Se perguntarmos a um profissional mediano o que mais lhe atrai numa oportunidade de emprego, sendo sincero ele provavelmente irá responder que é a remuneração. Talvez acrescente que os benefícios sociais, a estabilidade e a possibilidade de ascensão também são importantes, mas que o decisivo mesmo é a remuneração.
Embora possa ser sincera a sua resposta e até legítima a sua aspiração, este profissional começa a perceber a necessidade de mudar seu entendimento em relação ao que mais importa no trabalho. Começa a perceber que depender do reconhecimento dos outros, além de ser uma forma de dependência, o faz vulnerável às circunstâncias do mercado e ao humor de quem o avalia.
A lógica do reconhecimento através da promoção ou da remuneração fez algum sentido numa época em que o emprego era regra no mercado do trabalho, especialmente por aqueles que se encontravam desprovidos de outro capital que o de sua própria mão-de-obra.
Desde a Revolução Industrial ocorrida no século XVIII, os termos trabalho, emprego e profissão passaram a ser por muitos entendidos como sinônimos, e poucos eram aqueles que aspiravam algo mais do que serem contemplados por um bom salário, estabilidade no emprego e alguma possibilidade de ascensão no emprego. Ter sucesso, em regra se limitava à inclusão no sistema.
Uma comprovação deste modo de pensar eram os bem-intencionados conselhos recebidos dos pais e mestres que preparavam seus filhos e alunos para competir com vantagens na disputa pelo melhor emprego. Não era incomum ouvir destas pessoas o prudente conselho de estudar para encontrar uma boa colocação. Neste conceito estava embutida a ideia de fazer parte de algo, de uma estrutura, como se fossemos peças de uma engrenagem.
Todo o sistema educacional, desde a família até a universidade, estava preparado e orientado para formar pessoas práticas, obedientes e responsáveis naquilo que lhes era oferecido e solicitado. Cumprir o horário, respeitar a hierarquia, entregar as tarefas conforme solicitado e não questionar o sistema, eram requisitos essenciais do bom e eficiente profissional.
Os gurus da administração moderna como Taylor, Fayol, Ford, Maslow, entre outros, ditavam as regras da eficiência e faziam escola através das ferramentas e sistemas mecanicistas onde o processo regia o trabalho através de metas e avaliações.
Eficiência significava repetir com fidelidade o que por outros havia sido pensado e decidido, sem questionar o como e muito menos o porquê do que se fazia. A organização e o método se constituíam nos legítimos paradigmas de ordem para o sucesso numa carreira profissional.
Sendo a eficiência a principal métrica de avaliação de um bom profissional, as lideranças eram naturalmente escolhidas pela entrega do resultado esperado, que somadas à disciplina normatizada pelo sistema e à fidelidade à pessoa do indicador, se constituíam nos principais atributos para a tão almejada promoção e ascensão profissional.
Este modelo de características mecanicistas que teve seu auge nos séculos XIX e XX, mostra-se hoje inadequado tanto diante das novas demandas sociais e econômicas, como das mais legítimas aspirações daqueles que, mais do que vender sua mão-de-obra operacional, querem realizar-se como pessoas e não só como profissionais. Por esses e por outros diversos motivos, o atual modelo exige ser repensado.
Uma demonstração clara desta insatisfação é o surgimento dos chamados movimentos “antitrabalho” como o r/antiwork, do agregador de conteúdo e rede social Reddit. Tal movimento relata que os anos de lockdown impostos por autoridades sanitárias como forma de combater a Covid-19, fez muitos trabalhadores repensarem suas atividades diante da insegurança financeira levando-os a deixar seus empregos atuais para procurar melhores condições de trabalho.
Conforme reportagem da BBC de 7 de fevereiro de 2022, o jornalista Brian O’Connor relata que algumas pessoas estão indo além da mudança de emprego ao se perguntarem se existe algum propósito para o seu trabalho, ou para o próprio sistema econômico.
Essas pessoas são parte do movimento “antitrabalho”, que busca romper com a ordem econômica que sustenta o ambiente de trabalho moderno. O antitrabalho baseia-se nas críticas econômicas anarquistas e socialistas e argumenta que a maior parte dos empregos de hoje em dia não é necessária; em vez disso, eles impõem a escravidão assalariada e impedem trabalhadores de receberem pelo total valor de sua produção. Mas isso não significa que o trabalho deva deixar de existir. Os apoiadores do movimento antitrabalho acreditam que as pessoas deveriam organizar-se e trabalhar apenas o necessário, em vez de trabalhar por longas horas para gerar excesso de bens ou capital.
Evidente que a solução deste novo desafio imposto pelo mercado de trabalho não pode passar pelo “antitrabalho”, e nem mesmo por atribuir culpa ao empregador, que sujeito ao mercado também se vê cada dia mais pressionado pelo surgimento de novas tecnologias, de uma concorrência mais acirrada, e por uma demanda que, por estar cada dia mais esclarecida, lhe exige uma melhoria constante na qualidade dos seus serviços.
Este movimento deve levar a própria administração pública a repensar suas políticas na avaliação do emprego. A geração de emprego não pode ser mais considerada como uma variável ou ação pública de caráter absoluto. Na medida em que se reconhece a legitima aspiração da pessoa quanto ao trabalho e da própria economia em relação ao que é produzido, também o Estado deve considerar o que é melhor para a sociedade.
