Yuval Noah Harari, o homem algorítmico, dataísmo e a redução da mente à matéria.
Deividi Pansera
No meu primeiro artigo sobre o transumanismo, delineei um panorama histórico sobre o movimento, apresentei a principal tese transumanista e as suas variações. Fiz isso, por meio das atividades e definições dos intelectuais que advogam o transumanismo. Neste artigo (quem sabe mais alguns), falarei um pouco sobre os pressupostos filosóficos do movimento.
Bom, vamos lá. Uma das derivações da tese transumanista, conforme enunciada no primeiro artigo, é a busca pela imortalidade humana (no sentido material). E um dos meios de se fazer isso seria, como no filme Transcendence, transferir a mente para um computador. Apesar de ser admitido, como o faz o popstar transumanista Yuval Noah Harari, de que isso pode não ocorrer no futuro próximo. Entretanto, a possibilidade de que isso possa ocorrer pressupõe que, ao menos, a mente pode ser reduzida à matéria.
Antes de falar do problema da redução da mente à matéria, vou falar rapidamente do dataísmo de Harari.
Dataísmo
No seu livro Homo Deus: Uma breve história do amanhã, Harari, pela história que conta, defende uma visão algorítmica do homem. Ele escreve: “Um algoritmo é um conjunto metódico de passos que podem ser usados para fazer cálculos, resolver problemas e tomar decisões.”
Nos seres vivos, os processos bioquímicos que dão vida aos seres vivos e os mantém vivos seriam, para o Harari, instanciações materiais de algoritmos. E assim, você, leitor deste artigo, é um homem algorítmico.
Já no seu artigo On big data, Google and the end of free will, ele cunhou o termo dataísmo para se referir a uma cosmovisão em que o universo seria um fluxo de dados. Tudo é dado processado. Uma vez que os organismos (inclusive você e eu) são uma espécie de algoritmos bioquímicos, o homem algorítmico, o chamado da humanidade, então, seria criar um sistema de processamento de dados universal e, é claro, imergir nele.
Isso significa que, de acordo com o dataísmo, uma sinfonia de Beethoven, uma bolha na bolsa de valores e o vírus chinês 19 são apenas três padrões de fluxo de dados que podem ser analisados usando os mesmos conceitos e ferramentas básicas. Ou seja, tudo, absolutamente tudo é dado que pode ser “processado”.
“Norari e os gurus do Vale do Silício, talvez por se identificarem com algoritmos bioquímicos, já não refletem sobre os princípios do que pregam”
Bom, além de ser um simples reducionismo da realidade, antes das pessoas estarem rodeadas de “dispositivos”, recebendo e produzindo dados, elas próprias estão presentes no mundo e são inundadas por estímulos, por meio da percepção sensitiva, que precisam ser “processados” (termo dataísta). Os antigos simplesmente chamavam isso de pensar.
Ademais, implicitamente, o dataísmo assume dois princípios falsos. O primeiro é a idéia de que tudo é mensurável, ou seja, mais uma vez estamos entregues ao acidente da quantidade, quando há, como Aristóteles ensinou, ao menos outros oito acidentes. O segundo é a idéia de que existe uma equação para todas as coisas medidas.
Para o primeiro princípio, além do intelecto, que é imaterial – o que faz dele central para a impossibilidade da redução da mente à matéria, tema discutido aqui – e, portanto, não mensurável, há a própria Física. Se a teoria das cordas, por exemplo, for verdadeira, como raios você mensura uma corda, ou uma P-brana?
Já para o segundo princípio, jamais se pode esquecer de que as equações enfocam o mensurável e somente podem aproximar o incomensurável, via um modelo, que, por sua vez, é outra aproximação. Ou seja, existem eventos que não podem ser medidos com certeza. Mais uma vez, a simples apreensão do intelecto, mas também os eventos da mecânica quântica, como é sabido.
Norari e os gurus do Vale do Silício, talvez por se identificarem com algoritmos bioquímicos, já não refletem sobre os princípios do que pregam. Não há nada de novo sob o sol. O dataísmo é simplesmente uma faceta do cientificismo.
Pode a mente humana se reduzir à matéria?
