Foi difícil, para os filósofos políticos, lidar com o nazismo e o comunismo. Estes fenômenos políticos sem precedentes exigiam um esforço analítico específico, e contudo a maioria dos intérpretes não tinha mais muito espaço em seu pensamento para categorias políticas, especialmente a noção de regime. Sua reação natural era tentar compreender essas novas formas da política subsumindo-as a categorias não-políticas com as quais elas eram mais semelhantes.
Por exemplo, o comunismo veio a ser compreendido como a dominação “burocrática”, ou como “capitalismo burocrático de estado” – um mantra trotskista amplamente repetido na França e alhures. Quanto ao nazismo, não poucos esquerdistas viram nele o instrumento “das camadas mais reacionárias do capital financeiro”, ao passo que muitos da direita viram apenas mais um avatar da “Alemanha eterna”.
É claro que tais definições, conquanto aceitáveis por um tempo, não poderiam satisfazer pessoas honestas ou sensatas, que acabaram elaborando e referendando a noção de totalitarismo como um regime novo e específico. Devemos ser gratos àqueles que introduziram tal noção, porque mais que qualquer outra ela nos ajudou a olhar para os fatos, a “salvar os fenômenos”, por assim dizer, e consequentemente a aquilatar de maneira mais apropriada a fealdade pervasiva de todo o fenômeno.
Ao mesmo tempo, porém, o totalitarismo continuou a ser um construto ad hoc. Sua discussão girou praticamente apenas em torno dos traços, ou critérios, do totalitarismo: tanto “ideologia” quanto “terror”, ou ambos juntos, eram componentes principais ou necessários de todo regime “totalitário”.
Os proponentes desta noção estavam sempre prontos a tentar superar um ao outro concentrando sua atenção nas características mais radicais desses regimes, como resultado de que, no caso de Hannah Arendt, a noção sequer é aplicável ao nazismo e ao comunismo fora de seus momentos mais extremos de terror e matança. Esta guerra de opiniões levou os cientistas políticos do mainstream a abandonarem completamente o conceito, ou a diluírem-no a ponto de se tornar irreconhecível e imprestável.
Os acontecimentos do nazismo e do comunismo obrigaram os observadores honestos e sensatos a elaborarem a noção de um novo regime. Ao mesmo tempo, este “regime” era o contrário de um regime. O regime clássico, remontando às primeiras elaborações da filosofia política por Platão e Aristóteles, é aquilo que confere à vida política sua relativa estabilidade e inteligibilidade.
O “regime” totalitário, a seu turno, era caracterizado antes de mais nada por sua instabilidade e deformidade. Ele se descrevia, corretamente, essencialmente como um movimento: o “movimento Comunista internacional” ou die NZBewegung (Munique era chamada pelos nazistas die Hauptstadt der Bewegung [a capital do movimento]). A própria Arendt estava bem consciente do caráter paradoxal do totalitarismo.
Em um artigo intitulado “Ideologia e Terror”, Arendt baseia-se na análise e classificação dos regimes de Montesquieu para tentar categorizar o regime totalitário. Para Montesquieu, cada regime tem uma natureza e um princípio. O princípio é o mais importante, uma vez que é a “mola” que “impulsiona” o regime. Porém, explica Arendt, o totalitarismo não tem princípio, sequer o medo – que é o princípio do despotismo, segundo Montesquieu.
Para que o medo pudesse ser um motor principal da ação, o indivíduo precisaria pensar ou sentir que ele é capaz de escapar do perigo mediante suas ações; sob o totalitarismo, por outro lado, no qual os extermínios campeiam sem a menor razão aparente, esta percepção é incapaz de se sustentar. O comentário de Raymond Aron sobre a análise de Arendt é severo, mas esclarecedor:
É impossível não nos indagarmos se a tese da Srta. Arendt, assim formulada, não seria contraditória. Um regime sem um princípio não é um regime…. Como regime, ele existe somente na imaginação do seu autor. Noutras palavras, quando a srta. Arendt elabora certos aspectos do fenômeno stalinista e hitlerista como um regime, uma essência política, ela expõe e provavelmente exagera a originalidade do totalitarismo russo ou alemão. Ao confundir esta verdadeira originalidade com um regime fundamentalmente novo, ela é induzida a projetar em nossa época a negação das filosofias clássicas e, portanto, cair em uma contradição, a saber: definir um regime funcional por uma essência que, por assim dizer, pressupõe a impossibilidade de que ele funcione.
