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Bonum est diffusivum sui

Política raiz 7: as falsas noções de bem comum

Há uma penca de noções equivocadas e distorções sobre o que é o bem comum e como a política deve favorecê-lo. Ao longo dos seis artigos anteriores, nós já pudemos, certamente, desbancar muitas delas. Contudo, achei por bem atacar diretamente, neste artigo específico, as falsas concepções do bem comum que ainda não foram (ou não foram tão bem) confrontadas nos textos anteriores, e esclarecer por que elas são falsas e tortuosas.

É de responsabilidade do Estado, mas não apenas dele

Em primeiro lugar, parece-me útil reiterar que o bem comum não é simplesmente uma condição ideal de sociedade que o governo deve assegurar para os cidadãos. Na verdade, trata-se de algo muito mais basilar do que isso e, além do mais, a esfera política não é a única responsável pelo bem comum. Josef Pieper comenta que, “em um sentido mais amplo, só o Estado aglutina, efetua e administra o ‘bonum commune’. Isso não significa, contudo, que a família, a comunidade, as associações livres e a Igreja não sejam igualmente importantes para a realização do bem comum”.

Assim sendo, cabe também à sociedade civil, organizada nos seus corpos sociais intermediários, o papel de servir ao bem comum. Ela pode fazê-lo, por exemplo, através de intervenções junto aos poderes constituídos, propostas de políticas públicas e projetos de lei, assim como por meio de iniciativas livres e locais em prol do bem comum. O zelo pelo bem comum é da responsabilidade de todos.

É como no futebol ou em qualquer esporte coletivo: a vitória da equipe não depende apenas do bom trabalho do técnico ou do preparador físico, mas é condicionada pelo esforço pessoal de cada jogador. Se cada um busca fazer com perfeição o que lhe cabe no time, todos ganham; o mesmo acontece na sociedade.

Nada tem a ver com comunismo ou coletivismo

Depois, há também aqueles que confundem a defesa do bem comum com o infame comunismo, ou com outras formas de prevalência de uma lógica coletivista sobre os direitos individuais. Isso é besteira. Defender o bem comum nada tem a ver com planificação impositiva da economia, nivelamento social, cerceamento de direitos civis, e muito menos com os campos de extermínio do Camboja ou o paredón cubano.

Na verdade, na perspectiva do bem comum não existe uma contraposição entre bens coletivos e bens individuais. O bem comum contempla simultaneamente a ambos. E isto porque os bens coletivos frequentemente coincidem com os bens individuais num nível macro. Quando não, há várias formas de conciliação entre eles, pois muito do que é realmente bom e salutar para um só homem também o será para todos os homens, uma vez que somos da mesma espécie e partilhamos de uma natureza comum.

Hoje nos deparamos, de um lado, com os liberais reclamando o primado para os bens individuais, a vontade individual e a liberdade individual e, do outro, com os socialistas reivindicando a prioridade absoluta para o coletivo. A dicotomia do direito individual versus direito coletivo é, na verdade, uma criação artificial meramente ideológica, uma falsa oposição que só serve aos projetos de poder que vendem modelos políticos parciais, mancos, e que tiram a sua força da ênfase nos eventuais casos de antagonismo entre eles.

Não é liberal-individualista

A ideia de bem comum que os clássicos tinham em mente possui raízes antropológicas bem mais profundas do que poderíamos imaginar. Ela se funda na natureza mais essencial do homem, e por isso compreende o bem de cada pessoa integrante da sociedade:

1) enquanto membro de um corpo social que tem precedência sobre ele e

2) enquanto membro dotado de direitos, de deveres e de uma dignidade que ele possui por si mesmo e que deve ser reconhecida e respeitada pelos demais.

Em outras palavras, trata-se de uma visão sociológica que contempla o cidadão tanto inserido na coletividade quanto destacado dela e considerado nas suas necessidades particulares. Deste modo, o bem comum permite conjugar a liberdade e os direitos individuais com o bem público e os deveres sociais que também competem a cada cidadão.

