Porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato. Pretendendo-se sábios, tornaram-se estultos. Mudaram a majestade de Deus incorruptível em representações e figuras de homem […]. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém! (Rm 1, 21-25)
Introdução
O surgimento da Democracia Cristã como corrente de pensamento e ação políticos aconteceu apenas nos anos 30. De fato, foram uma ascensão e queda meteóricas. Seu principal mentor intelectual foi o pensador francês Jacques Maritain. Nascido em 1882, convertido ao catolicismo aos 24, outrora socialista e discípulo do filósofo judeu Henri Bergson, Maritain se afiliará, em um primeiro momento após a sua conversão, a uma corrente tomista mais ortodoxa. É o momento de obras como Antimoderne e Trois réformateurs: Luther, Descartes, Rousseau (1922 e 1925), uma época de aproximação à Ação Católica e à Action Française. Após a condenação desta última por Pio XI, contudo, Maritain fará um movimento de reaproximação da esquerda, agora católica, principalmente do Sillon (movimento que, a seu turno, já havia sido condenado por Pio X).
Em 1936, Maritain lança na França o livro que haveria de ficar conhecido como marco inaugural do movimento denominado democracia cristã: Humanisme Intégral. Nele transparece não apenas a boa-fé do autor relativamente a muitos assuntos, mas também uma certa confusão a respeito de certos conceitos teológicos e também metafísicos.
Parvus error…
Como já se aludiu, Maritain era, antes de sua conversão, discípulo de Bergson, cuja filosofia era marcada por uma tendência à análise da psicologia humana (a questão da duração e do pensamento), bem como de suas pulsões (é o filósofo do élan vital). Esta formação parece ter influenciado decisivamente o modo como Maritain recebeu a doutrina de S. Tomás de Aquino.
Deste modo, à semelhança de um dos personagens a quem tanto critica, Martinho Lutero, o autor francês alcançou um sucesso estrondoso em pouco tempo. Acabou sendo alçado, num curto prazo, à posição de famoso conferencista e divulgador da filosofia de S. Tomás, sobre a qual palestrava mundo afora. No que se refere ao estudo dela, no entanto, essa ascensão precoce parece haver prejudicado, em prol de um ofuscante e fugaz brilho, a capacidade de aprofundamento de Maritain. Ele, ao contrário de outros autores da mesma época, como Cornelio Fabro e Étienne Gilson, parece jamais ter chegado a atinar, até o final de sua vida, com aquilo que é talvez a distinção mais fundamental contida na doutrina do Doutor Comum: aquela entre ato de ser e existência (esse ut actus e esse in acto).
A ausência dessa distinção, que redundava numa sobrevalorização da existência, que agora havia usurpado o lugar do ser, haveria de lhe valer não apenas um lugar de destaque no rol daquilo que se convencionou chamar “existencialismo tomista”, mas iria também resultar em erros capitais que repercutiram em vários dos desdobramentos de sua doutrina.
Afinal, S. Tomás não encarava o ato de ser como sinônimo de mera existência. Aqueles que o faziam eram, antes, seu contemporâneo Dietrich de Freiberg e, também, mais tarde, Guilherme de Ockham, considerado por muitos o iniciador da via moderna e o pai do nominalismo. Na 1ª parte da Suma Teológica, ao contrário, o Aquinate afirma o seguinte:
[C]omo Deus é o próprio ser subsistente [ipsum esse subsistens], nada da perfeição do ser pode lhe faltar. Uma vez que todas as perfeições pertencem à perfeição de ser, é seguindo a ela que algumas coisas são perfeitas, porque de algum modo têm o ser. Donde se segue que nenhuma perfeição das coisas falta a Deus. E esta razão é tangenciada por Dionísio, ao dizer que Deus não existe de certo modo, mas, antes, abarca primordial e simultaneamente todo o ser em si de maneira incircunscrita e simples. [1]
Por outro lado:
Aquelas coisas que carecem de vida, como os corpos inanimados, que são mera existência [tantum existentia], desejam o bem divino pela aptidão a participar, por Deus, no ser subsistente, devendo-se compreender, aqui, por ‘desejo’ essa simples aptidão. [2]
ser é mais nobre que viver, embora os viventes sejam mais nobres que os simplesmente existentes [existentia tantum], na medida em que também os viventes participam de maneira mais nobre do ser. [3]
