A invasão da Ucrânia pela Rússia, além de toda a indignação que um ato de agressão a uma nação livre e soberana possa representar, nos trouxe uma oportunidade de reflexão sobre quão primitiva pode ser a nossa natureza humana quando desconsidera os princípios e os valores que formaram nossa civilização cristã.
Se já nos causa indignação ver alguém tomar-nos a frente numa fila de supermercado, quanto maior não será essa indignação ao ver nossos prédios e praças serem bombardeados por tropas e tanques de um outro país que alega agir de forma preventiva na defesa de sua segurança. A invasão de domicílio é um ato que revolta não só pelo desrespeito à propriedade, mas sobretudo, pela invasão da intimidade que destrói vidas e projetos sem levar em conta a dignidade das pessoas.
Enquanto assistimos as colunas de carros de combate pelas ruas e o avanço das tropas pelas estradas, tudo parece apenas compor o quadro de uma análise especializada em política e estratégia, mas quando o primeiro tiro é dado e os alvos reais são atingidos, tudo muda, e tomamos consciência de uma dura realidade que candidamente pensávamos só existir em filmes destinados a nos distrair.
Um simples cãozinho abandonado ao lado de uma mala de viagem à beira de estrada é capaz de tirar-nos o sono ao nos fazer pensar no drama vivido por aquelas famílias impiedosamente desalojadas pela força bruta sem qualquer garantia de amparo ou destino. São cenas que nos fazem tomar consciência de uma dura realidade e a sair dos tabuleiros estratégicos ou mapas explicativos para nos situar na dor do que existe de mais humano em cada um de nós, o apreço pela vida e pela liberdade.
Nossos canais de comunicação, por uma questão de mínimo respeito às pessoas que sofrem, podem até evitar dar publicidade às cenas mais cruas do drama vivido, mas não há como ignorar a dor estampada nos olhos destas crianças que, em grupos, caminham para a orfandade. Podemos até tentar nos colocar no lugar destas pessoas que sofrem, mas no que isso irá ajudá-las em seu drama pessoal?
Nossa vivência pessoal nos ensina que o sofrimento tem algo de profundamente intransferível, de algo próprio que não pode ser compensado nem mesmo por toda a solidariedade do mundo. Esta percepção só faz aumentar a nossa dor ao contemplarmos o quão frágeis somos diante de nossos primitivos instintos de dominação.
Ainda que a dor seja algo inerente à nossa natureza humana, e possa ser considerada até como um bem na medida em que nos faz crescer, não temos o direito de criá-la e muito menos de impô-la aos outros. Se considerarmos que um dos aspectos mais cruéis da dor é o seu poder de absorver e monopolizar a nossa atenção, distraindo-nos daquilo que verdadeiramente importa, ao ser imposta ela acrescenta um outro sentimento ainda mais trágico que é o ódio e o desejo de vingança, tirando-nos não só o autodomínio como a possibilidade de qualquer proveito no processo de superação.
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Quanto mais absorvidos pela dor, mais alimentamos nosso amor-próprio e mais nos fechamos em nós mesmos aumentando a nossa frustração. É esta amargura de uma existência incompleta e sem sentido que nos leva a agredir ao outro, alimentando um ciclo sem fim de dores e sofrimentos. Todos os que tentam construir a sua felicidade através do bem-estar neste mundo acabam se tornando reféns de suas próprias criaturas. Por não se submeterem à verdade, acabam escravos da mentira.
A guerra não é apenas uma catástrofe humanitária, mas uma demonstração do que há de mais desumano em nós, evidenciando que de nada serve o progresso material do mundo quando falta o desenvolvimento moral das pessoas. Se há algo que podemos achar de bom numa guerra, é o fato dela evidenciar o processo decadente de uma civilização como consequência do abandono dos indispensáveis valores construídos por gerações ao longo de séculos.
Se não existimos sem o outro enquanto ser social, como podemos submeter a pessoa do próximo a este tipo de agressão? Não seria este abandono dos valores morais a causa raiz da deterioração de nossas relações humanas? Se for esta a nossa conclusão, podemos afirmar que a rejeição dos valores se constitui numa espécie de autoagressão que não só debilita a convivência humana como compromete o próprio desenvolvimento de cada pessoa naquilo que ela tem de mais essencial, o amor ao próximo e ao seu destino transcendente.