É impossível que uma pessoa, ao se deparar com os recentes avanços tecnológicos da Inteligência Artificial (IA), não fique, no mínimo, impressionada. Assistente virtual da Google que faz, sozinha, ligação telefônica para estabelecimentos e agenda horários; AlphaGo derrotando um jogador 9 Dan de Go, considerado o melhor do mundo; “Generative Adversarial Networks” gerando, de maneira muito realista, uma foto de uma pessoa que não existe; pinturas e imagens que outrora eram estáticas e agora se movimentam. Enfim, diversos são os exemplos e eu poderia continuar citando mais e mais deles. O que me interessa, porém, é a questão filosófica a respeito da mente. O intelecto, porventura, é uma IA avançada?
“os transumanistas, pela natureza do seu próprio projeto, possuem uma visão torpe da natureza humana. Na sua concepção de homem, não há espaço para a alma e, portanto, para um dos seus principais atributos: o intelecto.”
Ora, se eu sou um homem algorítmico via algoritmos bioquímicos, como diz Harari, então a minha mente pode ser reduzida à matéria. Entretanto, com ressalvas. O materialismo, em qualquer versão, algorítmica ou não, possui as suas pedras. Uma delas é a consciência e a outra a auto-consciência. No mesmo livro, Homo Deus: Uma breve história do amanhã, Harari parece desprezar a consciência. Ele apresenta um “pensamento que vale a pena pensar, mesmo que não seja verdadeiro”:
“[A consciência] é uma espécie de poluição mental produzida pelo disparo de redes neurais complexas. Não faz nada. Simplesmente está lá.”
Bom, os transumanistas, pela natureza do seu próprio projeto, possuem uma visão torpe da natureza humana. Na sua concepção de homem, não há espaço para a alma e, portanto, para um dos seus principais atributos: o intelecto.
Se você assume uma metafísica aristotélico-tomista (AT) e investiga a natureza humana, de maneira bem sucinta, o intelecto não é uma IA avançada. Pois, assumindo AT, o intelecto humano, entre outras coisas, possui a capacidade de cognição imaterial. Isto é, o intelecto é o responsável, por exemplo, por captar o conceito de triangularidade, que é imaterial; ou o conceito de homem, etc. Dito de outra forma, o intelecto possui a capacidade de captar formas (naturezas ou essências).
Agora, como o hilemorfismo é parte de AT, isso significa que todo ente corpóreo é um composto de matéria e forma. E aquela só é inteligível por causa da forma. A forma é justamente o que torna inteligível a matéria. O que faz a coisa ser o que é. Mais ainda, quando algo material é “informado” por uma forma, ele é “transformado” por ela. Ele se torna ela.
“o intelecto humano, entre outras coisas, possui a capacidade de cognição imaterial. […] Dito de outra forma, o intelecto possui a capacidade de captar formas (naturezas ou essências).”
Assim, se o intelecto fosse uma IA avançada, isso significaria que toda a sua atividade se reduziria a processos materiais e, em última instância, ele seria uma matéria (pois uma IA é um artefato, logo é material). Portanto, dado o hilemorfismo comentado acima e a capacidade do intelecto, cada vez que o intelecto recebesse uma forma, ele deveria se “transformar” nela. Ou seja, se o intelecto se reduzisse à matéria, cada vez que, por exemplo, eu pensasse no conceito de cachorro, o intelecto se tornaria um cachorro enquanto ente corpóreo. Isso, obviamente, é um absurdo.
Portanto, se o intelecto é imaterial, então ele não é uma IA avançada. Se o que a tradição aristotélica-tomista diz sobre o intelecto humano for verdadeiro, o que eu penso ser o caso, a mente jamais será reduzida à matéria.
Assim, há uma impossibilidade metafísica em um dos principais pressupostos do transumanismo, o que significa, simplesmente, que o que eles almejam para o homem não é possível, mas disso não se depreende que não se deve temer a implementação do projeto transumanista. Não. Junto com essa visão torpe do homem, que é uma criatura que precisa ser superada pelo pós-homem, há o problema do niilismo que assola quem aceita a idéia transumanista. Ademais, a distopia de uma sociedade cheia de homens modificados, acidentalmente, por artefatos tecnológicos parece-me assustadora.
Preste atenção ao transumanismo.
*Publicado originalmente em Transumanismo – rumo a uma sociedade pós-humana (Parte 2).
Reproduzido aqui com expressa permissão do autor.
Deividi Pansera é escritor, doutor em matemática e cientista de dados.