Para S. Tomás, Deus é o ser subsistente justamente por ser ato puro, sem mescla de potência. E o ato é algo intensivo: a extensão, a seu turno, depende da matéria. Poder-se-ia afirmar, com Joseph de Finance, que a existência é algo como o efeito de se ter o ser, e só se dá nos entes materiais. Confundir a existência com o ato de ser significa tomar o efeito pela causa e, portanto, o secundário pelo principal. Esta dimensão da doutrina de S. Tomás pode ser mais bem entendida se repararmos que, na questão 21, a. 6, do De veritate, ele afirma explicitamente que o ente existe por algum modo. Ao tratar da mesma questão na Suma Teológica, explica, então, que o modo significa o princípio material ou eficiente de comensuração do ente. [4]
Outro efeito de se confundir o aspecto mais elevado da realidade, que é o ato de ser, com a mera existência, consiste numa certa compressão e incompreensão da forma. Esmagada pelo peso de uma existência que usurpou o lugar do ser, ela passa, ao mesmo tempo, a ser concebida então como mera possibilidade, uma vez que o ser foi reduzido à extensão (ex–sistentia). Por outro lado, do ponto de vista intelectual, o ente realmente existente passa a ser considerado como espécie do ser meramente possível (que abarca tudo aquilo que é imaginável como não contraditório, numa máxima compreensão predicativa que, ao mesmo tempo, é mínima intensão significativa, i. e., não diz nada a respeito do ser, exceto que é pensável sem que se viole a lei de não-contradição). Em suma, o esquecimento do ato de ser abre as portas para um conflito insolúvel e paradoxal entre essência meramente possível e existência bruta material e efetiva.
O mais curioso é que Maritain quase chega a tocar essa distinção, que está implícita em outra que ele faz em diversas de suas obras, dentre as quais Três Reformadores: aquela entre indivíduo e pessoa.
O que nos diz a filosofia cristã? Ela nos diz que a pessoa é uma substância individual completa, de natureza intelectual e senhora de suas ações”, sui juris, autônoma, no sentido autêntico dessa palavra. Assim, o nome de pessoa é reservado às substâncias que possuem essa coisa divina, o espírito, e que são por isso, cada uma por si, um mundo superior a toda a ordem dos corpos, um mundo espiritual e moral que, propriamente falando, não é uma parte desse universo, e cujo segredo é inviolável até mesmo ao olhar natural dos anjos; o nome de pessoa é reservado às substâncias que, escolhendo o seu fim, são capazes elas mesmas de se determinar aos meios e de introduzir no universo, por sua liberdade, séries de eventos novos, às substâncias que podem dizer à sua maneira: fiat, e isso é feito. E o que faz a sua dignidade, o que faz a sua personalidade, é própria e precisamente a subsistência da alma espiritual e imortal, e sua independência dominadora em relação a toda a imagética fugaz e a toda a maquinaria dos fenômenos sensíveis. Também São Tomás ensina que o nome de pessoa significa a mais nobre e a mais elevada das coisas que são na natureza inteira: Persona significat id quod est perfectissimum in tota natura“.
O nome de indivíduo, ao contrário, é comum ao homem e ao animal, à planta, ao micróbio e ao átomo. E enquanto a personalidade repousa sobre a subsistência da alma humana (subsistência independente do corpo e comunicada ao corpo, o qual é sustentado no ser pela subsistência mesma da alma), a filosofia tomista nos diz que a individualidade é fundada como tal sobre as exigências próprias da matéria, princípio de individuação por que é princípio de divisão, porque ela exige ocupar uma posição e ter uma quantidade, por meio da qual o que está aqui se diferencia do que está ali. De modo que, enquanto indivíduos, […] somos […] uma parte, um ponto dessa imensa rede de forças e de influências, físicas e cósmicas, vegetativas e animais, étnicas, atávicas, hereditárias, econômicas e históricas, de cujas leis dependemos. Enquanto indivíduos, estamos submetidos aos astros. Enquanto pessoas, nós os dominamos. [5]
A distinção de fundo feita por Maritain – a saber, aquela entre pessoa e indivíduo – tem um quê de verdadeiro: a mera individualidade radica na matéria, que é potência e, portanto, princípio da quantidade dimensiva e da divisibilidade; a personalidade, a seu turno, radica no intelecto e, em última instância, em Deus uno e trino, fonte de toda a inteligibilidade e pessoalidade e ato puro de ser. Deixando para um momento futuro o aprofundamento nos erros próprios desta doutrina, é interessante notar o reconhecimento por Maritain, da presença, no mundo, de uma “imensa rede de forças e de influências… atávicas, hereditárias, econômicas e históricas”.