A liberdade é uma garantia social importante e precisa ser defendida, sobretudo nos nossos dias em que tantos poderes políticos e econômicos parecem querer sufocá-la, miná-la com dispositivos legais e interpretações jurídicas ilegítimos ou comprá-la a preço de banana. Não à toa, Thomas Jefferson afirmava que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

No entanto, também é certo que a liberdade não pode ser tratada como um valor absoluto. Acima dela estão a vida humana, a justiça, a integridade das famílias e o próprio bem comum. Uma escolha pelo mal e pela incivilidade não constitui um exercício da nossa liberdade humana (racional), mas um abuso desta liberdade. A reivindicação do movimento feminista radical pela “liberdade” de matar o próprio filho, por exemplo, é um sintoma de desumanização do discurso político e uma atrocidade.

Reconhecemos facilmente que há casos em que a justiça e o bem social exigem que a liberdade individual seja tolhida. Por isso aceitamos a restrição da liberdade dos criminosos condenados à prisão. A atuação de um traficante de drogas, por exemplo, atenta patentemente contra o bem comum. Da mesma forma, o morador que não respeita os seus vizinhos e joga lixo na propriedade alheia, ou liga o seu aparelho de som em um volume ensurdecedor, merece ser coibido e multado, assim como o manifestante que usa alguma bandeira de protesto para fazer ato obsceno em público, depredar bens alheios, cometer ultraje a culto ou pilhar lojas.

Louis Billot recordava que “a liberdade pertence à classe dos bens que são meios em vista de um fim”. Não sendo ela um fim em si mesma, pode levar tanto a fim bom e construtivo quanto a um fim execrável e destrutivo. Portanto, “a liberdade traz consigo uma terrível necessidade de barreiras que impeçam o seu portador de cair num precipício”, advertia o teólogo francês.

Assim como, no nível individual, os limites e renúncias são condições de possibilidade para a vida boa e feliz, o mesmo se dá na vida em comum: o bem da comunidade não é possível sem que seus membros estejam dispostos a fazer alguns sacrifícios. Também o filósofo Edmund Burke notava que a “a liberdade deve ser limitada a fim de ser possuída”. E ajuizava que ser livre sem ser sábio pode acabar fazendo da liberdade mais uma maldição do que uma bênção: “O que é a liberdade sem sabedoria e virtude? É o maior de todos os males possíveis, pois resulta apenas em estupidez, vício e loucura sem proteção ou freio”.

Também propriedade privada não é, à luz do bem comum, um direito com um fim em si mesmo, cabendo a ela cumprir uma função social que a justifique, como explicamos no terceiro artigo desta série. Alguns tipos de propriedade carregam, na sua própria razão de ser, uma função social ainda mais grave e premente, como é o caso dos meios de comunicação, que têm a missão de informar os cidadãos sobre tudo aquilo que é de interesse público. Carlos Lacerda o reconhecia com as seguintes palavras: “O conceito cristão da propriedade como uma obrigação social, como algo que importa em deveres e que abrange direitos somente na medida em que tais deveres são cumpridos, em nenhum outro campo é tão poderoso quanto no da imprensa. O jornal não é apenas um meio de informação que se faz para ter lucro. O direito de possuí-lo importa nas mais sérias obrigações que um homem ou um grupo pode assumir perante a coletividade”.

Não segrega o todo de suas partes

Se a sociedade pode ser entendida como um todo orgânico vivo – um corpo composto de várias partes –, então podemos dizer que o bem comum é a sua alma, e os indivíduos são seus membros. Ora, sem os membros que o compõem, não há corpo. E ninguém maltrata um membro sem fazer sofrer, de algum modo, também os outros órgãos do corpo. O corpo inteiro pena e a própria alma é afligida quando um membro sofre.

Logo, a parte não pode ser simplesmente desprezada em prol do todo, e este claramente não poderia sequer subsistir sem suas partes. Assim, o indivíduo e a coletividade não podem ser vistos como polos opostos ou concorrentes, mas como esferas conexas, condignas e codependentes. Daí a nossa insistência nos valores da solidariedade, da união entre os compatriotas, da harmonia e da coesão social.

