(Continuação de: Movimento de Oxford: uma renascença inglesa no século XIX – Introdução)
As universidades, historicamente, são como pêndulos que oscilam entre a sabedoria e o panfletarismo obstinado; entre aquela inteligência esclarecedora que constrói civilizações e a débâcle intelectual que vive de modismos ideológicos e reivindicações surreais.
Hoje, o pêndulo do espírito acadêmico está claramente pendendo mais para o lado do desatino, da insanidade, do intelectualmente mórbido. E o pior é que não sabemos se ele já atingiu o seu ponto mais extremo à esquerda, ou se demorará muito para começar a pender de volta para o lado mais sensato e construtivo.
Mas é incrível poder recordar que a Inglaterra oitocentista viu, num caso específico, esse movimento pendular se afastar progressivamente do lado do caos e da obscuridade e tender fortemente para o quadrante da luz ordenadora. Foi precisamente o que aconteceu, a partir do ano de 1833, na célebre Universidade de Oxford.
Como indicamos no primeiro artigo dessa série, o movimento que lá emergiu representou, à época, uma “onda cultural de caráter restaurador, tradicionalista e antiliberal”.
Neste artigo, trataremos da gênese do movimento em contraste com o contexto histórico em que ele surge – nos anos finais do Período Georgiano (1714-1837) e em plena Revolução Industrial -, num tempo marcado por preocupações e interesses quase exclusivamente materialistas, a fim de compreender a magnitude de sua importância.
Decadência social inglesa
Em primeiro lugar, é preciso recordar que a Inglaterra georgiana – erigida sobre as bases do pensamento humanista, liberal e iluminista -, não representava, nem de longe, um modelo de sociedade justa e solidária.
Da prosperidade trazida pelas máquinas, desfrutavam alguns – os donos delas -, enquanto as massas viviam precariamente e não faltavam casos de abusos por parte dos capitalistas:
“Quando eu tinha sete anos, fui trabalhar na fábrica do Sr. Marshalls na cidade de Shrewsbury. Se uma criança estava com sono, o inspetor tocava no ombro da criança e dizia: ‘Venha aqui’. Num canto de um quarto havia uma cisterna cheia de água. Ele levantava o menino pelas pernas e o imergia na cisterna. Depois do banho, ele mandava a criança de volta para o trabalho. ”(Depoimento de Jonathan Downe ao Comitê Parlamentar sobre o Trabalho Infantil, em 6 de junho de 1832)
A exploração de mão de obra infantil foi amplamente praticada na Inglaterra novecentista, a qual já tinha sido supostamente “esclarecida” pelas “luzes” modernas do dito “humanismo” liberal, que de nada valeu aos mais fracos e pequenos.
Se antes da Revolução Industrial era comum que os filhos, a partir de certa idade, auxiliassem os pais no trabalho do campo, os progenitores ao menos eram muito mais brandos com os seus filhos do que os patrões capitalistas, deixando que os filhos tirassem também um justo tempo para brincar, comer e descansar. Os próprios camponeses adultos não trabalhavam nos dias santos (que naquele tempo eram muitos), jamais aos domingos, e nem ao cair da noite.
Para além de um descaso pelos mais fracos, o aburguesamento das elites e toda a atmosfera fomentada pelo capitalismo liberal instauravam um clima de ambição, relaxamento moral, relativismo religioso e frivolidade nos costumes.
À medida em que se negligenciavam os valores primários, aflorava um mundo de cobiça imoderada, exploração do trabalho alheio (sem excetuar as crianças), avidez por luxos, prazeres refinados e aventuras sexuais pré e extra-conjugais cada vez mais banais, não obstante os códigos de conduta vigentes nos ambientes e circunstâncias mais formais.
Como sempre, a nobreza corrompida e as demais elites econômicas estavam na vanguarda da dissolução social:
“Ao contrário dos escritores, os libertinos da realeza e da aristocracia não tentavam proceder de acordo com as restrições sexuais comuns. Eles simplesmente as ignoravam. […] Uma vez que saíam dos círculos de maior polidez, eles frequentemente se entregavam a uma libertinagem sexual quase irrestrita… [E faziam-no sem] a menor intenção de prestar contas aos radicais da classe trabalhadora que os desprezavam ou aos cristãos puritanos que estavam trabalhando duro para elevar os padrões do cavalheirismo masculino. […]
O período da Regência [1811-1820] representou a última grande farra para os degenerados antes que os costumes sóbrios e muito mais rígidos da Era Vitoriana [1837-1901] tirassem pelo menos um pouco do vento de suas velas.” (MORRISON, R. The Regency Years, 2019).
