Quem nunca leu ou ouviu por aí a expressão “Direitos Humanos para Humanos Direitos!”?
“Coisa de gente estúpida e fascista!”, dirá, sobre a frase, a professora do seu filho que estuda na federal. Contudo, talvez você mesmo já a tenha dito alguma vez ou ouvido de algum digno representante do típico cidadão brasileiro que costuma usá-la – aquele tiozão (ou tiazinha) “boa gente”, membro da classe média-baixa, trabalhador de meia idade, conservador cultural, religioso, solidário com os vizinhos e regular pagador de impostos. Não é fácil demover este cidadão de gritá-la quando fica indignado diante do abuso quase inesgotável de recursos jurídicos, proteções legais e benefícios de progressão de regime por políticos corruptos e criminosos comuns.
Mas, enfim, de onde vieram e a que se prestam os tais “Direitos Humanos”? Qual é a origem deste conceito que hoje é objeto de tanta controvérsia não só no Brasil, mas no mundo inteiro?
O conceito de “direitos humanos” consolidou-se como princípio político-jurídico fundamental e normativo principalmente após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas, em 1948, num contexto de esforço global para o estabelecimento de convenções preventivas contra novos regimes tirânicos e as atrocidades perpetradas na Segunda Guerra Mundial. Também há quem considere, como Michel Villey, que ele nasceu de uma ânsia do idealismo progressista – herdeiro do jusnaturalismo moderno de Hobbes, Grotius, Pufendorf, Locke, etc. – por frear os excessos do Direito positivista.
Já a historiadora Lynn Hunt, autora de A invenção dos Direitos Humanos [1], sugere que foi em grande parte a literatura de ficção que convenceu os políticos modernos sobre a necessidade de se instituir tais direitos. Ao narrar situações dramáticas não necessariamente experimentadas pelos leitores, os romancistas do século XVIII buscavam dirigir as emoções do público, sensibilizá-lo e cativar a sua solidariedade pelas causas em questão. Nessa ótica, o núcleo basal dos direitos humanos seria, portanto, simplesmente sentimental ou emocional.
“um dos pais do igualitarismo político, da democracia representativa e dos ‘direitos do homem’ não quis saber de cuidar sequer das crianças que ele próprio gerou”
Muito antes da Declaração da ONU, a Assembleia Nacional Constituinte Francesa, formada para reorganizar politicamente a França após a revolução de 1789, já havia lançado um documento de teor semelhante intitulado Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. E se a Declaração da ONU deixa de fora, por exemplo, o direito natural das crianças em gestação ao nascimento e à vida, a Declaração pós-revolucionária francesa deixava de fora, por sua vez, os negros e mulatos escravizados no Haiti, que era uma colônia francesa na época.
Os pais intelectuais daquela primeira Declaração, aliás, nem sempre eram de fato tão “humanistas” em relação ao emprego de mão de obra escrava. O livro The French Atlantic Triangle: Literature and Culture of the Slave Trade, de Christopher L. Miller [2], e também o artigo Escravidão à Francesa, escrito em 2008 por Alain Gresh para o Le Monde Diplomatique, falam sobre a timidez dos philosophes iluministas em relação ao escravagismo praticado pela França. Segundo eles, o tráfico negreiro para as colônias francas nas Américas prosperou sob o olhar seletivamente omisso e a pena tímida de Voltaire, Rousseau, Montesquieu, entre outros.