Quem pensa o bem comum jamais pode pensar o todo sem as partes, nem considerar uma parte sem o todo. O bem individual depende do bem social, e vice-e-versa. Por isso um povo não pode ser desunido nos seus membros, por mais que as falsas divisões, os identitarismos, os conflitos artificiais e os interessados na fragmentação social nos pressionem para nos colocar uns contra os outros. Sobre isso, discursava um dos maiores líderes da história da América Latina, o ex-presidente equatoriano García Moreno:

“Um povo sem união é um corpo composto de membros separados, que não pode caminhar sem se desmantelar; um monte de areia movediça que se dissolve com o leve impulso da mão de um menino; um grupo de nuvens que desaparece ao menor choque de ventos contrários. A união faz de alguns indivíduos uma família, e de várias famílias, um povo. De muitos povos, faz uma nação, que é forte por não estar dividida, poderosa por ser forte e valente por ser poderosa. Privemo-la deste princípio de ação e de vida, e ela se converterá, no mesmo instante, em um agregado confuso de inimigos egoístas, em uma inútil série de unidades isoladas, sem a homogeneidade suficiente para formar um todo.”

Não se estriba nas convenções sociais e políticas

Há autores prestigiados que hoje propõem a ideia do bem comum como uma construção social artificial e instável que brota da conciliação entre os múltiplos valores, crenças e interesses que compõem a sociedade multicultural e democrática em que vivemos. Trata-se de uma concepção de bem comum que vai numa direção “progressista” – para não dizer demagógica e relativista – e que pretende adequar a noção do bem comum ao espírito das épocas, aos interesses de momento e seus modismos. Estes, porém, nem sempre refletem de fato o que é permanentemente justo e bom, e dificilmente espelham os autênticos valores e anseios da vasta maioria silenciosa da população, reproduzindo geralmente apenas os desejos dos seus major players – daqueles agentes econômicos, políticos e influenciadores culturais mais potentes.

A concepção do bem comum que subscrevemos, ao contrário, é estável e enraizada na realidade humana. Ela se identifica com aquela que os filósofos clássicos sustentavam, partindo de uma cosmovisão jusnaturalista e teleológica. Isto quer dizer que ela se apoia em duas coisas fundamentais:

1) O Direito Natural, que é simplesmente o substrato do certo e do errado nas relações humanas, o padrão de justiça que rege a nossa vida social, a norma que orienta a nossa consciência para a ação justa em relação aos outros.

2) Os fins gerais da vida humana que a filosofia clássica discerniu ao investigar a natureza do homem, tais como a aquisição da sabedoria mediante a contemplação da verdade e de uma felicidade estável, consoante com a nossa racionalidade ética.

De fato, o bem comum consiste naquilo que é bom para o comum dos homens, segundo a sua natureza essencial e os seus fins últimos. Não é, portanto, dos acordos convencionais nascidos das interações sociais e negociações entre os agentes políticos que emerge a norma do bem comum, mas sim da natureza mesma do homem.

É somente a partir de uma base radicada na constituição mesma das coisas que podemos extrair diretrizes estáveis e seguras para a ação política e a convivência social. Isto que não quer dizer que, nas circunstâncias concretas, a norma do bem comum não possa se expressar de formas diferentes em situações diferentes, desde que sempre a partir dos mesmos princípios axiais, como já vimos no segundo artigo dessa série.

Não se reduz a boas condições econômico-materiais

A economia, numa sociedade de bem comum, não pode ser uma força totalmente instintiva, ilimitada e desconectada das outras dimensões do corpo social que perfazem as vidas dos cidadãos. Não se trata, aqui, de defender um dirigismo econômico. É ponto pacífico para nós que a geração de riqueza e a difusão da prosperidade num país só são possíveis num cenário com pouca regulamentação e muita liberdade para empreender, contratar e comercializar. No entanto, é claro que a espontaneidade dos agentes econômicos não pode ser irrestrita a ponto de a sua sede por lucros poder atentar contra a salubridade da água ou do ar de uma comunidade inteira, por exemplo.