No entanto, ao que tudo indica, Maritain parece jamais ter se dado conta da distinção entre existência e ato de ser até o final de sua carreira intelectual. Se algum dia chegou a fazê-lo, certamente, isto não ocorreu até a época em que escreveu Humanismo Integral, cujo capítulo V, que trata do “ideal histórico de uma nova cristandade” é introduzido pelo seguinte parágrafo:
Relaciona-se o ideal [histórico de uma nova cristandade] … com o que chamamos “as constelações inteligíveis que dominam a história humana”. Se conseguimos determiná-lo suficientemente, pertence à ordem das essências ou das estruturas inteligíveis possíveis em si mesmas, quero dizer, não comportando nelas nenhuma nota que as torne incompatíveis com a existência – com a existência datada da era em que entramos. E é bastante que tal ideal seja possível…. Todavia, nosso estudo não seria completo se não considerássemos também, … porque em boa doutrina a própria essência se define em relação à existência – potentia dicitur ad actum – as condições de realização desse ideal. [6]
Desta passagem resulta patente a confusão entre existência e ser na obra de Maritain (“a essência se define em relação à existência”), que se desdobra em uma série de outras confusões em matérias de filosofia política, como veremos a seguir.
…magnus est…
Alguns dos efeitos mais importantes da confusão mencionada acima incidem sobre sua concepção de filosofia da história: essa indistinção de planos entre o ser e a mera existência redunda numa identificação entre história da salvação (a história de como os eleitos atingem seu fim último, i. e., do ato de ser criado do homem em tensão a Deus) e história da humanidade (isto é, daquelas mesmas forças atávicas acima das quais ele havia colocado as pessoas):
Todavia o que virá depois do tempo é preparado pelo tempo: constitui o reino de Deus o termo final que o movimento da história prepara e ao qual invade, e para o qual convergem de um lado a história da Igreja e do mundo espiritual, e doutro lado a história do mundo profano, e da cidade política: com esta diferença que a história da Igreja é já a história do reino de Deus começado no tempo, do “Reino crucificado”, que no final será revelado; enquanto a história do mundo profano só chegará ao termo último mediante uma mutação substancial, designada com a conflagração do mundo, e que o conduzirá ao Reino. [7]
A simples leitura da passagem acima poderia deixar a impressão de que, em Maritain, este erro não é tão decisivo, na medida em que a “mutação substancial”, a que o autor denomina “conflagração”, poderia se tratar de um evento cósmico e sobrenatural. Porém, uma leitura mais atenta do restante do livro faz pairarem sérias dúvidas a este respeito. Vejamos, pois, em quais outros contextos Maritain emprega expressões correlatas:
Mas então, está-se a ver, é de uma reconstrução total de nossas estruturas culturais e temporais, formadas sob o clima do dualismo e do racionalismo antropocêntricos, é de uma transformação substancial destas estruturas que se trata. [8]
A civilização moderna é uma vestimenta muito usada, não se pode colocar nela novos pedaços, é uma reconstrução total e como que substancial que está em causa, uma subversão dos princípios da cultura, pois que se trata de atingir um primado vital da qualidade sobre a quantidade, do trabalho sobre o dinheiro… . [9]
Diante de tais excertos, talvez pareça ainda um exagero, ao nosso leitor, a afirmação de que Maritain se configura como caudatário – junto de Lessing, Marx e Comte, por exemplo – daquele milenarismo de Joaquim de Flora tão denunciado por autores como Eric Voegelin, cuja meta consistia na realização de um terceiro e definitivo estágio da humanidade. Se a próxima citação ainda não for suficiente para que chegue a esta conclusão, não há problema (há ainda outra carta na manga):
Chamou-se “uma nova Idade Média” a era no limiar da qual nos encontramos. … Conviria antes chamá-la uma terceira idade, encarando como uma primeira idade a da antiguidade cristã, que durou cerca de oito séculos, e caracterizando a Idade Média como o tempo de formação e de duração e de maturação histórica (no bem e no mal da Europa cristã; apareceriam então os tempos modernos antes de tudo como a dissolução ruidosa, com uma formidável irradiação de energia, da longa época precedente; e da terceira idade de nossa era de civilização poder-se-ia apenas dizer que começou, ou melhor, que lhe assistimos aos pródromos, às longínquas preparações que a anunciam. [10]
Estas preparações para a terceira idade – ideia que ele afirma ter haurido em um escrito de S. Tomás (cuja autoria foi descartada, sendo, na verdade, de Egídio Romano) – parecem ser vistas por Maritain como divinas e, portanto, de adesão obrigatória para os cristãos, como se pode constatar no trecho abaixo:
Enfim, se é verdade, como não pode um cristão deixar de pensar, que Deus governa a história, que nela vai realizando, a despeito de todos os obstáculos, certos desígnios, e que assim se efetuam uma obra divina e preparações divinas no tempo e pelo tempo, seria ir contra o próprio Deus e lutar contra o supremo governo da história, pretender imobilizar em uma forma do passado, em uma forma unívoca, o ideal de uma cultura digna de ser o fim de nossa ação. [11]
A similaridade entre a filosofia da história subjacente a seu humanismo integral e aquela do comunismo é deixada clara na seguinte passagem, em que Maritain deixa transparecer não apenas a comunhão de base existencial entre ambas, mas, novamente, sua própria ideia imanentista da história humana. A mutação substancial a que havia se referido revela-se, então, nessa passagem, completamente intramundana – é a libertação da classe operária (o “quarto Estado”):
Sua [das organizações humanistas integrais] situação concreta … seria determinada pelas seguintes variantes: de um lado, as várias espécies de fascismo…, opostas ao ideal histórico em que veriam estas formações políticas seu fim especificador, e opostas à própria base existencial e à própria necessidade primordial que reconheceriam — entendo por esta “base existencial”, o movimento que leva a história para uma mutação substancial em que o “quarto Estado” acederá … à propriedade, a uma liberdade real … . De outro lado, o comunismo reconhece certamente a base existencial em questão, falseando-lhe o conceito … e falseando em consequência o sentido a imprimir à revolução… . [12]
Como realizar esta obra? “Ora”, diz Maritain, “é impossível que uma transformação vitalmente cristã da ordem temporal se produza da mesma maneira e por meios idênticos que as outras transformações e revoluções temporais. Se se realizar, será função do heroísmo cristão.” [13] Os meios para suscitar tal heroísmo são elencados por Maritain em outras passagens. Nelas, o que mais chama a atenção, além da ausência de qualquer menção aos sacramentos, é a concepção intimista, subjetivista e até naturalista de Maritain, que parece crer sobretudo naquilo que ele chama reservas morais e no valor do sofrimento como meio redentor, e chega a mencionar a graça como instinto.
Cogitou-se mais acima do emprego dos meios humanos, …. Acreditamos que o requerido não é afastá-los, …é abri-los a este grande movimento de descida do Amor incriado entre os homens, que é a própria sequência da Encarnação.
Quando distinguimos os meios da paciência e da coragem em sofrer e os da agressividade, ou da coragem em atacar… demos primazia aos primeiros.
É-lhes [aos aderentes a suas organizações vitalmente cristãs] necessário também…seja reconhecido todo um mundo de outros meios, e posto em execução; e entre eles os que chamamos de meios de edificação e os que chamamos de meios espirituais de guerra: os meios de paciência e de sofrimento voluntário que são por excelência os meios do amor e da verdade… [14]
Vale a pena, ainda, reparar numa outra passagem, que, de certo modo, sintetiza a visão imanentista de Maritain e, sobretudo, sua visão semi-pelagiana e subjetivista da ação da graça como força que opera por meios eminentemente secretos, e não ostensivos; e que se exerce não sobre a vontade, mas sobre a razão:
E a considerar as coisas segundo muitas grandes distâncias de séculos, verifica-se que uma das exigências da história humana é mesmo escapar cada vez mais ao fatum. …prossegue o progresso normal por onde se manifesta e se realiza a natureza humana….Libertação do fatum, sim! Mas que não será efetiva senão na medida em que a vida da razão crescerá verdadeiramente e efetivamente na existência, e na medida, pois, em que a graça e o influxo da Liberdade criadora a nutrirão secretamente. O terrível equívoco de Marx foi de ter acreditado que para escapar ao fatum era preciso escapar a Deus. [15]
Em outra passagem, Maritain deixa explícito onde residem as frescas fontes de reservas morais de onde ele pretende haurir o dinamismo para que seja feita sua revolução: no proletariado, que, agora, passa a ocupar, como servo sofredor coletivo, o lugar da Igreja como corpo místico e agente regenerador da humanidade – mas, “sem cair no messianismo marxista”, é claro:
sem cair no messianismo marxista, pode um cristão reconhecer que há uma visão profunda nesta ideia de que o proletariado, por isto mesmo que terá existido [sic] como um sofredor na civilização capitalista… é portador de frescas reservas morais que lhe designam uma missão em face do mundo novo” [16]
Martyrem non facit poena, sed causa (não é a pena que faz o mártir, mas a causa) disse S. Agostinho. Aparentemente, para Maritain, as coisas funcionam de outra maneira: o simples sofrimento já é por si meritório. Na sequência veremos como seu pensamento se desenvolveu na principal obra por ele escrita sobre política no pós-II Guerra: O homem e o Estado.