A sociedade inglesa estava dividida, grosso modo, entre uma elite altamente corrompida – e ligada, geralmente, à confissão anglicana – e as classes mais populares, que lutavam para sobreviver e, ao mesmo tempo, para manter um mínimo de decência e ordem, uma vez que o povo acabava sendo o único receptor da pregação moral estrita feita por pregadores protestantes mais austeros.
Perseguição e furor anticatólico
O catolicismo havia sido basicamente proscrito daquele país desde que a nacionalização da Igreja da Inglaterra pelo rei Henrique VIII instaurou um regime cesaropapista – de submissão da vida eclesiástica local à coroa – a partir do ano de 1534.
Por séculos a fio, os católicos vinham sendo martirizados ou submetidos a vários tipos de perseguição naquele país. O célebre filósofo Thomas More, que havia sido chanceler do rei, e o bispo John Fisher, foram executados logo no ano seguinte por não aceitarem a usurpação do poder espiritual pelo monarca inglês.
Cerca de outros 40 homens e mulheres também foram logo martirizados pela mesma razão, entre os quais a dama de companhia Margaret Ward, morta depois de ser longamente torturada por ajudar o Padre Richard Watson a fugir da prisão e se recusar a participar de um culto anglicano.
A fé e fibra moral desta mártir, contudo, se mostraram na sua declaração dada ao tribunal ao ser questionada se se arrependia de sua cumplicidade na fuga do padre Watson, que por mais de um mês vinha sofrendo severos maus-tratos na prisão, passando fome e acorrentado a uma cela tão pequena que ele não conseguia sequer ficar de pé ou se deitar direito:
“De nada eu me arrependo menos do que de ter ajudado a libertar aquele cordeiro inocente das mãos dos lobos sanguinários.”
Tampouco foram poupadas as vidas do professor Swithun Wells, da viúva Anne Line, e de outra Margaret, uma mãe de família de sobrenome Clitherow. O grande crime dessas pessoas foi dar refúgio a padres católicos caçados pelas tropas de Sua Majestade.
No caso da Sra. Clitherow, ela já havia sido presa antes por não comparecer ao culto da religião estatal, que era obrigatório. Mais tarde, mesmo estando grávida, ela foi sentenciada à morte e assassinada com o quarto filho que trazia no ventre, após sofrer tortura por esmagamento – pena então prevista na commom law inglesa.*
Em circunstâncias menos trágicas, até artistas simpáticos ao catolicismo como o músico William Byrd e o dramaturgo William Shakespeare padeceram adversidades. Alguns meros suspeitos de professar a Fé romana às ocultas tampouco ficavam livres de calúnias e molestações sociais, como o parlamentar e escritor Edmund Burke – hoje celebrado como filósofo político, defensor dos povos colonizados e pai do conservadorismo moderno –, então acusado por seus detratores mais liberais de ser um “cripto-católico”.
Resurgens Sapientiae
Embora a profissão do catolicismo não fosse mais ilegal desde 1791, e o Emancipation Act de 1829 tivesse restaurado a maior parte dos direitos civis dos cristãos fiéis a Roma, ser identificado como “papista” em uma universidade ou em qualquer outra instituição britânica ainda poderia trazer sérios problemas em 1833.
Não obstante, alguns estudiosos de Oxford redescobriram nele um rico legado de formas e percepções sapienciais que há muito vinham sendo atacadas ou desprezadas por intelectuais, políticos e religiosos progressistas.
Pode-se dizer que estes, imbuídos de ideias revolucionárias, vinham cumprindo o papel de novos bárbaros iconoclastas, no afã de varrer da face da terra tudo o que cheirasse a tradição e romanidade, a fim de evitar que elas eclipsassem o claudicante ideário moderno. Em muitos casos, porém, elas já haviam sido simplesmente esquecidas naquele século tremendamente assolado pelas revoluções liberais.
Os oxfordianos notaram um conjunto de valores civilizacionais que o espírito pré-moderno propunha como indispensáveis à realização humana, e que as vagas da modernidade – a princípio, protestante, depois liberal-secular e, por fim, cada vez mais materialista, utilitarista e hedonista – vinham rejeitando ostensivamente.
