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(POL) O retorno da filosofia política, parte 1

O retorno da filosofia política, parte 1

Pierre Manent
First Things

Poder-se-ia dizer que o século XX testemunhou o desaparecimento, ou fenecimento, da filosofia política. Uma prova empírica deste fato, à moda antiga, é algo fácil de produzir: é certo que nenhum Hegel, nenhum Marx, ou sequer algum Comte – alguém capaz de transmitir aos poucos e à multidão, a um só tempo, uma poderosa visão de nossa realidade social estática e dinâmica – viveu em nosso século.

Independentemente de quão alto seja o conceito que temos do talento filosófico e das realizações de Heidegger, Bergson, Whitehead ou Wittgenstein, relutaríamos em destacar qualquer um deles por sua contribuição para a filosofia políticaHeidegger, é verdade, envolveu-se em alguma ação política, inclusive com discursos, mas trata-se antes de algo a ser deplorado. O tombo de Heidegger foi dos mais feios, mas em um nível muito inferior esteve o vitupério de qualquer coisa de racional ou decente na vida cívica feito por Sartre.

É verdade que, por outro lado, autores como Sir Karl Popper e Raymond Aron prestaram contribuições valorosas tanto à epistemologia geral quanto à reflexão política, sempre num espírito de decidida e humana cidadania; e que alguns representantes de uma venerável tradição intelectual, o Tomismo, nos proporcionaram consideráveis reflexões sobre problemas morais, sociais e políticos calcadas numa visão abrangente de mundo.

Porém, a despeito destas exceções honrosas, o diagnóstico global parece, para mim, inescapável: nenhum filósofo moderno de ofício foi capaz ou esteve disposto a contribuir com uma análise completa da vida política dentro de seu quadro do mundo humano, ou, por outro lado, a elaborar sua própria concepção do todo a partir de uma análise de nossas circunstâncias políticas.

Decerto, o esforço por entender a vida política e social, neste século, não acabou. Ele até mesmo passou por uma considerável expansão, graças ao extraordinário desenvolvimento das ciências sociais, que passaram cada vez mais a determinar a autocompreensão dos homens e das mulheres modernos. Pode-se até afirmar que o trabalho coletivo e multifacetado de todos esses sociólogos, antropólogos, psicólogos, economistas e politólogos lançou mais luzes sobre nossa vida em comum do que jamais poderiam os empreendimentos de qualquer indivíduo isolado, fossem quais fossem seus talentos; que, quando aplicado à compreensão de nossa vida social e política, este “pensamento coletivo” é necessariamente mais imparcial até mesmo que um intelecto tão imparcial quanto o de Hegel; e que, neste sentido, a filosofia política, inclusive a filosofia política democrática, tem um caráter não democrático, dado que não pode ser coletivizada; e que, por conseguinte, seu fenecimento vai naturalmente de par à consolidação e expansão da democracia.

Como é o caso de toda empreitada coletiva, as ciências sociais envolvem muito mais pessoas do que ideias e princípios. Eu chegaria a afirmar que elas se assentam sobre um só princípio: a separação entre fatos e valores, que as separa da filosofia e testemunha seu caráter científico. O ocaso da filosofia política e o triunfo de tal princípio são uma só coisa. Reconheço que esta sorte de afirmação generalizante deve ser evitada; nada obstante, é um fato que a distinção entre fato e valor tornou-se não apenas o pressuposto da ciência social dos dias de hoje, mas também a opinião prevalente na sociedade em geral.

Nas atuais circunstâncias, um adolescente prova sua mudança de faixa etária, um cidadão prova sua competência ou lealdade, justamente mediante a adesão a tal princípio. E não houve lugar em que o princípio tenha sido estabelecido de maneira mais poderosa ou com maior brilho do que na obra de Max Weber. A ilimitada e tormentosa paisagem do pensamento social e político do século XX está dominada pela sombra de Weber, e por sua esmagadora influência.

Ele, em palestras a estudantes pouco após o fim da I Guerra, propôs uma indagação sobre seu dever como professor, sobre o que a sua audiência, e o público em geral, poderiam legitimamente dele exigir. Ele responde, nas reflexões posteriormente publicadas sob o título Ciência como Profissão, que eles têm direito à sua probidade intelectual: o professor, como cientista, tem a obrigação de reconhecer que o estabelecimento das estruturas intrínsecas dos valores culturais e o julgamento desses valores são duas tarefas totalmente distintas. Weber distingue rigorosamente entre ciência, que verifica fatos e relações entre fatos, e vida que necessariamente envolve avaliações e ação.

Esta asserção se tornou lugar comum nos dias de hoje e, todavia, segue sendo difícil compreender o que exatamente ela significa. Para dar um exemplo que vale por muitos: como é que alguém descreve o que se passa num campo de concentração sem emitir um juízo de valor sobre isso? Como destacado por certos comentadores, Weber, em seus estudos históricos e sociológicos, não se cansa de avaliar, mesmo ao estabelecer fatos; na verdade, ele promove uma incessante avaliação, para que seja possível estabelecer quais são os fatos. Do contrário, como ele teria sido capaz de distinguir um “profeta” de um “charlatão”?