É justo e necessário que as pessoas aspirem ao seu desenvolvimento humano e realizem um movimento de ascensão social na comunidade onde vivem. A mobilidade que em séculos passados era quase inexistente, hoje se faz muito mais acessível tanto para cima como para baixo, exigindo uma postura muito mais dinâmica em termos de compreensão tanto da realidade econômica e social como das competências pessoais.
O capital hoje é muito mais fluído, o que exige que as competências de trabalho estejam muito mais alinhadas com as novas demandas do mercado para o uso das novas tecnologias, e sobretudo, com o consciente desenvolvimento e aplicação dos talentos pessoais.
Sem dúvidas, estamos diante de uma das mais radicais transformações do mercado de trabalho, diante da qual não podemos agir de forma apenas reativa às novas expectativas e tendências existentes. O radicalidade do momento exige uma mudança também radical de mentalidade tanto da pessoa como das autoridades interessadas no desenvolvimento social.
E o maior erro que podemos agora cometer é tentar adequar os novos desafios com as velhas medidas do passado, fazer mais do mesmo empregando recursos escassos num sistema caduco que insiste em permanecer. Como bem disse Einstein, “Nós não podemos resolver um problema com o mesmo estado mental que o criou.”
A era dos executores de tarefas perdeu o seu lugar, e todos devemos nos perguntar se estamos preparados para isso. É um mar sem margens onde o que predomina são as ideias legítimas, as inspirações realizáveis, o serviço ao próximo. O alerta não é de hoje, Peter Drucker já no início dos anos 2000 nos chamava a atenção para essa mudança radical ao nos questionar com seu artigo: “Você está preparado?”, publicado pela Revista Você S.A.
Daqui a algumas centenas de anos, quando a história do nosso tempo estiver sendo escrita com a perspectiva de um distanciamento maior, muito provavelmente o mais importante evento que os historiadores verão não será a tecnologia, nem a Internet, nem o comércio eletrônico. Será a mudança sem precedentes ocorrida na condição humana. Pela primeira vez, literalmente pela primeira vez, um número substancial e crescente de pessoas tem a possibilidade de fazer escolhas. Pela primeira vez, as pessoas terão de administrar a si próprias. E é preciso que se diga uma coisa: elas estão totalmente despreparadas para isso. Em toda a história, praticamente ninguém teve a possibilidade de escolher. Acho que até cerca de 1900, mesmo nos países mais desenvolvidos, a maioria esmagadora das pessoas seguia o pai – se tivesse sorte. Havia somente mobilidade para baixo, nunca para cima. Se o seu pai fosse um camponês em qualquer lugar, você também o seria. Se ele fosse um artesão, você também seria um artesão.
O fato das maiores fortunas pessoais e empresas de sucesso de nosso século terem sido criadas num espaço muito curto de tempo, além de comprovar esta fluidez social e econômica, traz um outro componente de grande repercussão e que merece ser considerado: a sua capacidade de criar tendências e influenciar ideologias que, se desvinculadas do bem comum, podem trazer ainda mais instabilidade aos inaptos e inconscientes do processo de mudança.
Como bem disse Peter Drucker: “a principal mudança em curso não se dá pelas transformações tecnológicas, mas na condição humana, somos chamados a escolher, e não temos certeza de estarmos preparados para isto”.
Dispor-se a voos mais elevados
Se queremos de fato encontrar sentido para o trabalho em nossas vidas, temos que sair da superficialidade do fazer, e passar a agir conscientemente, aprender a ver e a viver nas profundezas, naquilo que há de mais humano no homem, na sua aspiração à excelência, ao bem elevado, ao digno e verdadeiro. Inspirados por Richard Back em seu clássico Fernão Capelo Gaivota, temos que deixar as areias da praia e o comportamento de bando para arriscar os mais elevados voos de que formos capazes.
O melhor de tudo é saber que esta possibilidade está acessível a todos, basta querer. O desafio, portanto, está em saber o que querer, em identificar o que realmente importa e não ter medo de ousar, de criar, de associar-se para alcançar o que nos é próprio.
Sim, associar-se, pois nunca como antes foi tão necessário andar em boas companhias, ter bons relacionamentos, construir verdadeiras amizades, ver o outro e ver-se no outro. A solidariedade não está em se compadecer do mais fraco para dar-lhe algo, mas em dar-se a si mesmo como quem caminha ao lado.
Nunca nos sentimos tão carentes de pessoas sonhadoras e idealistas que sejam verdadeiramente altruístas e capazes de liderar com base na proposta do bem. Talvez esta carência seja uma manifestação da nostalgia de Deus, do paraíso um dia experimentado e cuja memória nos recorda o que há de melhor em nós. A grande viagem está em voltar-nos para o nosso interior, reconhecer os nossos dons e talentos e aplicá-los através do trabalho na construção de um mundo melhor.
Temos uma grande oportunidade de inovar ao retomar aquilo que nunca deveríamos ter esquecido, a nossa dignidade de pessoas humanas. Se queremos inovar de verdade, comecemos por nós mesmos, pelas nossas atitudes e comportamentos, sejamos audazes e naveguemos mar adentro. Só quem lança as redes em mar profundo pode almejar pesca abundante.
REFERÊNCIAS:
BACH, Richard. Fernão Capelo Gaivota. São Paulo: Ed. Record, 1970.
DRUCKER, Peter. Você está preparado? Revista Você S. A. 26ª ed, 2000.
O’CONNOR Brian, ‘Antitrabalho’: o movimento que ganhou força na pandemia e se espalha por comunidades online, BBC Worklife, 7 de fevereiro de 2022.