Mas que valores seriam esses?
Resumidamente,
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- o papel da scientia, isto é, da luz natural da razão (filosofia) como ferramenta válida de investigação não apenas das realidades temporais, mas também das verdades eternas e divinas (teologia natural, analogia entis);
- a subordinação da política, dos negócios e de todas as atividades humanas aos princípios perenes, espirituais e morais (primazia do Bem Comum, da correção, da virtude e dos fins últimos sobre a conveniência, o contratualismo e a raison d’État);
- a importância dos símbolos, das artes e da imaginação literária para a formação humana e a compreensão das realidades metafísicas (iconografia, via pulchritudinis, hagiografia);
- a reverência pela sabedoria dos antigos, por seus sucessores históricos e pelas formas sacras que se sedimentaram ao longo dos séculos (tradição, sucessão, ortodoxia, continuidade);
- a comum participação e difusão dos bens materiais e imateriais da civilização (universalidade, destinação universal dos bens);
- a integração e coesão dos princípios, propósitos e iniciativas em prol de toda a família humana (unidade, comunhão, hierarquia, subsidiariedade).
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As vias de transcendência e de autoaperfeiçoamento – herdadas da Filosofia clássica, dos Evangelhos, da Patrística e da Escolástica – tinham se cristalizado na forma costumes e valores que perfizeram a Europa no seu auge civilizacional, mas passaram a ser desacreditadas ou atacadas de forma ostensiva, sobretudo a partir do século de Maquiavel e Lutero.
Esses elementos prezados pelo espírito católico estavam, desde o século XVI, sob uma chuva de ataques – ora diretos, ora indiretos, ora vindos dos ditos “iluministas” e sua descendência, ora dos numerosos grupos protestantes que se multiplicavam.
Tomemos o costume tipicamente católico de fazer regularmente um exame de consciência seguido de uma confissão total das próprias faltas. Hoje, diversos psicoterapeutas reconhecem nesse tipo de exercício um poderoso instrumento de autoconhecimento, terapia das neuroses e desenvolvimento pessoal.
Claro, a finalidade original do exercício ia mais na direção do arrependimento pelos pecados cometidos e do retorno ao feliz estado de graça e amizade com Deus, mas os efeitos psicológicos revigorantes sempre estiveram lá, de brinde.
Ocorre que a cosmovisão católica sempre pretendeu falar ao homem integral. Isto é, sempre quis se comunicar:
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- com a sensibilidade do homem, seus cinco sentidos e sua imaginação – daí a arquitetura e a música sacras, a pintura devocional, a fragrância do incenso e as histórias sobre vidas de santos -,
- com o seu intelecto – empregando Aristóteles e as ferramentas da filosofia para sistematizar e esclarecer a teologia, torná-la reconhecível na realidade das coisas e, assim, palatável à razão –
- e, como não poderia deixar de ser, com o seu espírito – nos ritos e sinais sacramentais, nos exercícios espirituais, na pregação catequética, etc.
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No mundo católico, enquanto os tratados filosófico-teológicos procuravam saciar aquelas mentes mais lógicas e argutas, as narrativas bíblicas e hagiográficas expressas através da arte sacra falavam à imaginação dos fiéis e, em especial, às pessoas iletradas. Exemplar nesse sentido eram os livros conhecidos como Biblia Pauperum (Bíblia dos Pobres), que colocavam belas iluminuras no centro das páginas e incluíam textos curtos apenas como um apoio secundário a elas, de modo que as imagens ensinassem, o máximo possível, por si mesmas. O primeiro a produzir este tipo de material foi o monge beneditino Ansgário de Hamburgo (Santo Ansgário), já no século IX.
Contudo, o protestantismo, em nome de uma radicalidade fideísta (Sola Fide, Sola Scriptura, etc.), reduziu a salvação do homem à sua dimensão espiritual ou puramente vertical, isolando-o existencialmente e privando-o da vertente horizontal, da pertença àquela mais antiga e veneranda comunhão, bem como do patrimônio mais amplo e polivalente da sabedoria humana.
Baniram-se os ícones, depreciou-se a filosofia, romperam-se os vínculos históricos, empobreceu-se a música, adulteraram-se os ritos, apequenou-se a arquitetura: tudo para quebrar os elos ancestrais e transnacionais que o ligavam ao catolicismo e sua tradição.
