Tem sido comum na história humana, em períodos de graves crises, a intensificação do hedonismo entre as pessoas. Cada um quer aproveitar ao máximo os meios de que dispõe sem tomar consciência da miséria que corre ao lado, sem se sentir responsável por ela.
Ao se observar tal realidade, percebe-se uma exagerada concentração de poder nas mãos de alguns poucos privilegiados que, somada a uma crescente degradação de valores, faz com que a desordem social reforce a prevalência de uma cultura individualista onde cada um está livre para fazer tudo o que pode até o limite do explicitado em lei, sem se incomodar com o direito alheio.
Este individualismo tem gerado um clima de apreensão e insegurança não só aos mais fracos, mas também às instituições fundamentais como a família e o trabalho. Cada dia mais pessoas são pressionadas a produzir mais sem a consciência do que fazem ou para quem fazem. Esta atuação acaba levando a um estado de angústia e frustração que afeta não só os que agem assim, mas todos aqueles que de alguma forma dependem deste serviço.
Em seu estudo sobre o equilíbrio social e a solidariedade, Maria José Rodrigo Del Blanco cita o sociólogo russo Pitirim Sorokin onde este aponta que “o principal erro da atual sociedade foi o abandono do amor, do altruísmo do amor, e a única ordem possível em uma sociedade de homens é uma ordem altruísta criativa, cuja fórmula mínima de conduta seja a justiça, o dar a cada um o que lhe é devido.” Para Del Blanco,
“A solidariedade é um desses valores desprezados e substituídos pelos valores que significavam luta, competência, sucesso e enriquecimento pessoal; ou seja, por valores que eram exclusivamente individuais. Esse individualismo, esse interesse, é o que deu origem a todas as crises sociais, as lutas e as guerras. Porém o instinto guerreiro não pode nos fazer cair no erro de proclamar a lei da luta universal porque então deveria haver uma guerra permanente, o que também não é correto. Esta nova ordem se baseará na força do amor, no crescimento das relações familiares, no declínio das relações coercitivas, e na reorientação das forças em luta. O homem foi capaz de sair sempre de situações como esta; tais ‘ressurreições’ históricas não são uma novidade.”
Só uma relação solidária pode contribuir para a coesão de um grupo ou comunidade. Quanto maior for a solidariedade e mais firme a harmonia de seus valores, tanto maior será a unidade e a oportunidade de desenvolvimento das pessoas envolvidas.
Se é muito difícil, e virtualmente impossível, ser solidário em um ambiente hostil, pode-se também afirmar que uma pessoa ou grupo não se convertem automaticamente em altruístas, inclusive num ambiente onde reine a generosidade e a bondade. Ainda que esse ambiente sociocultural possa facilitar, e muito, o desenvolvimento dessas qualidades, se necessita de um esforço pessoal incessante para que se aprofunde firmemente na mente e nas ações de cada pessoa.
A motivação da pessoa para contribuir nesta obra, passa necessariamente pelo desenvolvimento da virtude da justiça em seu aspecto da solidariedade. De nada adianta o êxito profissional e o enriquecimento pessoal num ambiente de trabalho tenso e excludente em que todos saem perdedores. A coesão do grupo e a harmonia deste ambiente são elementos fundamentais para o desenvolvimento das competências pessoais e realização de um ser complexo como o homem.
Como bem esclarece o pedagogo espanhol Victor Garcia Hoz, como pessoa devemos estar abertos para as pessoas, para as atividades e para o ambiente, absorvendo ao mesmo tempo que oferecendo algo de nós àqueles que conosco convivem, apropriando-nos do bem gerado independente do resultado esperado ou percebido.
“Uma obra completamente bem-feita é aquela cujo resultado sai do próprio sujeito e se percebe e subsiste independentemente de quem a realiza. A obra bem-feita alcança ou desenvolve todas as suas possibilidades educativas quando se manifesta em um resultado objetivo e perceptível. O exemplo mais claro é uma obra material, sensível, em cuja realização tenha havido a atuação interior prévia do conhecimento, a atuação ‘exteriorizante’ da aptidão e a possibilidade de que nela se manifeste algum valor.“
Essa qualidade ‘exteriorizante’ do trabalho a que se refere Garcia Hoz, não se esgota no âmbito individual da pessoa, pois como a pessoa é uma realidade aberta para o que a rodeia, e qualquer elemento pessoal tem uma relação com o ambiente, permitindo a projeção do sujeito em direção ao mundo exterior.