“Nenhum filósofo moderno de ofício foi capaz ou esteve disposto a contribuir com uma análise completa da vida política dentro de seu quadro do mundo humano.”

Seja como for, está claro que, para Weber, a honestidade intelectual necessariamente evita que acreditemos ou ensinemos que a ciência é capaz de nos mostrar como deveríamos viver, e que esta mesma probidade intelectual necessariamente evita que acreditemos, por exemplo, que algo é bom porque é belo, ou vice-versa. Mas quais são as causas por trás dessa peculiar preocupação com a probidade intelectual? Na opinião de Weber, a ciência moderna a deixa exposta a um perigo especial.

A ciência moderna é caracterizada por um traço peculiar: ela é necessariamente inacabada, jamais pode ser terminada. Ela tem metas abertas, uma vez que sempre há algo mais a conhecer. Weber indaga por que seres humanos se dedicam a uma atividade que jamais pode ser acabada; por que eles tentam incessantemente conhecer aquilo que eles sabem que nunca saberão por completo. O sentido da ciência moderna é ser desprovida de sentido.

Por isso, a honestidade intelectual exige de nós que não confiramos um sentido arbitrário à ciência, que sejamos fiéis à sua falta de sentido ao levarmo-la destemidamente adiante. Esta virtude necessária é, ao mesmo tempo, desumana, ou super-humana; ela é, de fato, heroica. Uma vez que o heroísmo, embora necessário, seja raro, muitos pretensos acadêmicos ou professores acabam por sucumbir à tentação de conferir arbitrariamente algum significado humano à ciência, ou a seus resultados provisórios. Weber acreditava que o cientista que assim descumpre seu dever se transforma num demagogo ou num profeta de segunda categoria.

Aquilo que caracteriza a situação moderna é que somente a ciência pode ser objeto de afirmação ou aprovação pública. Outros valores – por exemplo, “valores” religiosos ou estéticos – não podem ser manifestados com suficiente sinceridade para se sustentarem na esfera pública. Ao final de Ciência como Profissão, lemos:

A sina de uma época caracterizada pela racionalização, intelectualização, e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo, levou os homens a expulsarem os mais sublimes e supremos valores da vida pública. Eles encontraram refúgio ou no domínio transcendente da vida mística ou na fraternidade de relacionamentos diretos e recíprocos entre indivíduos isolados. Não há nada de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nosso tempo seja intimista, não monumental; nem no fato de que hoje em dia é somente em comunidades pequenas, em contatos face a face, in pianissimo, que somos capazes de recuperar algo capaz de se assemelhar ao pneuma profético que costumava abrasar comunidades inteiras e as tornar coesas… Para aqueles que são incapazes de suportar a sina destes dias sem hombridade, dou apenas este pequeno conselho: volte só e em silêncio – sem conferir à sua atitude a publicidade tão cara aos renegados, mas de modo simples, e sem cerimônias – às velhas igrejas, que continuam de braços bem abertos.

Esta conclusão eloquente merece, e precisa, voltar a ser lida, hoje. Não há nada de antiquado ou piegas nela. De outra parte, a degradação do espaço público e a fuga para o privado mantiveram-se em ritmo constante, unidas ao poder cada vez maior da ciência de moldar cada aspecto de nossas vidas, inclusive os mais íntimos. Como consequência, a vida pública tem sido cada vez mais exclusivamente invadida por vidas privadas: o que resta do “público” não é nada senão a publicização do “privado”, ou ao menos assim parece.

Evidentemente, poder-se-ia acusar este juízo de esquecer do fato fundamental da sociedade moderna que é, sob a aparência da falta de sentido, a emergência dos mais nobres princípios de todos: democracia e autodeterminação. Não há dúvidas de que Weber, por mais simpático que fosse às suas instituições políticas, subestima a força e resiliência da democracia, e talvez seu significado e alcance. A seus olhos, a democracia não é páreo – nem remédio – para o desencantamento do mundo, e por um bom motivo: ela deriva dele. É, portanto, incapaz de reunificar os seres humanos modernos, uma vez que ela ratifica e, por assim dizer, institucionaliza suas divisões intestinas.

Se levarmos a sério Ciência como Profissão, diremos que existe um abismo, um vazio, uma falta de sentido no coração da vida moderna, uma vez que a ciência, a mais elevada e única atividade verdadeiramente pública, é desprovida de sentido. Ao mesmo tempo, se o homem moderno deseja se tornar idêntico à missão da ciência, ele tem de encarar este vazio de frente sem piscar. Neste sentido, o niilismo, ao menos este niilismo, é não somente nossa maldição, mas nosso dever. A intenção por trás da eloquência de Weber era nos manter atentos e nos forçar a voltarmos nossa atenção a este vazio nuclear. Portanto, a voz mais autorizada – pior, a única voz autorizada no campo do pensamento social e político deste século – foi uma voz desesperada.

