As teses na base do secularismo, liberalismo e afins.
Deividi Pansera
Alguns termos são utilizados para expressar um conjunto de teses compartilhadas por um conjunto de pensadores dentro de uma determinada tradição, mesmo que, entre os pensadores, haja divergência pontuais sobre um aspecto ou outro. É assim, por exemplo, com o termo “platonismo”, que expressa uma tradição de pensamento derivado, obviamente, de Platão. É assim com o termo “tomismo”, “aristotélico-tomista”, “escolasticismo” etc., cada um expressando conjunto de teses mais abrangente do que uma determinada linha de pensamento única.
Não me refiro apenas a escolas filosóficas. O termo “teísmo clássico”, por exemplo, expressa um conjunto de teses acerca da natureza divina (simplicidade divina, aseidade divina etc.) em que pensadores de diversas escolas filosóficas fazem parte. O termo “Lei Natural tradicional”, como outro exemplo, captura um conjunto de teses de diversos pensadores (Plotino, Padres da Igreja, Maimônides, Avicena, Averróis, Sto. Tomás e os grandes escolásticos etc.) compartilhadas sob a perspectiva ética.
O filósofo americano-canadense Lloyd P. Gerson, em uma trilogia de livros intitulados From Plato to Platonism, Aristotle and Other Platonists e Platonism and Naturalism: The Possibility of Philosophy, sugere um termo para captar um posicionamento abrangente sobre um conjunto de teses, que ele enumera negativamente, na tradição filosófica: Ur-platonismo.
O Ur-platonismo de Gerson pode ser caracterizado como uma conjunção de cinco negações: anti-materialismo, anti-mecanicismo, anti-nominalismo, anti-relativismo e anti-ceticismo. Assim, o termo ur-platonismo captura esse conjunto de anti-teses. Juntos, esses “antis” podem ser caracterizados em um único “anti”: anti-naturalismo.
Segundo o Gerson, o anti-materialismo pode ser caracterizado como a visão de que é “falso que as únicas coisas que existem são os corpos e suas propriedades.” Em outras palavras, existem entes que não são corpos e que possuem uma existência independente deles. O anti-mecanicismo é a visão de que “o único tipo de explicação disponível em princípio para um materialista é inadequada para explicar a ordem natural.” Por exemplo, aqui se enquadraria algo como é falso que causa eficiente e causa material explicam a ordem natural – seria necessário causa formal e causa final também. O anti-nominalismo é a visão de que é “falso que as únicas coisas que existem são os indivíduos, cada um singularmente situado no espaço e no tempo.” Ou seja, as formas existem. As coisas possuem uma natureza. O anti-relativismo é a “negação da afirmação que Platão atribui a Protágoras de que ‘ ‘o homem é a medida de todas as coisas, do que é que é e do que não é que não é’”. Existem dois tipos de relativismo: epistemológico e moral. No relativismo epistemológico, o anti-relativismo é a visão de que é falso que a verdade é aquilo que parece ser verdadeiro para mim (ou para um grupo). No relativismo moral, o anti-relativismo é a visão de que é falso que o bom é aquilo que parece bom para mim (ou para um grupo). O anti-ceticismo é a visão de que é falso que o conhecimento é impossível.
Bom, como Gerson mostra em From Plato to Platonism e em Aristotle and Other Platonists, os pensadores pensadores da tradição ur-platonista divergem em diversos pontos, mas possuem também um conjunto de proposições positivas, enxergadas como uma tendência e não como uma aderência. Dentre elas, estão a imaterialidade do intelecto, a explicação final requer uma causa divina simples, a objetividade da moral, uma unidade sistemática do universo, uma hierarquia com uma abordagem explicativa de cima para baixo, o homem faz parte da hierarquia e a sua felicidade consiste em resolver a tensão de recuperar a sua posição hierárquica no universo, a valoração moral e estética deve ser analisada com referência a essa hierarquia…
Já em Platonism and Naturalism: The Possibility of Philosophy, ele argumenta que a rejeição naturalista – compreenda naturalismo conforme descrito acima – do platonismo (ou melhor, ur-platonismo) leva à impossibilidade da filosofia, que, conforme o ur-platonismo, tem como assunto o mundo inteligível. Mais ainda, conclui que as tentativas de se conciliar ur-platonismo com naturalismo são instáveis e provavelmente indefensáveis.
