(Continuação de: O conservadorismo contra si mesmo e a ilusão do self-made man. Este texto encerra a nossa tradução seriada em 5 partes do grande artigo Conservatism Against Itself, de Christopher Lasch, publicado em 1990 na revista digital First Things)
Por Christopher Lasch
A única crítica consistente ao “estado servil”, como foi chamado por Hilaire Belloc, veio daqueles que exigiam ou a restauração da propriedade (juntamente com as medidas drásticas necessárias para evitar o acúmulo de riqueza e propriedade nas mãos de poucos) ou o equivalente à propriedade sob a forma de algum tipo de produção cooperativa.
A primeira destas duas soluções levantadas correspondia à posição dos defensores das classes populares [1], como o próprio Belloc e, também, G. K. Chesterton.
A segunda, por sua vez, traduzia o ideário dos sindicalistas e socialistas de guilda, como os que desafiaram brevemente os socialdemocratas pela liderança do movimento operário no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial.
“No século XX, o conservadorismo aliou-se incoerentemente ao livre mercado, incluindo o livre mercado de trabalho.”
De acordo com Georges Sorel, a superioridade do sindicalismo [2] em relação ao socialismo repousa na sua apreciação do direito de propriedade, denegado pelos socialistas como fonte do provincianismo “pequeno-burguês” e do atraso cultural.
Sem se deixarem impressionar pelas mordazes críticas marxistas contra a “idiotice da vida rural”, os sindicalistas, pensava Sorel, valorizavam os
“sentimentos de apego inspirados em todo trabalhador verdadeiramente qualificado pelas forças produtivas que lhe foram confiadas”.
Outrossim, os sindicalistas respeitavam
“o amor do camponês por seu campo, sua vinha, seu celeiro, seu gado e suas abelhas”.
O fato de Sorel falar dessas posses como coisas “confiadas” ao homem mostra o quão radicalmente ele se diferenciava dos marxistas, os quais compartilhavam a visão liberal da natureza como pura matéria-prima a ser usada para fins de gozo humano.
Mas diferia também dos conservadores, que faziam da propriedade como tal um fetiche, não enxergando que o seu valor reside apenas no estímulo que ela dá ao trabalho produtivo do homem, o qual pode ser incentivado também de outras formas.
“Todas as potencialidades atribuídas à propriedade não teriam sentido sem as virtudes engendradas por um certo modo de trabalhar”.
Não era tanto a propriedade quanto a oportunidade de invenção e autoconfiança que tornava o trabalho interessante, e as mesmas vantagens podiam ser recriadas nas fábricas, pensou Sorel, uma vez que os próprios trabalhadores começassem a exercer a responsabilidade pelo desenho da produção.
“A destruição das guildas medievais, a substituição do governo local por uma burocracia centralizada, o enfraquecimento dos laços familiares e a emancipação das mulheres equivaleram a ‘passos sucessivos no… barateamento da matéria-prima do trabalho‘, tudo realizado sob a ‘palavra de ordem‘ do progresso.”
A crítica sindicalista ao capitalismo tinha autoridade real, porque se baseava na percepção de que o capitalismo não poderia cumprir a promessa que o tornou moralmente atraente em primeiro lugar – a promessa de propriedade universal.
Sindicalistas e socialistas de guildas viram que a escravidão – não a pobreza – era o verdadeiro problema, como disse GDH Cole.
Eles viram que a redução do trabalho a uma mercadoria – a essência do capitalismo – exigia a eliminação de todos os laços sociais que impediam a livre circulação do trabalho.
A destruição das guildas medievais, a substituição do governo local por uma burocracia centralizada, o enfraquecimento dos laços familiares e a emancipação das mulheres equivaleram a “passos sucessivos no… barateamento da matéria-prima do trabalho”, tudo realizado sob a “palavra de ordem” do progresso.
Enquanto os marxistas aceitavam a lógica coletivizante do capitalismo e propunham simplesmente coletivizar a produção de forma mais completa, os sindicalistas, populistas e socialistas de guildas condenavam o capitalismo moderno por razões profundamente conservadoras – porque exigia (nas palavras de AR Orage, editor de New Age) o “estilhaçamento progressivo aos átomos de nosso sistema social”.
“A defesa dos valores conservadores, ao que parece, não pode ser confiada aos conservadores.”
No século XX, o conservadorismo aliou-se incoerentemente ao livre mercado, incluindo o livre mercado de trabalho.
O que [hoje] se apresenta como “conservadorismo” aliou-se, em outras palavras, às mesmas forças que provocaram a “progressiva destruição dos átomos de nosso sistema social”.
A defesa dos valores conservadores, ao que parece, não pode ser confiada aos conservadores.
Se o conservadorismo implica em respeito aos limites, localismo, ética do trabalho em oposição à ética consumista, rejeição do crescimento econômico ilimitado e certo ceticismo em relação à ideologia do progresso, é mais provável que [estas bandeiras] encontrem um lar na tradição populista do que na tradição de livre mercado do conservadorismo dominante.
É sugestivo que a direita americana deva muito de seu sucesso recente à sua pretensão de permanecer na linhagem populista.
Porta-vozes da nova direita se apresentam, como os populistas de antigamente, como inimigos da riqueza e do privilégio, defensores do “homem comum que sai à rua”, nas palavras de George Wallace: o “homem da fábrica têxtil”, o “homem na siderúrgica”, o “barbeiro” e “esteticista”, o “policial em ação”, o “pequeno empresário”.