Os empreendimentos privados e poderes públicos que perseguem apenas o capital monetário ou político – seja em termos de lucros, de arrecadação de impostos ou de melhoras de indicadores quantitativos – facilmente acabam não sendo benéficos para a comunidade que deveriam servir. O mercado não é exatamente o reino das boas práticas morais, e muitas grandes companhias já provaram que não se pode confiar nelas de olhos fechados.

Para citar uma única empresa, uma multinacional farmacêutica sediada em Nova Iorque foi acusada em 2012 pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos por ter subornado órgãos reguladores e autoridades de saúde pública de quatro países do leste europeu a fim de facilitar a aprovação, registro e venda dos seus produtos naquelas nações. A mesma companhia já havia se envolvido em um escândalo na Nigéria em 2010 por tentar chantagear um procurador-geral que a acusava por testes de um medicamento em crianças com meningite que acabou causando danos de saúde a elas. No ano anterior, também foi multada nos EUA por ter promovido ilegalmente um hormônio do crescimento como tratamento anti-idade seguro para melhorar a aparência e a performance atlética.

Isso nos permite constatar que ordenar a liberdade econômica, conquanto seja desejável como fator de prosperidade para os povos, precisa ser balizada por um código de regras mínimas que assegurem, em vista do bem comum, o fair play nos negócios individuais e corporativos. Como assinala Thomas Storck, não podemos abrir mão de “ordenar as nossas relações econômicas para além da mera livre competição. Algum tipo de arcabouço legal é necessário para assegurar que o devido respeito seja dado aos bens humanos. Não se pode depender seja das forças cegas do mercado, seja de um esclarecido interesse próprio ou mesmo de uma retidão individual.”

Contudo, mesmo que se tenha como meta um cenário de grande e difundida prosperidade econômica condizente com moral e o direito das pessoas, é preciso ainda ressalvar que o bem comum não se reduz à abundância material e ao amplo acesso a bens e serviços de primeira qualidade. Uma política do bem comum não pode ser focada exclusivamente em aumentar o PIB, a renda per capita e o IDH de uma região. Estes são indicadores que, embora relevantes, com frequência se revelam muito limitados.

As pessoas não se realizam existencialmente só com a melhora do seu poder aquisitivo e de outras condições materiais favoráveis. Ninguém ignora que existam ricos infelizes, angustiados e desnorteados na vida, assim como pobres contentes e realizados, que encontraram sentido e alegria no seu trabalho, na sua família, na vida comunitária, no serviço aos outros.

Um dos mais importantes fatores concernentes ao bem comum e que praticamente independe das condições materiais é a cultura. Refiro-me aqui não só às criações artísticas, tradições e expressões culturais de um povo, mas à própria mentalidade hegemônica de cada geração, às crenças e filosofias circulantes que contribuem significativamente para piorar ou melhorar a saúde mental e a qualidade de vida dos cidadãos.

O filósofo Olavo de Carvalho chamava a atenção para os impactos que as tendências culturais e intelectuais exercem sobre a vida das pessoas, não sendo possível ao defensor do bem comum ignorá-las como coisa de pouca monta: “O hábito brasileiro de olhar as manifestações culturais como um adorno supérfluo impede de enxergar as tremendas consequências práticas que as ideias filosóficas, mesmo difundidas apenas num estreito círculo de intelectuais, podem desencadear sobre as vidas de milhões de pessoas que nunca ouviram falar delas ou que, se ouvissem, não as compreenderiam”.