O que veio depois, com os iluministas e sua descendência, foi ainda pior: o secularismo liberal e o materialismo favoreceram a mercantilização da vida, a ciência puramente experimental e utilitarista – reduzida fração da scientia dos clássicos – e a supremacia das coisas materialmente evidentes, enquanto repudiava-se a metafísica, a ética das virtudes, o ensino católico, o reino do espírito e o melhor da sabedoria antiga.
Assim, o conhecimento humano tornou-se escravo das paixões e das exigências do mercado, no caso do capitalismo, ou do totalitarismo ideológico de Estado, no caso do comunismo.
A ruptura com o modus pensandi dos clássicos foi acachapante.
Mesmo os expoentes do iluminismo que pensavam em fins mais elevados, como Kant, proclamavam o Sapere aude! como uma espécie de manifesto autoafirmativo, criticista e egocentrado. Por isso se diz que a modernidade representou um retrocesso a um estado geral de adolescência mental!
Os homens e mulheres que, antes deles, tinham edificado a civilização Ocidental, isto é, a cristandade e as suas múltiplas instituições de ciência e beneficência humanitária, não tinham, nem de longe, uma visão tão apequenada, tão instrumental e tão vulgar da busca do saber.
Em suma, mesmo que as sociedades cristãs pré-modernas tivessem também os seus defeitos – como qualquer sociedade humana -, elas ainda se permitiam iluminar por aquela Sapientia que os oxfordianos procuraram recuperar e que não era outra senão a mesma da qual falava Hugo de São Vítor no século XII:
“A Sapiência ilumina o homem para que conheça a si mesmo, ele que, quando não sabe que foi feito acima das outras coisas, acaba achando-se semelhante a qualquer outra coisa. A mente imortal do homem, iluminada pela Sapiência, se volta para o seu princípio… De fato, o homem que não esqueceu a sua origem sabe que é nada tudo aquilo que é sujeito à mutabilidade. […]
A filosofia é, portanto, o amor, a procura, e uma certa amizade para com a Sapiência, mas não aquela sabedoria que se ocupa de tecnologia e de ciências produtivas, e sim aquela Sapiência que, não carecendo de nada, é mente viva e única razão primordial das coisas.” (Didascalion, livro I, caps. 1 e 2)
Reforma da “reforma”
Foi nesse contexto que o Movimento de Oxford teve início, com uma série de estudos e iniciativas de revisão teológica conduzidas por um grupo de perspicazes professores e capelães ligados à universidade.
Eles estavam preocupados com a penetração do liberalismo na teologia e nas práticas de culto da igreja anglicana. Sentiam que algo precisava ser feito diante da estagnação espiritual e do empobrecimento cultural crescente.
Aquela mentalidade mundana (ou exacerbadamente intimista) que há séculos se alastrava e causava danos não apenas nas fileiras cristãs, mas também na sociedade inglesa como um todo, precisava ser contraposta por um sistema cultural mais equilibrado, integrador e coerente.
Por isso, eles buscaram recuperar a herança pré-moderna – o que queria dizer em algum grau, também, pré-anglicana – a fim de repropor os remédios da tradição para combater a fragmentação espiritual dos novos tempos e propiciar um “reavivamento” do próprio anglicanismo.
Logo, a reinserção da igreja da Inglaterra no tronco mais antigo do catolicismo – ainda que apenas teórica, isto é, sem efeitos institucionais práticos – pareceu-lhes uma luz no fim do túnel.
O intuito inicial do movimento, porém, limitava-se a recuperar as fontes “anglo-católicas” primárias para fortalecer a própria seara anglicana. Nenhum de seus integrantes queria, a princípio, uma reconciliação total com o Papa ou mesmo uma reaproximação de Roma. No entanto, o movimento acabou resultando, na prática, em diversas conversões para o catolicismo, e criou uma espécie de renascença intelectual e espiritual a partir do coração da universidade.
Esses estudiosos acabaram trazendo de volta, pouco a pouco, muito do espírito filosófico universalista da civilização católica.
Não por acaso, os pioneiros do movimento eram também adeptos da High Church, o segmento mais tradicional e filocatólico do anglicanismo.
14 de julho de 1833: o arrebol
Tudo começou com John Keble – um ministro anglicano que era também filósofo, compositor, poeta e professor de Oxford – fazendo uma alocução aos juízes naquela data. O título da prédica, National Apostasy (Apostasia Nacional), já nos dá uma boa ideia do seu teor: uma exortativa denúncia contra o abandono da Fé e a corrupção espiritual e moral dos seus compatriotas.