Se, por um lado, os incensados autores que projetaram os “direitos humanos” e o “igualitarismo democrático” bradavam ferozmente contra a exploração de mão de obra indígena pelos espanhóis nas Américas, por outro eles se omitiam em relação à escravização dos africanos por seu próprio país. Capitães franceses que não raro eram inclusive admiradores das obras dos iluministas levavam seres humanos oriundos da África às centenas nos porões dos navios para trabalharem em plantações de cana-de-açúcar no Caribe:
Se os escritores franceses denunciavam o extermínio dos índios pela Espanha, campeã do integrismo católico, eles eram muito discretos sobre os navios que se preparavam para partir de Bordeaux ou de Nantes. Carregados de ‘madeira de ébano’, as embarcações eram batizadas de O Voltaire ou O Contrato Social. O século das Luzes, que assistiu à insurreição da filosofia contra o monarquismo, o absolutismo e a Igreja, foi também o ápice da expansão desse comércio absurdo. A França enviou, no total, 1,1 milhão de escravos para as colônias – Guadalupe, Martinica, ilha Reunião, ilha Maurício, e, em especial, Santo Domingo – antes da proibição definitiva do tráfico, em 1831. A abolição seria instituída em territórios francês apenas em 1848. [3]
A propósito, o “campeão das luzes e da tolerância” Voltaire, além de um especialista em produzir mitos e falsificações grotescas contra os seus desafetos ideológicos [4], era o tipo de sujeito que se aproveitava das falhas nas regras da loteria para trapacear e, assim, fazer fortuna. [5] E será que podemos adivinhar em qual atividade rentável ele investia o dinheiro que ganhava com esse honestíssimo expediente? Isso mesmo, no tráfico de escravos africanos. O que o faz, certamente, um digno representante de toda a coerentíssima intelectualidade dita progressista e humanista. O philosophe ainda se gabava de estar lhes fazendo uma grande caridade, como mostra uma carta sua ao traficante Michoud:
Congratulo-me convosco pelo feliz êxito do navio – o Congo – chegado oportunamente à Costa d’África para livrar da morte tantos negros infelizes. Sei que vão embarcados em vossos navios e são tratados com muita doçura e humanidade, e por isto me felicito de ter feito um bom negócio praticando, ao mesmo tempo, uma bela ação. [6]
Não custa lembrar que outro paladino dos direitos humanos, Jean-Jacques Rousseau, escreveu sobre o cuidado e a educação das crianças, defendeu a inocência dos selvagens, pregou comoventes princípios humanitários, mas abandonou os seus próprios filhos à roda dos enjeitados. [7] Sim, um dos pais do igualitarismo político, da democracia representativa e dos “direitos do homem” não quis saber de cuidar sequer das crianças que ele próprio gerou, do sangue do seu sangue, relegando-as à custódia de orfanatos onde a mortalidade infantil não era nada baixa, dadas as condições da época.
Como não achar esclarecedor que a esquerda contemporânea e a parcela mais liberal da direita sejam, ambas, filhas ideológicas destes iluministas de altíssima envergadura moral? E como ficar surpreso com a sanha abortista de tais alas políticas sabendo disso? Parece não ser de hoje que líderes de esquerda e ultraliberais dão tanto valor às vidas das crianças quanto à sua modéstia pessoal.
É emblemático que a exploração de escravos africanos tenha atingido o seu auge justamente no dito “século das luzes”, sendo abolida nos territórios franceses além-mar apenas seis décadas após a eclosão da idolatrada Revolução Francesa. Lynn Hunt vê um “paradoxo” no fato de a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América declarar, em 1776, que “todos os homens são criados iguais”, enquanto alguns dos “pais fundadores” dos EUA, como Thomas Jefferson e George Washington, possuíam eles próprios escravos a seu serviço, e a escravidão tenha perdurado naquele país por mais 87 anos.
“[há] pessoas judicialmente perseguidas, multadas e até presas por exercerem a sua liberdade de expressão, algo que, para os liberais de primeira hora, consistia num direito humano fundamental”
No Brasil, a nossa monarquia liberal repleta de maçons esclarecidos e nobres ilustrados só foi aboli-la em 1888. E por obra de uma princesa mais interessada na justiça divina do que nos direitos do homem, sendo por isso chamada, pela imprensa progressista da época, de “carola” e “retrógrada”. Antes das tais “luzes”, diga-se de passagem, a situação podia ser humanamente bem mais digna para aqueles cidadãos destituídos de poder, riqueza ou relevo.
Na Idade Média, assaz depreciada pelos iluministas que inspiraram as repúblicas modernas, a escravidão havia sido extinta. Conforme aparecessem as recidivas, os soberanos da cristandade voltavam a condená-la explicitamente. Pelo ano de 873, o Papa João VIII classificou a escravidão como “grande pecado” numa carta a um príncipe da Sardenha, exortando-o a abolir tal prática. Em 1315, encontramos o rei Luís X proibindo a escravidão em todo reino franco. E no ano de 1537 as bulas Veritas Ipsa e Sublimis Deus do Papa Paulo III condenaram explicitamente a escravidão dos nativos das Américas e da África (“índios do Oeste e do Sul”) como obra induzida pelo “inimigo da raça humana”.