…in fine
Já em O homem e o Estado, Maritain apresenta uma versão diferente acerca da maneira como ocorrerá esta racionalização da política. Se antes a ênfase recaía sobre a ação oculta da graça, agora, a religião, que havia sido entrementes subjetivizada, naturalizada e privada de seus sacramentos, ganha um novo culto coletivo, um novo rito: “é somente pela democracia que pode ser alcançada uma racionalização moral da política” [17] (LHLE, 79). “Como disse Bergson,” afirma ele, mais adiante, “o sentimento e a filosofia democráticos têm suas raízes mais profundas no Evangelho” [18] . “Uma democracia autêntica implica um acordo fundamental dos espíritos e das vontades…ela deve trazer consigo um credo humano, o credo da liberdade.” “A fé em questão… é um conjunto de convicções do espírito e do coração, uma ‘fé’ temporal e secular, versando sobre os dados essenciais do ‘conviver’ na cidade terrestre.”[19]
Ao apresentar os meios espirituais pelos quais esta doutrina pode prevalecer, Maritain destaca especialmente o nome de uma figura histórica. Poderíamos esperar que, pelo fato de se tratar de um autor católico, essa figura fosse Cristo; ou, quem sabe, outro líder, como S. Luís da França, S. Joana D’arc, S. Maximiliano Maria Kolbe, Edith Stein, ou até Carlos da Áustria. Mas, não: a inspiração de emprego dos meios espirituais para a Democracia Cristã vem, em última instância, de um hindu:
Existe, enfim, uma categoria de meios totalmente diferentes… os meios espirituais sistematicamente aplicados ao domínio temporal, dos quais um exemplo marcante foi o Satyagraha de Gandhi. Eu gostaria de chamá-los “meios de guerra espiritual”. [20]
Aqui, uma vez mais, o autor faz diversas menções à paciência e ao sofrimento voluntários. Chama a atenção para o significado da palavra indiana: “força da verdade” ou “Força do Amor”; até “Força da Alma”. No entanto, novamente não se constatam quaisquer menções a Cristo, à Igreja ou aos Sacramentos. Mais adiante no capítulo, são mencionados, nesta mesma linha, os fautores da Revolução Francesa, os do Risorgimento Italiano e, numa lista em que figuram os nomes dos Thomas Paine e Jefferson [21], surpreende-nos mais a ausência do de Hobbes do que a dos Thomas Beckett, More e o de Aquino.
Essa usurpação da verdadeira religião pela religião secular em O Homem e o Estado, fica ainda mais clara na passagem em que Maritain discorre sobre o papel de seus “sacerdotes”, aqueles responsáveis por catequizarem os “pagãos seculares” no novo credo: “cada mestre”, diz ele” deve… engajar suas convicções filosóficas ou religiosas, sua fé pessoal, sua alma, no seu esforço por confirmar e vivificar nos espíritos a carta moral da democracia”. [22]
No entanto, assim como a antiga religião não se fazia apenas de sacramentos e de graça, mas de mandamentos, a nova religião tampouco se fazia apenas de ritos e de razão. Era preciso a ela acrescentar outra coisa. Ainda acerca da antiga religião, e de seu ideal civilizacional, havia afirmado Maritain o seguinte:
[P]ara uma ingênua civilização cristã … progredir para Deus era antes de tudo elevar-lhe um trono na terra segundo os direitos de sua majestade …, para uma civilização que não pode mais ser ingênua … progredir para Deus será, parece, antes de tudo, preparar para o homem as condições terrestres de uma vida em que possa o amor soberano descer e fazer no homem e com ele uma obra divinamente humana.
Ou seja, progredir para Deus, na Idade Média, significava elevar-Lhe um altar, proclamar os direitos de sua Majestade, cumprir os mandamentos. Para a nova civilização profano-cristã ideada por Maritain, o progresso consistirá sobretudo em declarar os direitos do homem.