Esta crítica afiada sem dúvida acerta no alvo. Mas Arendt provavelmente teria respondido que a “contradição” não foi inventada por ela: ela pertence à essência contraditória do totalitarismo. É interessante notar que Alain Besançon, um destacado historiador francês orientado por Aron, tenha redescoberto e trazido novamente a lume esta dificuldade, de maneira penetrante, vinte anos mais tarde.
Em um artigo certeiramente intitulado “Sobre a dificuldade de definir o regime soviético“, Besançon testa e exaure as classificações dos regimes de Aristóteles e Montesquieu, concluindo que o soviético não se encaixa em nenhum deles. A seus olhos, trata-se de um regime “absolutamente novo”, e sua novidade reside no papel desempenhado pela “ideologia”.
Besançon propõe então que, em vez de totalitarismo, classifiquemos o comunismo simplesmente como um “regime ideológico”. Cada um à sua maneira, Arendt, Aron e Besançon chamam nossa atenção para o problema de estabelecer uma relação entre o totalitarismo e a tradição da filosofia política. O regime totalitário parece ser aquele que encarna a negação da ideia de regime e, consequentemente, a obsolescência da filosofia política clássica.
Mais do que qualquer pensador neste século, Leo Strauss tentou recuperar o significado original da filosofia política. A bem da verdade, a filosofia política como entendida originalmente deve sua sobrevivência, “convenientemente discreta até o ponto da secretude”, aos esforços individuais e isolados de Leo Strauss. Sem ele, a filosofia da história, ou qualquer forma de historicismo, teria engolido completamente a filosofia política.
Para Strauss, em contradição aparente com o que acabo de dizer, as experiências do século XX deram razões para um retorno à filosofia política, e em particular à filosofia política clássica: “Quando fomos colocados face a face com a tirania – com um tipo de tirania que vai além da imaginação mais ousada dos mais ousados pensadores do passado – nossa ciência política foi incapaz de reconhecê-lo. Não surpreende, portanto, que muitos de nossos coetâneos… tenham ficado aliviados ao redescobrirem as passagens em que Platão e outros pensadores clássicos parecem ter interpretado para nós os horrores do século vinte.” Assim, a tirania moderna – Strauss cuidadosamente evita a palavra totalitarismo – nos remete novamente à tirania antiga tal como descrita por Platão e outros pensadores gregos.
Ao mesmo tempo, Strauss deixa claro que não existe nada de específico e terrível na tirania moderna capaz de eludir o alcance das categorias clássicas. O retorno aos gregos pode ser apenas “um primeiro passo rumo a uma análise precisa da tirania dos tempos presentes“, defendia ele, porque a tirania dos nossos dias é “fundamentalmente diferente” da tirania analisada pelos antigos.
Mas como pode Strauss tê-lo afirmado? É preciso lembrar que ele dedicou sua vida a deixar assentado que a filosofia clássica foi responsável por elaborar a verdadeira compreensão do mundo, fundamentada na imutável natureza, e de que, portanto, ela não precisa ser suplantada ou aperfeiçoada por uma nova compreensão “histórica”.
Diante disto, como poderia Strauss admitir que o comunismo e o fascismo são fundamentalmente novos? Como seria possível que a vida política dos seres humanos tenha passado por uma mudança fundamental? Responde ele: “A tirania do presente, em oposição à tirania clássica, baseia-se no progresso ilimitado na ‘conquista da natureza’, que tornou possível a ciência moderna, bem como na popularização e difusão do conhecimento filosófico e científico.”