O ataque da direita à “nova classe” [dominante] invoca classificações sociais permeadas por conceitos da tradição populista, apelando às “classes produtoras” para se levantarem contra uma classe parasita de especialistas profissionais e relativistas morais.
Assim, William Rusher refere-se ao surgimento de uma “ elite ‘verbalista’”, composta por homens que não são “nem empresários, nem fabricantes, nem operários ou agricultores”, como o “grande fato central” da história americana recente.
Denuncia Rusher:
“Os produtores da América têm um interesse econômico comum em limitar o crescimento dessa nova e voraz classe não-produtora”.
A importância das “questões sociais” na ascensão da nova direita – como aborto, ação afirmativa, modais de transporte, educação, mídia, “permissividade” liberal – tem sido observada com frequência.
Essas questões dramatizam o conflito entre a cultura centrada na família da classe média baixa e a cultura “ilustrada” dos profissionais da classe média alta.
Sem dúvida, os ressentimentos raciais também contribuíram para a ascensão da nova direita, mas seria reducionista ver nada mais do que uma “reação branca” na rejeição do liberalismo, seria perder de vista os antagonismos entre as classe subjacentes à guerra civil cultural.
O que está sendo rejeitado não é simplesmente o identitarismo racial, mas é toda a “cultura do discurso crítico”, como Alvin Gouldner descreveu a perspectiva da nova classe – a impaciência com os limites impostos pelo passado, a crença de que o crescimento pessoal e intelectual exige um repúdio a nossos pais, a ânsia de questionar tudo, o hábito da zombaria e da irreverência.
Os valores pequeno-burgueses, como vimos, são diretamente opostos à ética “ilustrada” da liberação pessoal e da autodescoberta. Eles são o produto de experiências que são mais propensas a promover uma consciência dos limites que frustram a aspiração humana do que um senso de infinitas possibilidades.
Foram esses valores pequeno-burgueses que plasmaram a tradição populista no passado e que agora encontram expressão na política cultural da nova direita.
“O ideal de propriedade universal incorpora um conjunto de expectativas mais humilde do que o ideal de consumo universal e acesso universal a uma oferta crescente de bens.”
O populismo cultural de direita, porém, é um populismo amplamente despojado de seu conteúdo econômico e político e, portanto, não aborda a questão que deveria ocupar a imaginação dos conservadores:
Como preservar as vantagens morais da propriedade em um mundo de produção em grande escala e organizações gigantes?
Essa questão apresenta dificuldades tão formidáveis que as tentativas de lidar com ela podem facilmente levar à frustração e a uma sensação de futilidade. No entanto, é uma questão inescapável, e não apenas para os conservadores culturais.
A ideologia dominante no Ocidente, a ideologia do progresso, sempre se baseou na expectativa de que a abundância econômica acabaria dando a todos acesso ao lazer, à cultura, à sofisticação da vida – vantagens antes exclusivas dos ricos.
Luxo para todos: esse era o sonho de progresso em sua forma mais atraente. Mesmo que esta fosse uma meta moralmente desejável, ela não se revela mais, no entanto, uma meta viável, uma vez que os recursos necessários para sustentar a riqueza universal, até então imaginada como inesgotável, estão chegando ao seu limite.
Uma distribuição mais equitativa da riqueza, agora está claro, exige ao mesmo tempo uma redução drástica do padrão de vida das nações ricas e das classes privilegiadas.
Nessas condições, o velho ideal de competência — num pedaço de terra, numa pequena loja, numa vocação útil — revela-se uma aspiração mais razoável e mais digna do que o ideal de abundância.
Na tradição populista, a “competência” tem ricas beneficências morais; pois remete à subsistência conferida pela propriedade, mas também às habilidades necessárias para mantê-la.
O ideal de propriedade universal incorpora um conjunto de expectativas mais humilde do que o ideal de consumo universal e acesso universal a uma oferta crescente de bens.
Ao mesmo tempo, incorpora uma definição mais árdua e moralmente exigente da vida boa.
Como revivê-lo, sob condições sociais que o tornam mais desejável do que nunca, mas institucionalmente quase inconcebível, deveria ser o principal tema do debate político contemporâneo.
Nossos netos acharão difícil de entender – e muito mais de perdoar – a nossa relutância em suscitá-lo.
[1] No original, o autor aqui usa o termo “populists“, mas não se refere, contudo, àquela demagogia política maquiavélica, personalista e oportunista – que conquista e opera o poder através da engambelação das massas -, fenômeno que usualmente classificamos como “populismo”, mas sim ao movimento social e político brotado de fato dos legítimos anseios e valores populares e geralmente despertado por intelectuais outsiders que se tornam seus porta-vozes. Portanto, trata-se de uma representatividade popular mais endógena, fundada em princípios mais perenes e não necessariamente ligada às disputadas por poder político, algo mais próximo do recente “olavismo cultural” brasileiro do que do peronismo argentino, para citar dois exemplos que nos são familiares. (Nota do tradutor)
[2] O “sindicalismo” de que fala o autor não diz respeito à configuração de sindicatos atrelados a partidos de esquerda e até comunistas, como conhecemos no Brasil, mas a uma linha mais distributista, como a do Solidarność (Solidariedade) a federação sindical polaca que constituiu um partido político de centro-direita, inspirado na Doutrina Social da Igreja, e ajudou a afastar o domínio comunista soviético sobre a Polônia. (N.d.t.)
Christopher Lasch é Professor de História na Universidade de Rochester. Ele também é autor da obra The Culture of Narcissism and The Minimal Self.
First Things, todos os direitos reservados. Traduzido e publicado com permissão. Link para o texto original: Conservatism agains Itself