às pessoas sua posição, e estes corpos menores se dispunham no interior de um grande corpo imaginário, de cuja integridade o real proporcionava uma réplica e medida. A revolução democrática, por muito tempo subterrânea, eclode quando o corpo do rei é destruído, quando a cabeça do corpo político cai sobre o chão, quando, consequentemente, a corporeidade da sociedade se dissolve. Então ocorre algo que eu ousaria chamar desincorporação dos indivíduos. Um fenômeno extraordinário….
E por que se tratou de um “fenômeno extraordinário”? Trocando em miúdos: enquanto sociedades anteriores se organizavam de tal modo a vincular seus membros entre si, enquanto veneravam as ideias de concórdia e união, a nossa sociedade democrática se organiza de modo a desvincular, até mesmo separar, seus membros, e assim garantir sua independência e seus direitos. Neste sentido, nossa sociedade se propõe a se realizar como uma des-sociedade. Um fenômeno extraordinário, de fato!
Mas não se tornaria, então, uma sociedade assim em vias de dissociação incapaz de se sustentar (nem se o diga prosperar)? Este é o receio recorrente da sociedade moderna, proclamado tanto por conservadores quanto por socialistas, contando por aos quais se juntam, de quando em quando, alguns liberais. Mas na realidade, desmentindo todos os profetas da desgraça, as sociedades democráticas foram capazes de manter sua coesão e prosperar; para falar a verdade, elas proporcionam hoje – e a vasta maioria da humanidade concorda, neste ponto – a única maneira viável e desejável de organizar uma vida em comum.
Devemos inferir, portanto, que sua decomposição continuada foi também acompanhada de uma recomposição continuada. E qual é o princípio desta recomposição? Para encurtar a história: o princípio da representação. Como enfatizado por Lefort, à ordem da incorporação sucedeu a da representação. E o princípio por trás do princípio de representação é a vontade – a vontade do povo –, um princípio puramente espiritual. O manancial último da sociedade democrática é a fecundidade da vontade humana, ou melhor, a capacidade da vontade de produzir efeitos desejáveis.
Recapitulemos nosso itinerário até este ponto. Argumentei que o totalitarismo foi o experimentum crucis da filosofia política neste século, e que a filosofia política, diante desta prova, mostrou-se deficiente. Agora estamos em condições de aquilatá-lo de maneira mais precisa. As perplexidades que acompanham a indagação sobre a natureza do totalitarismo não se dão apenas por conta da essência peculiarmente enigmática de tais regimes. Ou melhor, sua essência enigmática deriva de outro enigma ou incerteza, que também diz respeito à democracia.
Esta incerteza é a seguinte: onde mora, e o que é, a vontade do povo? Como pode um princípio meramente espiritual conferir forma e vida ao corpo político? A “tentação totalitária” torna-se possível graças a, e encontra lugar no, território ignorado entre o “corpo” da sociedade pré-democrática, e a “alma” da política democrática. E nisto vai muito mais do que uma metáfora canhestra. De fato, chegamos ao coração das nossas dificuldades práticas e teóricas – e nele se encontra a tarefa da filosofia política, se é que importa termos uma.
Precisamos retornar, uma vez mais, ao contraste entre as sociedades pré-modernas e as democráticas, e à dialética entre ambas. Esta insistência pode parecer estranha para os norte-americanos, uma vez que os Estados Unidos na verdade não tiveram qualquer experiência de sociedade pré-democrática e não parece estar pior por isto; como reparado, de maneira tão memorável, por Tocqueville: “Os norte-americanos nasceram iguais, em vez de se o terem tornado.” Mas meu propósito, aqui, é um aprofundamento filosófico, não histórico, da questão.