Se entendemos que as coisas mais importantes do mundo exterior são os outros, o trabalho implica necessariamente numa transcendência social. Neste sentido, a obra bem-feita transcende o objeto, projeta-se sobre o sujeito que a realiza e sobre aqueles a quem se destina esta obra. Por isso, de forma orgânica e consciente, toda pessoa deve construir uma cultura que a leve a agir de acordo com a sua natureza humana em toda a sua transcendência, dando-se como exemplo e fazendo de sua ação um testemunho de sentido para a vida. Esta condição de ser humano exige-lhe mais do que um mero cumprir, exige entregar-se.
Em nossas relações humanas, mais do que simplesmente comunicar algo ou proporcionar um mero conhecimento do que fazer, devemos animar a pessoa do outro a compreender a razão do que faz e porque faz. Faz bem o seu trabalho aquele que dá sentido ao que faz, aquele que estabelece relações de intimidade entre sua própria alma e a dos que deste trabalho se beneficiam. Aprende aquele que se põe de corpo e alma naquilo que faz, que serve ao outro numa perspectiva de realização da verdade e do bem.
A motivação de uma pessoa em toda obra que realiza deve estar alinhada com o compromisso não só do que faz, mas sobretudo, da pessoa a quem serve. É nesta perspectiva de solidariedade que o homem ultrapassa os seus limites, e ao dar-se generosamente pelos outros, acaba por dar sentido à sua própria vida, como vemos na saga de Guillaumet relatada por Saint Exupéry no livro a “Terra dos homens”, em que o aviador perdido nos Andes sofre a crescente tentação de desistir e dar descanso ao seu corpo dormente pelo frio, mas que ao pensar na miséria da família, na decepção que causaria aos companheiros se desistisse de lutar pela vida, acaba por não se entregar à neve, salvando a própria vida.
“Se alguém falar a Guillaumet de sua coragem ele dará de ombros. Ele está muito além dessa qualidade medíocre. Se dá de ombros é por sabedoria. Sua grandeza é a de sentir-se responsável. Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros. Responsável pelo que se constrói de novo, lá, entre os vivos, construção de que ele deve participar. Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de seu trabalho.”
Esse sentimento de responsabilidade pela pessoa do outro literalmente salva vidas, e abre caminho à mais legítima solidariedade que devemos encontrar no trabalho, na família e em toda a sociedade. De alguma forma todos os dias somos chamados a transpor montanhas assumindo o risco das quedas, e ninguém pode achar-se forte o suficiente para voar sozinho sem levar consigo ao menos as lembranças dos entes queridos que nos esperam, que confiam em nós, que acreditam que estamos dando o melhor de nós para cumprir a nossa missão e retornar à casa.
Como bem disse Exupery,
“Guillaumet é um desses seres amplos que aceitam o destino de cobrir largos horizontes com suas folhagens. Ser homem é precisamente ser responsável, é experimentar vergonha em face de uma miséria que não parece depender de si, é ter orgulho de uma vitória dos companheiros, é sentir-se colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo.”
Em última análise, é indiferente o lugar em que um homem profissionalmente se situa ou o trabalho que faz; o que importa fundamentalmente é a perspectiva que tem do outro em sua obra e o modo como trabalha. A solidariedade que o mundo precisa não é a que se restringe ao aspecto material, ao assistencialismo que humilha e deforma as pessoas, mas aquele que reergue e anima as pessoas a partir da obra consciente de quem a realiza.
O altruísmo do amor não pode ser mera peça de retórica, ou mero verso de poesia romântica, mas realidade compreendida e vivida como atributo essencial de realização do próprio ser. Quando damos algo de grande, somos nós os primeiros e maiores beneficiados, pois do movimento consciente somos nós, o sujeito primário da ação quem melhor se aproveita.
Se o mundo material prioriza o que toca, nós temos que perceber o valor do intangível, só possível aos que têm a alma grande, aos que estão dispostos a sair de si e dar-se generosamente pelo outro num movimento de solidariedade que oxigene o mundo, dando sentido à existência e projetando um caminho de eternidade. A solidariedade legítima começa pelo reconhecimento de nossa realidade transcendente, não só daquilo que somos, mas do muito a que fomos chamados a ser.
Bibliografia
BLANCO, M. J. R. – Pitirim A. Sorokin: Equilibrio social e solidariedade. Pamplona: Eurograf, 2003.
GARCIA HOZ, V. – Pedagogia visível: educação invisível. São Paulo: Nerman, 1987.
SAINT-EXUPÉRY, A. – Terra dos homens. 27. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.