Se nos dói ver uma clínica infantil bombardeada, não nos deveria doer muito mais ver uma clínica legalizada e aparelhada para ceifar estas vidas de forma prematura? Se nos revolta assistir o bombardeio de um hospital, não deveríamos nos revoltar muito mais pela existência de clínicas especializadas em abortar seres inocentes, que sem voz são calados para sempre?
Ainda que, pelo direito internacional, uma guerra possa ser legal, moralmente ela jamais poderá ser aceita. Da mesma forma não podemos calar as nossas consciências diante do crime do aborto que, às sombras da legalidade, destrói vidas, não só as daqueles que são arrancados do seio materno, mas também daqueles que covardemente se omitem.
Como falamos de aborto poderíamos também falar de drogas, de corrupção, de má gestão dos recursos públicos, e de tantas outras misérias que adquiriram um grau de normalidade comumente aceita por nossa sociedade. Estes fatos, por serem consequência de atitudes, representam uma ação consciente passível de responsabilização que, mesmo justificada perante uma maioria, não pode passar ao largo de nossa responsabilidade. Ao erro devemos chamar erro, e diante dele não podemos nos omitir.
Se queremos acabar com a guerra, comecemos por reconhecer nossos erros e nossos verdadeiros inimigos, combatendo o mal com uma abundância de bem, comprometendo-nos com um legado de valores e princípios que possam iluminar e nortear o caminho de nossos filhos diante dos desafios que eles terão que enfrentar diante de um mundo cada dia mais tenso e conturbado.
Se desejamos defender nossa pátria, comecemos por defender nossas famílias e tradições; a nossa fé e os nossos valores morais; o nosso trabalho e o justo fruto da propriedade, da liberdade e do compromisso com a responsabilidade. Para isto não precisamos de manuais nem leis, nos basta a consciência bem formada e o exemplo esmerado de um esforço daqueles que nos precederam.
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Nossos filhos provavelmente nos verão cair, mas não se escandalizarão se presenciarem a nossa luta constante por melhorar, por não nos entregar. Se um pai ajoelhado fez despertar a vocação de um santo papa, como o afirma São João Paulo II (“Quando eu era criança aprendi a orar ao Espírito Santo. Aos 11 anos, estava muito triste porque tinha muitos problemas com a matemática. Até que meu pai me ensinou o ‘Veni Creator Spiritus’ em um livreto e me disse: ‘Recite isso e você verá que Ele o ajudará a entender’. Desde então, eu recito este hino todos os dias há mais de 40 anos e tenho visto o quanto o Espírito divino nos ajuda”), quanto bem não faremos aos nossos filhos se eles de nós aprenderem os inestimáveis costumes de orar a Deus nos momentos difíceis de nossa vida, de nos desculpar, sorrir e agradecer pelos pequenos serviços que nos prestam.
Para conforto de muitos, podemos afirmar que o mundo não está no fim, pelo simples fato de que ainda há muito por fazer, e porque homem algum tem o poder de determinar o dia em que a vida própria ou a deste mundo irá terminar. Se o tempo só a Deus pertence, é só a Ele que devemos responder. Enquanto isso, importa fazer a nossa parte, continuar a plantar e a cultivar os bens que Ele nos confiou.
Sejamos honestos, a primeira e mais fundamental guerra que precisamos enfrentar e vencer é a que se trava em nosso interior contra o nosso egoísmo e o nosso orgulho. Só quando for vencido ou pelo menos enfrentado o amor-próprio é que poderemos ver a Deus na pessoa do outro, e a partir desta visão também veremos a nós da mesma da forma como Deus nos vê, como seres amados por si mesmos que não disputam espaços, mas se complementam um no outro.
Deixemos o equivocado e perigoso discurso da “paz pela dissuasão”, baseado no temor que nos mantém em constante tensão, e voltemos às nossas origens de obediência ao Criador onde a paz proposta se fundamenta no amor ao próximo, no ato de dar a vida e não de tirá-la ao outro. Se queremos mais do que bem-estar material, se queremos ser felizes, temos que reconhecer o valor do outro em nós.