Ur-platonismo e Civilização Ocidental
Em um sentido amplo, na história das idéias do mundo Ocidental, pode-se dizer que aquilo outrora chamado de Civilização Ocidental, em que hoje tem-se apenas alguns respingos do que estava sob o guarda-chuva desse termo, surgiu sobre a tradição ur-platonista. Mais ainda, que o declínio dessa civilização tem as suas origens em ataques às teses do ur-platonismo. Desde o nominalismo no seio da escolástica até o materialismo pós-positivismo. Desde a rejeição das causalidades formal e final presentes nos pensadores da Modernidade (Descartes, Galileu, Francis Bacon, Newton, Locke etc.) até o relativismo epistemológico e moral exacerbado do mundo contemporâneo, que lega ao mundo um Peter Singer.
Em uma palestra intitulada Responding to Contemporary Atheism, o padre dominicano James Brent sugere que uma das marcas dos últimos séculos da História da humanidade, esses séculos de queda da Civilização Ocidental, é o domínio de idéias que são contrárias a alguma das anti-teses do ur-platonismo ou a todas elas. Ele argumenta, então, que o palco de fundo do ateísmo contemporâneo é a negação de todas as anti-teses. Ou seja, quando se combate o ateísmo, não se está combatendo apenas a proposição Deus não existe, mas o naturalismo inteiro (compreendido como a conjunção da negação de todos os “antis”). Portanto, na luta contra o secularismo (consequência do ateísmo), o verdadeiro combate é travado entre ur-platonismo e naturalismo.
Penso que o padre James Brent está correto em sua análise. Mais ainda, penso que o secularismo é apenas a consequência de uma negação de alguns dos “antis” (não necessariamente todos) que se iniciou há muito tempo. Ou seja, os cinco antis do ur-platonismo devem ser tomados conjuntamente. Caso se negue um deles, se acabará negando todos (do ponto de vista histórico – eu não estou dizendo que, necessariamente, se um pensador negar uma das anti-teses então ele negará todas). Assim, a queda da Civilização Ocidental está fortemente conectada com a queda do ur-platonismo. E, além disso, parece-me que o combate contra o liberalismo é muito semelhante ao combate contra o secularismo. Isto é, o palco de fundo do liberalismo é a negação de todas as anti-teses.
Ur-platonismo e a w-force
O mundo Ocidental não está apenas em queda (se já não caiu), mas a sua queda tem uma direção. Está em queda (hoje acelerada) à esquerda. As idéias que hoje são consideradas de direita faziam parte da esquerda de alguns anos atrás. Ou seja, a direita de hoje é a esquerda do ontem e a esquerda de hoje é a direita do amanhã.
Essa tese de que o progressismo é uma espécie de força que está movendo a História nos últimos séculos é a tese de Curtis Yarvin (Mencius Moldbug), condensada no seu livro An Open Letter to Open-Minded Progressives. Ele chama o motor que move a História em direção à vitória do progressismo de w-force (“w” vem de whig). Os movimentos reacionários são tentativas de impedir a w-force. Mas ela é imponente. Sempre os destrói.
Bom, e se o movimento reacionário capaz de barrar a w-force for o reestabelecimento do ur-platonismo? Ora, o progressismo é uma consequência da negação do ur-platonismo. E como as anti-teses do ur-platonismo formam um todo unificado, ao se negar uma das anti-teses, numa perspectiva histórica (com o passar do tempo), todas serão negadas e, portanto, a w-force volta a exercer o seu poder. Logo, o único -movimento reacionário capaz de interromper a w-force é o reestabelecimento do ur-platonismo.
*Publicado originalmente em Ur-platonismo e a modernidade.
Reproduzido aqui com expressa permissão do autor.
Deividi Pansera é escritor, doutor em matemática e cientista de dados.