Iniciemos por um paradoxo. Instintivamente, pensamos que as sociedades pré-democráticas privilegiavam a alma, frente ao corpo, do mesmo modo como supomos, instintivamente, que as sociedades democráticas repeliram as pretensões excessivas da alma e “liberaram o corpo”, ou, em dialeto saint-simoniano, “reabilitaram a carne”. Tais impressões não são de todo errôneas; há bastante verdade nelas.
Mas ao mesmo tempo, poderíamos dizer que o oposto também é verdade. Vimos que as sociedades pré-democráticas eram sociedades “incorporadas”, radicadas na fecundidade do corpo, culminando no corpo do rei. Quanto às sociedades democráticas, ao passo que elas não são particularmente religiosas, elas são política e moralmente espiritualistas, até “além-mundistas”. Eleger um representante, assim como gerar um herdeiro, é obra da vontade da mente e da alma.
Tal espiritualidade parece aplicar-se não apenas às relações políticas, mas também à vida social e moral. Sociedades democráticas tipicamente reiteram que todos os nossos vínculos, incluindo os corporais, têm sua origem numa decisão puramente espiritual, à qual se chega mediante uma plena soberania espiritual. Repelimos qualquer sugestão de que o corpo seja capaz de criar vínculos por si próprio, de que pudessem existir laços radicados essencialmente na “carne”.
A “nova família” resulta do crescente entendimento de que casamento e parentalidade são uma “escolha contínua”. Mesmo a conjunção carnal já não é mais encarada como criadora de laços por si própria, dotada de um significado em si própria: ela as é somente na medida em que, e por quanto tempo, a vontade assim a considerar. A vontade é livre para conferir e para eliminar este significado ao seu talante. Cada vez mais nos comportamos e interpretamos nosso comportamento como se fôssemos anjos que acidentalmente têm corpos. Conhecer de maneira carnal, não significa mais conhecer.
Não surpreende, portanto, que o que leva o nome de filosofia ou teoria política nos dias de hoje não seja senão angelologia. Em um espaço etéreo – talvez separado deste mundo por um “véu de ignorância” – entes que não são mais, ou que ainda não são, verdadeiramente humanos deliberam sobre as condições nas quais eles consentiriam em baixar ao nosso mundo inferior e se revestir da nossa “carne”. Eles são bastante hesitantes – não lhes falta tempo –, e seus raciocínios abstratos são complexos e multifacetados, e tão hipotéticos, que pouco peso lhes resta.
O pensamento político não pode se contentar em viver indefinidamente numa atmosfera que é ao mesmo tempo rarefeita e vulgar. O totalitarismo, é verdade, foi derrotado sem grandes contribuições da filosofia política, e a democracia parece seguir de vento em popa, sem arrecifes à vista. Mas mesmo em termos práticos, não é prudente apoiar-se exclusivamente nas virtudes cotidianas dos cidadãos democráticos.
Precisamos retomar algo do que a democracia deixou para trás em sua marcha rumo à hegemonia. A democracia moderna foi bem sucedida em asseverar e realizar a homogeneidade da vida humana, mas agora o que dela se pede é que tente recuperar e salvaguardar a heterogeneidade intrínseca das experiências humanas. A experiência do cidadão é diferente da do artista, que a seu turno é diferente da da pessoa religiosa, e daí em diante.
Estas articulações definidoras da vida humana ficariam irreversivelmente ofuscadas se prevalecesse a atual presunção de que cada ser humano, como “criador de seus próprios valores”, é ao mesmo tempo um artista, um cidadão e uma pessoa religiosa – e, de fato, tudo isto e mais um pouco. Contra esta petulância, cabe aos filósofos políticos trazer à luz novamente a heterogeneidade da vida humana.
Poder-se-ia argumentar que esta heterogeneidade é adequadamente respeitada mediante um reconhecimento público da legítima pluralidade de valores humanos. Nada poderia estar mais errado. Como Leo Strauss reparou certa vez, de maneira lacônica, o pluralismo, por ser um “ismo”, é na verdade um monismo. A mesma característica autodestrutiva pode ser predicada de nossos “valores”. Interpretar o mundo da experiência como constituído por “valores” assumidamente diversos significa reduzi-lo a um gênero comum e, portanto, perder de vista a heterogeneidade que queremos preservar.