Mas não é mera ironia da História que reis cristãos medievais tenham condenado duramente a escravidão em nome da lei do Evangelho enquanto ilustrados arautos da razão secularizada e dos direitos humanos foram, no mínimo, coniventes com ela. Ocorre que o pensamento liberal moderno, inclusive na sua faceta mais jurídica e institucional, é claudicante, oco e instável em si mesmo. Por isso Lynn Hunt observa precisamente que:
os direitos não podem ser definidos de uma vez por todas porque a sua base emocional continua a se deslocar, em parte como reação às declarações de direitos. Os direitos permanecem sujeitos a discussão porque a nossa percepção de quem tem direitos e do que são esses direitos muda constantemente. A revolução dos direitos humanos é, por definição, contínua. [8]
Trata-se, portanto, de um conceito em si mesmo inconsistente, volátil e profundamente sujeito às variações ideológicas de cada época ou daqueles que detém, num dado momento, o poder de definir o que são os direitos humanos. O promotor de justiça Leonardo Giardin de Souza escreve no livro Bandidolatria e Democício: Ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil que, uma vez que a modernidade afastou a referencialidade do Direito de um padrão universal, natural e permanente de Justiça,
não há mais uma lei natural e princípios morais que, desde a escala da eternidade, nos orientem no tempo e no espaço, mas uma miríade de regras pragmáticas, criação humana, destinadas a assegurar o progresso da humanidade. Para tanto, devemos confiar no ‘ser humano’ (mais concretamente, em alguns poucos seres humanos iluminados), habilitado a ditar, inclusive, o que (ou quem) é humano e o que (ou quem) não é humano (ou seja, é desumano), a partir dessas regras.
Faz-se disso um instrumento de conquista de corações e mentes de cuja ideologia resulta a carnificina da Revolução Francesa, primeira expressão concreta de grande impacto de suas ideias ‘humanistas’. Se, para tanto, faz-se necessário cortar milhões de pescoços humanos, isso, para os intelectuais orgânicos, não contradiz o humanismo tão candidamente decantado nas doutrinas que advogam. Com efeito, um humanismo de índole jacobina é tudo, menos humanismo.
Como escapar de uma inescapável contradição em termos? Desumanizando os seres humanos inquinados retoricamente. […] Com essa retórica torpe, as revoluções vão, em nome do humanismo, empilhando cadáveres de seres, embora humanos a priori, desumanizados por uma espécie de anti-Criador, um eco do anticristo que ressoa nas doutrinas da modernidade e da pós-modernidade. [9]
É perfeitamente possível que algo que foi considerado, num passado próximo ou distante, como patente violação aos direitos humanos, seja hoje ou amanhã considerado como um direito humano incontestável. Ou vice-versa: que algo ontem reconhecido como um direito humano seja hoje taxado como um atentado aos direitos humanos.
Minto: isso não apenas é possível, como já é uma realidade; haja vista o caso de tantas pessoas judicialmente perseguidas, multadas e até presas por exercerem a sua liberdade de expressão, algo que, para os liberais de primeira hora, consistia num direito humano fundamental. Deixaremos, contudo, para expor num próximo artigo as raízes (grossas, porém invisíveis) dessas aparentes incompatibilidades entre o silenciamento de vozes antissistêmicas – censura política – e aquilo que, a princípio, nós achávamos que eram os direitos humanos.
O que você certamente já percebeu até aqui é que eles tem muito pouco a ver com resguardar o bem comum e proteger os pequenos e os mais fracos da sociedade. Esta cândida definição, veremos, é apenas o embrulho ornamental de uma imensa Caixa de Pandora.
NOTAS:
[1] HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[2] MILLER, Christopher L. The French Atlantic Triangle: Literature and Culture of the Slave Trade. Duke University Press, 2008.
[3] https://diplomatique.org.br/escravidao-a-francesa-2/ (Citado com adaptações de correção ortográfica)
[4] https://institutobemcomum.com/empulhacao-e-vileza-dos-iluministas-aos-popstars-de-hoje/
[5] https://www.bbc.com/portuguese/geral-42481081
[6] MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2004, p. 398.
[7] DAMROSCH, Leo. Jean-Jacques Rousseau: Restless Genius. Mariner Books, 2007.
[8] HUNT, Lynn. Op. cit. p. 270.
[9] PESSI, Diego. SOUZA, Leonardo Giardin de. Bandidolatria e Democídio: ensaios sobre o garantismo penal e a criminalidade no Brasil. 3ª ed. Porto Alegre: SV Editora, 2018, p. 331-332.