Nela, Keble deplora a leviandade e a inconstância com que os seus conterrâneos tratavam as questões espirituais. Era incompreensível para ele que as pessoas se prestassem a aderir frivolamente a qualquer nova seita ou ideia religiosa, admitindo como válida qualquer nova opinião nesta matéria “sob o pretexto da caridade e da tolerância”, com uma “crescente indiferença” e “sem uma investigação séria” das verdades relativas a Deus e aos Seus mandamentos e desígnios para a humanidade.
Em razão dessa atitude espiritualmente relapsa, e cada dia mais generalizada, a exortação de Keble acusava um estado de apostasia (abandono, traição da verdadeira fé), no qual praticamente toda a nação inglesa estaria incorrendo – o que já sugeria a necessidade de uma restauração filosófico-teológica, ou uma reforma da “reforma” anglicana.
Não à toa, esta prédica é considerada o marco fundador do Tractarian Movement, como também ficou conhecido o Movimento de Oxford desde que os seus expoentes começaram a divulgar suas ideias através dos Tracts for the Times, os tratados explanativos em forma de folhetos publicados pelo grupo entre 1833 e 1841. Hoje, o nome de Keble dá título a um dos mais famosos colleges de Oxford.
Bebendo inicialmente em teólogos anglicanos mais conservadores e descendo depois às fontes mais profundas e ancestrais da tradição cristã, como os Padres dos primeiros séculos, esses estudiosos acabaram trazendo de volta, pouco a pouco, muito do espírito filosófico universalista da civilização católica.
Tal resgate, porém, não se restringiu, como já aludimos, ao âmbito religioso, mas teve repercussões impressionantes em diversos campos da cultura, o que ilustraremos mais detidamente no próximo artigo.
Newman, colosso de Oxford
O mais polêmico dos Tracts foi certamente o Tract 90, no qual o autor subscreve a várias doutrinas católicas enquanto tenta conciliá-las com artigos de fé anglicana e defende uma espécie de identificação eclesiológica fundamental entre a Igreja da Inglaterra e a Igreja Católica Romana.
Com isso, rejeitava-se o rótulo de “protestante” para o anglicanismo, a fim de o apresentar como um ramo separado da única Igreja Católica, porém com os mesmos vínculos de tradição teológica e sucessão apostólica conservados por esta. O status de Igreja cismática – como a ortodoxa grega ou copta – parecia-lhes mais digno que o de uma mera seita protestante sem lastro histórico e nexo algum com os primeiros apóstolos de Cristo.
Ao lado de Keble, o Tractarianism foi impulsionado também por Edward Pusey, professor de língua hebraica em Oxford, que chegou a ser proibido de pregar por dois anos devido ao seu sermão The Holy Eucharist, a Comfort to the Penitent, cuja versão impressa vendeu 18 mil cópias.
Não menos indispensáveis foram os contributos de William Palmer, Richard Froude, Isaac Williams, além, é claro, do seu dinamizador mais célebre: John Henry Newman, o autor do Tract 90, que mais tarde partiria para o tudo ou nada, arriscando toda a sua carreira e vida social numa conversão radical ao catolicismo, a qual se deu após muitas inquietações internas em 1845..
O filósofo Jean Guitton assim qualificou a decisão do ex-clérigo anglicano:
“Uma conversão no meio da vida era mais do que a perda da vida. Abandonava os seus; desligava-se da sua pátria, da sua Igreja, da sua família. E por que? Por uma ideia, pela verdade, pela plenitude.”
Em vez de “por uma ideia”, poder-se-ia emendar apenas “por uma Pessoa”.
Newman não foi, contudo, o primeiro a perfazer o caminho de volta para Roma. Antes dele, outro anglicano que havia se aprofundado nos temas dos Tracts resolvera se converter e se ordenar Padre católico: William Lockhart, recebido na Igreja Romana em 29 de agosto de 1843.
A audaz decisão de Lockhart, que fora acompanhado por Newman como seminarista anglicano, causou-lhe profunda comoção e, muito provavelmente, contribui para formar o seu próprio juízo sobre ser apenas “meio católico” (anglo-católico) ou tornar-se católico a pleno título.