A precarização das relações conjugais nos nossos dias, por exemplo, é emblemática neste sentido. O número de divórcios no Brasil tem batido recordes, os casamentos nunca foram tão raros e os níveis de satisfação e respeito mútuo nos relacionamentos estão em queda livre. O escritor e psiquiatra Theodore Dalrymple afirma que este quadro tem uma relação direta com as ideias de “liberação sexual” impulsionadas por intelectuais e revolucionários herdeiros do movimento contracultural de 1968:

Os intelectuais do século XX buscaram libertar todas as relações sexuais de quaisquer obrigações sociais, contratuais ou morais e de qualquer significado, de modo que dali em diante somente o puro desejo sexual contaria na tomada de decisão. […] Essas ideias foram adotadas, no entanto, literal e indiscriminadamente, pela mais baixa e mais vulnerável das classes sociais. Se alguém quiser ver como são as relações sexuais livres de obrigações sociais e contratuais, dê uma olhada no caos das vidas das pessoas que compõem a subclasse. Ali, toda a gama de tolices, perversidades e tormentos humanos pode ser examinada livremente – e em condições, recordemos, de prosperidade [material] sem precedentes. […] A ligação entre a lassidão e a miséria de meus pacientes é tão óbvia que negá-la requer uma considerável sofisticação intelectual (e desonestidade). O clima de relativismo moral, cultural e intelectual – um relativismo que começa como um modismo de intelectuais – foi comunicado de maneira exitosa para aqueles menos capazes de resistir aos seus devastadores efeitos práticos.

Não omite o Bem Maior do homem

Por fim, devemos reconhecer que o Bem Comum por excelência não é algo instrumental, não é um meio para se atingir um fim outro, mas se identifica com o Fim mesmo do homem. Assim, Chad C. Pecknold fala do equívoco dos filósofos personalistas como Jacques Maritain e Emanuel Mounier que, comprando acriticamente o discurso antropocêntrico iluminista, estabeleceram a “primazia da pessoa” como o padrão máximo para a busca do bem comum. De fato, a dignidade e os direitos da pessoa humana se ligam estreitamente ao bem comum, como já aludimos, mas não são o fundamento mesmo dele.

O bem comum, no seu significado mais pleno e profundo, evoca algo que é maior e mais substancial que a dignidade da pessoa humana, abarcando-a inclusive. Ele não tem um sentido antropocêntrico, não é centrado nos direitos particulares do indivíduo humano. Sim, o bem comum não se conforma às necessidades e ambições particulares das pessoas; são as pessoas que devem sair de si mesmas e agir no mundo solidariamente, isto é, de acordo com o bem comum e em prol dele. Nas palavras de Pecknold, “uma sociedade constituída por pessoas que amam seu bem privado acima do bem comum, ou identificam o bem comum com o bem privado, não é uma sociedade de homens livres, mas de tiranos que lideram uns aos outros pela força, e da qual a cabeça suprema não é ninguém menos que o mais astuto e forte entre os tiranos, sendo os demais meros tiranos frustrados”.

Se, por um lado, o sentido do bem comum não remete a um bem privado ou egoisticamente buscado, por outro também é claro que ele “não é algo alheio, mas conatural a nós como criaturas feitas para conhecer e amar”, diz Pecknold. Ao fim e ao cabo, o bem comum só pode se identificar, em última análise, com o maior Bem que o homem é capaz de obter.

Qual é o mais sublime Bem cuja busca encerra o derradeiro propósito da vida humana? São Tomás de Aquino aponta que há um Bem Comum que fulgura acima de todos os outros e que, embora invisível, não pode ser esquecido.  Explica ele que, “sendo a felicidade eterna o fim da vida bem vivida no presente, pertence à função do soberano, por essa razão, procurar o bem da vida da multidão, segundo convém à consecução da felicidade eterna, isto é, preceituando o que leva à bem-aventurança celeste e interdizendo o contrário”. Assim, também é função do político facultar aos homens os bens que os conduzem a Deus, a começar pelos direitos de cultuá-Lo, de transmitir a fé aos próprios filhos e de viver livremente de acordo com os Seus mandamentos.

Com efeito, mesmo quando tratamos do bem comum numa perspectiva puramente terrena, nós presumimos realidades que admitimos como sagradas, pressupomos bens que são verdadeiramente sagrados para o comum dos homens e que, por isso, merecem ser preservados, como a família, o direito ao trabalho, a comunidade, a pátria, etc. Por conseguinte, com muito mais razão reconhecemos aquele que é o mais sagrado de todos os bens humanos: a comunhão com o Criador.