Strauss estava plenamente consciente de que tal mudança, ou ao menos a possibilidade dela, precisa ter sido aventada pela filosofia grega se a sua alegação a favor desta quiser se sustentar. Ele afirma que este é exatamente o caso: “Ambas as possibilidades – a possibilidade de uma ciência que desemboca na conquista da natureza e a possibilidade de popularizar a ciência e a filosofia – eram conhecidas pelos clássicos… Mas os clássicos as rejeitavam como “antinaturais”, i.e., como destrutivas da humanidade. Eles sequer sonhavam com a tirania dos tempos presente porque consideravam seus pressupostos tão absurdos que sua imaginação estava voltada totalmente para outras direções.” Assim, os pensadores gregos não imaginaram a tirania moderna porque eles compreendiam seus princípios e viam que eles eram tão contrários à natureza que não valia a pena se ocupar deles.
Independentemente de quão controversa seja a afirmação de que os gregos nos compreenderam melhor do que nós os compreendemos e a nós próprios, ela não é o que mais nos impressiona no diagnóstico de Strauss. O mais impressionante é o fato de que os dois princípios responsáveis pelo mal específico da tirania moderna são parte integrante do fundamento sobre o qual a democracia moderna foi construída. Se isto for verdade, a tirania moderna teria tanto em comum com a democracia moderna quanto com a tirania antiga, i. e., “natural”.
É preciso não esquecer que estas raras afirmações de Strauss sobre as circunstâncias políticas contemporâneas foram formuladas no contexto de sua correspondência com Alexandre Kojève, um dos intérpretes mais influentes de Hegel neste século. O filósofo, russo de nascença e servidor público francês, sustentava que as concepções da filosofia política clássica haviam perdido sua relevância porque o regime moderno, ou, ainda, o Estado, exatamente por conta da transformação da natureza e do reconhecimento recíproco implícito na cidadania moderna, havia basicamente resolvido o problema da humanidade. Os travos impalatáveis da “tirania” moderna não nos devem cegar para o fato de que “a história chegou a seu fim.”
Por isso, Kojève não está tão interessado no fenômeno totalitário, cuja fealdade desaparece diante de um quadro mais amplo. A despeito do quão chocante possa ter sido sua negligência benigna diante do, e até favorecimento ao, totalitarismo comunista, ele chama a nossa atenção para o fato de que a democracia moderna tem em comum com o totalitarismo a pretensão de haver resolvido o problema da humanidade. A democracia moderna entende-se a si mesma não como um regime entre outros, e sequer como o melhor regime, mas como o único regime legítimo: ela encarna o estado final, porque racional, da humanidade.
Aqui nos deparamos com um tópico tão difícil e intrincado quanto importante. Segundo a mentalidade clássica, a pluralidade de regimes estava radicada na diversidade inerente à natureza humana, na heterogeneidade de suas partes: seres humanos eram corpo e alma, e a vida da alma humana tinha sua origem nas moções específicas de suas diferentes partes.
Na mentalidade democrática moderna, um ser humano é antes de mais nada um ‘eu’, e a humanidade como um todo é simplesmente o ‘eu’ autorrealizado escrito em letras maiúsculas, isto é, considerado como um universal. Esta generalização é válida somente se todos os ‘eus’ de todos os seres humanos são a mesma coisa de uma maneira significativa. A afirmação do ‘eu’, ou a autoafirmação da humanidade como composta de ‘eus’, pressupõe, portanto, a homogeneidade da natureza humana. Para a mentalidade moderna, a solução do problema da humanidade é uma só coisa com a homogeneização da vida humana.
Continua e encerra na parte 3.
Pierre Manent é Diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Este ensaio é adaptado de um documento de conferência entregue na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., em junho de 1999.
First Things, todos os direitos reservados. Publicado com permissão. Link original: “The Return Of Political Philosophy”.