Nesse processo, Newman desenvolveria um vasto apostolado no plano da inteligência, atuando intensamente no meio universitário, colaborando mesmo na fundação de uma universidade na Irlanda (da qual foi o primeiro reitor) e publicando obras sobre temas variados que somaram 37 tomos reunidos na sua opera omnia.
Em The Ideia of a University, ele sustentou o caráter universalista que o ensino acadêmico sempre deve ter, defendendo a universidade como “um lugar onde se ensina um conhecimento universal” – quase a antípoda do que as universidades fazem hoje ao transmitirem apenas ciências fragmentadas e relativistas, quando não partidarizadas e ideologizadas.
Na sua visão, todo ramo específico do saber deve se concatenar com os estudos integralizadores da filosofia e da teologia que permitem ao homem enxergar o sentido real das coisas particulares em relação ao todo, vislumbrando verdades mais abrangentes por trás dos fenômenos isolados. Além disso, ele aristotelicamente entendia que as ciências devem partir dos primeiros princípios e ordenarem-se aos fins últimos.
Newman ainda explicou didaticamente o desenvolvimento histórico das instituições de ensino, evoluindo desde os mosteiros beneditinos, passando pelas escolas catedrais da Renascença Carolíngia e pelos grandes mestres medievais, como Hugo de São Vítor e São Tomás de Aquino, até chegar às primeiras universidades da Cristandade.
Quis ele destacar, aí, a contínua relação entre a transmissão do conhecimento e a Igreja – simbiose que via como necessária para integrar os saberes de uma forma útil ao espírito humano e transcendê-los ao dar-lhes um sentido holístico e supra-histórico.
A universidade, para Newman, é
“um lugar onde a investigação é impulsionada para frente, e as descobertas são verificadas e aperfeiçoadas; onde a precipitação se torna inócua, e o erro é exposto, pela colisão de mente com mente, e de conhecimento com conhecimento. […] É um núcleo de sabedoria, uma luz do mundo, um ministro da fé, uma Alma Mater da geração ascendente.”
Não há dúvidas de que ele ficaria desapontado em ver o que a universidade se tornou hoje em dia: um mero centro de produção de operários para suprir a demanda do mercado por mão-de-obra, quando não de difusão de ideologias transmutadas em “verdades científicas inquestionáveis” e de adestramento massivo de estudantes para serem peões de militâncias partidárias e excêntricos modismos comportamentais.
Em 1847, Newman se tornaria sacerdote do Oratório de São Felipe Néri e, em Birmingham, estabeleceria o primeiro Oratório do mundo anglófono. Pelos serviços prestados às almas do seu tempo e à Igreja, o Papa Leão XIII o nomearia também cardeal em 1879. Bem mais tarde, mais de um século após sua morte, Newman chegaria à honra dos altares, sendo beatificado e canonizado pelos Papas do nosso tempo.
Convém ressaltar, porém, que sua canonização não foi apenas em virtude de sua conversão, mas por todo o apostolado intelectual e pastoral que empreendeu e pela vida de piedade e virtude que procurou levar. Newman foi certamente um gigante do espírito, um homem que edificou muito os seus contemporâneos, e foi admirado a ponto de o seu funeral ter sido acompanhado por cerca de 15 mil pessoas, numa localidade de maioria protestante.
Ao todo, os expoentes tractarians da primeira fase do movimento, contemporâneos de Newman, somaram cerca de uma dúzia de intelectuais, a respeito dos quais há pouca coisa publicada em português. Para os que leem em inglês e quiserem se aprofundar sobre eles, indico o The Oxford Handbook of the Oxford Movement (2017), uma coletânea de artigos compilados pela própria universidade sobre o movimento tractariano e seus corolários.
Enfim, no próximo artigo, que será o terceiro dessa série, começarei a tratar daqueles luminares da cultura que, estimulados pelos ventos de Oxford, contribuíram para revitalizar a música, a arquitetura, as artes plásticas, a literatura, a ciência e o pensamento sociopolítico, de maneira tal que ainda hoje colhemos os seus belos frutos.
*Esta faceta do “maravilhoso legado anglo-saxão, protestante e capitalista” não aparece muito nas aulas de História e páginas de autores liberais ou neoconservadores. Mas nem por isso deixaremos de falar dos “esqueletos no armário” que os anglófilos querem ocultar para preservar a falsa imagem da Inglaterra moderna como a “mãe do mundo civilizado” – mitologia fabricada pela própria máquina propagandística inglesa e disseminada por toda a congregação dos liberal-conservadores iludidos