Temos aí, então, uma visão política alicerçada numa antropologia integral, que não despreza a dimensão espiritual do homem, seu potencial para a perfeição e sua eminente vocação transcendental. Esta visão não chega a ser uma novidade cristã. Os maiores reis do antigo Israel já conjugavam os negócios de Estado com a devoção pública ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Também os romanos preceituavam que os bons cidadãos e os magistrados deveriam cultivar a gravitas (seriedade, maturidade), a justitia (justiça, equidade) e a pietas (piedade, devoção), que é uma virtude eminentemente espiritual. Russel Kirk ressalta que essas três virtudes também estavam presentes nos fundadores dos Estados Unidos da América e atribui a elas algo do sucesso do regime norte-americano.

Quando o homem se afasta da sua Origem e Fim supremo, ele se degenera supremamente. Mas se, ao contrário, ele se mantém unido à Fonte divina da sua existência, torna-se capaz de realizar grandes coisas, por si e pelos seus.

Todas as grandes civilizações nasceram e se desenvolveram sob as asas de alguma grande tradição religiosa, pontua o historiador Christopher Dawson. O próprio Ocidente e praticamente todas as suas mais beneméritas instituições – dos hospitais filantrópicos e instituições de caridade às universidades – seriam impensáveis sem a influência do cristianismo.

A secularização moderna, no entanto, expulsou Deus da vida pública, constrangendo o cidadão comum a um laicismo cada vez mais hostil e persecutório, voltado não apenas contra os que reivindicam uma nova era de teocracia, mas até contra todos os que não concordam com uma agenda política exclusivamente materialista, economicista e tecnocrática.

As esquerdas marxistas e a direita positivista acham que a técnica e os arremedos de soluções socioeconômicas darão conta, por si sós, de satisfazer os anseios existenciais dos povos e levá-los à realização como seres humanos, o que já se provou falho em incontáveis casos. Alguns dos países com maior IDH e costumes mais liberais do mundo também estão entre aqueles com os maiores índices de suicídios. É o caso, por exemplo, da Coréia do Sul, da Bélgica e da Groenlândia, onde há também mais abortos do que nascimentos de crianças. Isso demonstra o quanto o IDH é um índice parcial e falho em demonstrar o real contentamento de uma população perante a vida. A propósito, Rémi Brague notava que quem de fato ama a vida (e não apenas as sensações agradáveis que esta pode lhe proporcionar), sempre deseja, de algum modo, transmitir o dom da vida ou assegurar que este possa ser transmitido.

Alexander Soljenítsin, discursando em Harvard, alertava que, com a abolição dos valores cristãos na política, “os sistemas de Estado se tornaram ainda mais materialistas. Enfim, o Ocidente conquistou os direitos humanos, mesmo em excesso, mas o senso de responsabilidade do ser humano diante de Deus e da sociedade tornou-se cada vez mais fraco. Nas últimas décadas, o egoísmo legalista da cosmovisão ocidental atingiu o seu ápice e o mundo está em uma aguda crise espiritual e [numa fase de] transição política… Há um desastre que já está patente entre nós. Refiro-me à calamidade de uma consciência desespiritualizada e de um humanismo irreligioso: este critério fez do homem a medida de todas as coisas que existem na terra; aquele mesmo ser humano imperfeito que nunca está livre de ostentação, egoísmo, inveja, vaidade e uma dúzia de outras falhas.”

Como se vê, nada falsearia tanto o bem comum quanto reduzi-lo a qualquer um daqueles bens instrumentais ou modos de vida que desnaturalizam e desespiritualizam o homem em qualquer sentido. Afinal, os anseios e interesses humanos só são bons de fato e só estão em verdadeira harmonia com o bem comum na medida em que se ordenam expressamente àquele Bem eterno no qual nós nos movemos, vivemos e somos.

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