Se Deus é um valor, o espaço público é outro, a lei moral em meu coração, outro, e o céu estrelado sobre mim ainda outro… o que não é valor, então? Ao mesmo tempo – e este é o carro chefe desta confusão – a “linguagem dos valores” nos faz perder a unidade da vida humana – este componente necessário da “autoconsciência” democrática –, ao ofuscar a diversidade desta: não se discute sobre valores, já que o valor deles reside na valoração daquele que valora. A linguagem dos valores, junto com as disposições interiores fomentadas por ela, serve, a uma só vez, à uniformidade chã e à heterogeneidade ininteligível.
O pensamento político não pode se contentar em viver indefinidamente numa atmosfera que é ao mesmo tempo rarefeita e vulgar
Decerto, Max Weber olharia consternado para um estado de coisas para cujo avanço ele involuntariamente tanto contribuiu. Como fica claro em Ciência como Profissão, ele devotou sua energia mental e anímica fora do comum à tarefa à cuja realização acabei de timidamente conclamar: o resgate, ou a preservação, da genuína diversidade das experiências humanas. Ele estava indubitavelmente certo ao observar que o Belo não é a mesma coisa que o Verdadeiro ou o Bom.
Mas mesmo nisto – ao menos, assim me parece – ele passou dos limites. Por que interpretar a diferenciação intrínseca à vida humana como um conflito, ou mesmo como uma “guerra” – a “guerra dos deuses”, correspondente ao “politeísmo” dos “valores” humanos? Por que afirmar que sabemos que algumas coisas são belas porque não são boas?
Por que dizer que sabemos que alguns entes são bons ou santos porque e na medida em que não são belos? Parece que aqui Weber deixou-se levar pela inquietude de seu espírito. Quão impacientes nós, modernos, nos tornamos! Se duas coisas não se encaixam perfeitamente, devem ser inimigas.
Talvez, tenhamos sido impacientes e inquietos desde o princípio. Não foi porventura Descartes o pai do Iluminismo e também o pai da nossa impaciência ao equiparar o que é dubitável ao que é falso? Quão mais sábia não é a opinião de Leibniz que, tranquilamente, retrucou que o que é verdadeiro é verdadeiro, o que é falso é falso, e o que é dubitável é… bem, dubitável. Precisamos mais da equanimidade de Leibniz do que da impaciência de Descartes, para que nos tornemos capazes de habitar as nossas diferentes experiências, e tirar de cada uma delas sua lição específica.
O mesmo ser humano, afinal, admira o que é belo, é motivado pelo que é bom, e busca a verdade. Às vezes, ele se depara com um “bravo homem mau”, como era o caso de Lord Clarendon, ou conhece uma bela e traiçoeira mulher. Estas complexidades, por vezes até incongruências, da experiência humana precisam ser adequadamente descritas. Geralmente, quanto mais carregadas as tintas, menos nítido é o desenho. A vida humana não legitima o desespero, e as ciências sociais não legitimam o niilismo, porque a vida humana é humanamente ininteligível.
É possível, e até provável, que o regime democrático não tivesse vindo a existir sem a impaciência de Descartes e de outros; é também possível que os cidadãos democráticos teriam adormecido se não fosse pelo chamado estridente das trombetas de Weber e outros. Mas uma democracia vitoriosa e madura faria bem em temperar esses humores extremos, e se abrir à diversidade inerente à experiência humana da mesma maneira como ela se proclama aberta à diversidade exterior da espécie humana. Este chamado parece desafiador: ao menos até agora, poucos filósofos políticos têm lhe dado atenção.
Pierre Manent é Diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Este ensaio é adaptado de um documento de conferência entregue na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., em junho de 1999.
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