É impossível deixarmos Max Weber para trás. Justamente por ele ocupar tamanho espaço, é difícil para nós enxergarmos a maneira como o fenômeno humano se parecia antes que ele separasse a ciência da vida. Mas é bom estarmos precavidos a ponto de perceber o quão estranha e tortuosa nossa vida intelectual e moral é atualmente. Absolutamente tudo que é humano, para a ciência, é disponível. Mediante a separação de fatos e valores, tornamo-nos capazes de desviar a enxurrada da realidade para as garrafas da ciência.

Mas não há reciprocidade: à ciência jamais se permite retornar e iluminar a realidade e a vida. A democracia é deduzida da inteligência do homem comum, que por sua vez é deduzida da inerente inteligibilidade da vida, ao menos das ocorrências cotidianas da vida. Como resultado, a democracia é o regime que tem menos tolerância em relação ao niilismo – e o niilismo cultiva um desprezo pela democracia.

Dizer que a vida é inteligível não quer dizer que ela não seja problemática ou que seja desprovida de mistério. Significa apenas que o que fazemos acompanha naturalmente aquilo que pensamos e dizemos, ou que nós normalmente damos alguma razão para aquilo que fazemos. Nossas ações são múltiplas, e nossas justificações para elas são por vezes conflitivas, e por isso precisamos deliberar e discutir. A vida intelectual é inerentemente dialética – embora, graças à separação de fatos e valores, nós tenhamos perdido isto de vista.

Weber compreendeu bem que a separação entre vida e ciência era, em certo sentido, insuportável para o homem comum, e ele corretamente notou que o desconforto dela oriundo dava origem a falsos monumentalismos, profetismos espúrios e fanatismos petulantes. A Europa viria, mais cedo ou mais tarde, a se deparar com todos estes fenômenos deploráveis numa escala que o desesperado Weber jamais havia antecipado, nem em seus momentos mais desesperados. Grossíssimo modo, poderíamos dizer que o totalitarismo foi uma tentativa de fundir ciência e vida. No comunismo, a fusão foi forçada pelo despotismo da “ciência”. No nazismo, a fusão veio de um novo despotismo da “vida”, compreendida de modo cabalmente vulgar.

O totalitarismo foi o experimentum crucis para a filosofia política do nosso século. Graças a ele, a filosofia política foi radicalmente testada, e achada reprovável. O simples fato de que tais experimentos terríveis tenham surgido era uma prova de que os intelectuais europeus não haviam desenvolvido e disseminado uma compreensão humana das circunstâncias políticas modernas. Esta alegação não pressupõe a asserção, abstrata até a insignificância, de que “ideias governam o mundo”, apenas a observação realista de que seres humanos são animais pensantes que precisam de ideias e juízos toleravelmente corretos para se orientarem no mundo.

Este truísmo é mais verdadeiro quanto mais intelectualmente ativa e capaz for a pessoa em questão. Seria injusto estender a culpabilidade pelos crimes deste século indefinidamente para trás, mas a verdade é que, depois de Hegel elaborar sua síntese, nenhum outro filósofo foi capaz de proporcionar uma explicação satisfatória, i. e., imparcial, do Estado e da sociedade modernos. A filosofia política depois de Hegel não foi sequer capaz de dar uma explicação satisfatória do totalitarismo durante, e mesmo após, tal acontecimento.

Michael Oakeshott uma vez observou que as grandes filosofias políticas são geralmente respostas a situações políticas. É fácil constatar a veracidade desta proposição, desde Platão e Aristóteles, passando por Maquiavel e Hobbes, chegando até Rousseau e Hegel. Como observei no princípio deste texto, o século XX não tirou respostas abrangentes da reflexão política, e isto a despeito do fato de a conjuntura ser do tipo mais extremo: guerras mundiais devastadoras, revoluções sanguinárias, tiranias bestiais. Se houve algum momento na história apto à publicação de um novo Leviatã, era este.

Mas nossos escritos mais relevantes sobre o fenômeno são romances: qual tratado político sobre o comunismo é páreo para 1984 ou A Revolução dos Bichos ou Um dia na vida de Ivan Denisovich ou The yawning heights? E quão estranho é perceber neste contexto que, ao menos para alguns leitores, a mais evocativa introdução à tirania nazista seja encontrada em Nos penhascos de mármore, uma fábula cujo autor, Ernst Jünger, foi um soldado e aventureiro com algo mais que uma cumplicidade passageira com a atmosfera niilista que fomentou a ascensão de Hitler ao poder.

Alguns hão de objetar que esta acusação é infundada, e que muitos livros profundos sobre o comunismo, o fascismo e o nazismo foram escritos por historiadores, cientistas sociais e filósofos políticos; além disso, que a noção de totalitarismo tomou seu uso e crédito mais da filosofia que da literatura; e que ao menos um livro filosófico sobre o assunto, As origens do totalitarismo (1951) de Hannah Arendt, obteve uma fama e exerceu um poder de fascinação comparáveis aos das obras de literatura que acabo de mencionar. A objeção é válida até certo ponto. Precisamos analisar este ingente debate.


Continua na parte 2.

Pierre Manent é Diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Este ensaio é adaptado de um documento de conferência entregue na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., em junho de 1999.

First Things, todos os direitos reservados. Publicado com permissão. Link original: “The Return Of Political Philosophy”.

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