Porém, curiosamente, o fundamento desta dignidade do homem, segundo a abordagem humanista cristã que Maritain chama de “humanismo da encarnação”, parece prescindir não apenas dos sacramentos, mas também da própria semelhança humana ao Criador como fundamento.
Neste novo momento da história da cultura cristã … a criatura … seria reabilitada em Deus. Não há mais senão uma saída … que a criatura seja verdadeiramente respeitada em sua ligação com Deus e por causa de sua dependência para com Ele; humanismo, mas humanismo teocêntrico, enraizado lá onde o homem tem suas raízes, humanismo integral, humanismo da Encarnação. [24]
Pois bem, o que gostaríamos de sugerir é que esta atitude do santo … não é uma atitude de desprezo pelas coisas, mas antes de assunção e de transfiguração das coisas em um amor superior às coisas. [25]
Aliás, em relação à própria Declaração de 1948, que ele próprio ajudou a construir, Maritain reconhece a existência de um acordo apenas formular: “Quanto durar a falta de unidade de fé e de filosofia nos espíritos dos homens, tanto durará o conflito entre interpretações e justificações em mútuo conflito” [26]
Maritain tenta eludir esta fraqueza mediante o argumento de que “sistemas teóricos em conflito” podem convergir “nas conclusões práticas” [27] . No entanto, tal assertiva é apenas parcialmente verdadeira, o que a torna, a bem da verdade, totalmente falsa: em primeiro lugar, porque mesmo que tais conclusões de juízos práticos fossem condutas humanas extrinsecamente idênticas, cabe afirmar que as ações apenas são idênticas têm a mesma intenção, isto é, se suas premissas maiores são idênticas (sejam elas referentes ao fim último, que é a premissa magna de todo raciocínio prático; sejam elas referentes a algum fim intermediário); em segundo lugar, porque aquilo que Maritain chama de conclusões práticas parecem não ser as ações (que são, segundo Aristóteles, as conclusões do juízo prático), e sim, na maior parte, certas máximas vagamente formuladas sobre os direitos do homem.
Deste modo, mesmo dadas todas as deficiências da concepção de Maritain acerca do homem e da sociedade, não surpreende que estejamos assistindo, malgrado o caráter aparentemente inofensivo da Declaração de 1948, a ascensão de novos direitos e até do transhumanismo na ONU: se Maritain, que declaradamente era católico e tomista, não foi capaz de distinguir os homens das bestas, tampouco o serão os herdeiros confessos de John Locke.
Esta é, ao fim e ao cabo, a conclusão prática de uma doutrina que incorre nos mesmos erros do subjetivismo religioso de Lutero, da metafísica do ente como possível (i. e., como pensável) de Descartes, e da exaltação idolátrica da democracia de Rousseau, tão criticados por Maritain em uma de suas primeiras obras, mas a cuja sina tampouco seu pensamento escapou, de modo que podemos intitulá-lo, sem medo de estarmos cometendo uma injustiça, ao lado dos outros três, como “o quarto deformador”.
Referências bibliográficas:
[1] S. Tomás de Aquino. Summa Theologiae, q. 4, a. 2, co.
[2] Idem. De divinis nominibus, cap. 4 l. 3
[3] Idem. Scriptum Super Sententiis, lib. 3 d. 27 q. 1 a. 4 arg. 13
[4] Cf. Idem. Quaestiones disputatae De Veritate, q. 21 a. 6 s. c. 4; Summa Theologiae, Ia, 5, a. 5, co.
[5] Três Reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau. São Paulo: Cultor de Livros, p. 25-26.
[6] Humanismo Integral: uma nova visão da ordem cristã. Tradução de Afrânio Coutinho. 5ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 167.
[7] Ibid., p. 81
[8] Ibid., p. 57
[9] Ibid., p. 144
[10] Ibid., p. 192
[11] Ibid., p. 112
[12] Ibid., p. 216
[13] Ibid., p. 95
[14] Ibid., p. 198-199
[15] Ibid., p. 104
[16] Ibid., p. 185-186
[17] L’Homme et l’État. Préface de Paul Valadier. Paris: Desclée de Brouwer, 2009, p. 79
[18] Ibid., p. 81
[19] Ibid., p. 133
[20] Ibid., p. 88
[21] Cf. ibid., p. 164
[22] Ibid., p. 144
[23] Humanismo Integral, p. 60
[24] Ibid., p. 58
[25] Ibid., p. 59
[26] L’Homme et l’État, 100
[27] Ibid., p. 101