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(ECN) A felicidade e a utilidade v.2

A felicidade e a utilidade

Há um paradoxo que emergiu na ciência econômica há pouco tempo.  Ele consiste na constatação, baseada em evidências, de que o aumento da renda não está correlacionado diretamente com a felicidade. Esse paradoxo, porém, só é, de fato, um paradoxo, quando se pensa a economia como uma ciência isolada.

Recentemente, surgiu um ramo da economia que se chama Economia da Felicidade. Nela, os pesquisadores buscam distinguir variáveis que expliquem a autopercepção de felicidade nos indivíduos da sociedade. É a partir dessa linha de pesquisa que o paradoxo de Easterlin, introduzido acima, foi encontrado.

O paradoxo apresenta aos economistas a hipótese de que adquirir mais renda pode não trazer maior satisfação pessoal. É claro que, na vida cotidiana, essa afirmação faz parte do senso comum. Mas, para os economistas, de um modo geral, essa não é uma constatação tão fácil de aceitar.

Eles partem, via de regra, do princípio da utilidade. Isto significaria que quanto mais possuímos, mais satisfeitos ficamos. Na sua origem, na filosofia de Jeremy Bentham, a categoria da utilidade foi elaborada para servir como unidade de medida da satisfação, e a medição desta seria verdadeiramente operada por algum instrumento científico, assim como o de Newton é a unidade de medida de força mecânica.

Com o passar dos anos, os cientistas perceberam que essa utilidade quantitativa era melhor definida como uma posição relativa de preferências. Surge, aí, a utilidade como um modo de explicar como escolhemos determinados bens em detrimento de outros.

Uma das características dessa utilidade é sua marginalidade. O conceito de utilidade marginal, desenvolvido por economistas como Stanley Jevons, Karl Menger e Leon Walras, descreve a tendência de diminuição da satisfação que cada pessoa sente quando obtém uma unidade adicional de um bem da mesma espécie. Ou seja, a primeira aquisição de um bem determinado é mais satisfatória, em regra, que a seguinte.

Como exemplo, ao se consumir uma mesma cerveja algumas vezes em sequência, será perceptível que o primeiro gole é sempre mais agradável que o segundo, até o ponto em que beber cerveja parece fazer mal, tendo uma utilidade marginal negativa.

Tudo estava bem esquematizado na teoria econômica para afirmar que a utilidade pode ser a melhor forma de nós, humanos, explicarmos a satisfação pessoal independentemente do tipo de bem que consumimos. Seja religião, arte, comida, jogos, tudo provê utilidade ao homem e bastaria que todos buscassem a máxima utilidade com o menor custo e teríamos uma sociedade cada vez mais feliz.

É nesse sistema fechado que o paradoxo de Easterlin é levado a sério, pois a renda, como explicado anteriormente, é medida em dinheiro e, teoricamente, o dinheiro é capaz de comprar todos os bens.

Ora, nesse sistema, a única hipótese para que a renda não aumente a utilidade da pessoa é que as utilidades marginais de todos os bens sejam iguais. Como isso é estatisticamente improvável, os economistas abriram outro campo de pesquisa chamado Economia da Felicidade.

Neste artigo, proponho algo que vai além dessa nova linha de pesquisa econômica. É preciso constatar uma verdade: Felicidade não é utilidade; ela reflete a plena vivência da natureza humana.

Como demonstrou Aristóteles, a ética serve para instruir o homem no modo de bem agir. Quando ele age segundo sua natureza, ordenando os meios para a atualização de suas potências e aprimorando suas ações, ele caminha para a vida boa, e, como finalidade, a vida boa é aquela que alcança a contemplação da verdade.

Ideia muito diferente essa. Sair de um sistema “isento de valores” e caminhar para uma realidade em que a felicidade é condicionada à natureza humana não é fácil para os economistas. Muitos torcerão o nariz, mas proponho aqui uma explicação que eles entenderão.

A própria linha da Economia da Felicidade passou a perceber que a felicidade não está tão sujeita à regra da utilidade, como se propunha anteriormente. Aristóteles já dizia, no livro I da Política, que os bens são meros instrumentos para a realização dos fins próprios do ser humano. Se a finalidade das ações é sempre a própria satisfação, o ser humano está envolto em uma ilusão de que há uma sequência infinita e nunca alcançará o seu fim último, isto é, a felicidade.

Sendo assim, podemos começar com a distinção traçada por Tibor Scitovsky do modo como aproveitamos os bens. Alguns bens são de alta satisfação, mas perduram por pouco tempo. Esses são os bens de conforto. Outros são bens que são usufruídos de modo mais ou menos constante ao longo do tempo, chamados por ele de bens de criatividade.

Chamo atenção para uma diferença perceptível entre eles. Os bens de conforto são bens que estão mais ligados à satisfação sensorial enquanto os bens de criatividade estão mais ligados à atividade da personalidade humana, que envolve a inteligência e a vontade.

Luigino Bruni teve essa percepção ao explicar essa teoria, e nos revela que a percebeu ao dar o exemplo do consumo de dois tipos de música diferentes: a clássica e a pop. A música clássica demanda mais da percepção humana e é caracterizada sobretudo pela harmonia. Já a música pop é caracterizada pela melodia e, mais ainda, até, pelo ritmo. Há uma diferenciação entre as duas no efeito causado no ser humano. A primeira exige a quietude interior, da imaginação, para a clara percepção de sua harmonia. A segunda excita os sentidos e a imaginação por meio das mudanças de tons e a repetição das batidas.

Para Bruni, a música clássica é um exemplo de bem de criatividade, que causa no homem uma sensação duradoura e ordenante à felicidade. Já a música pop é tida por ele como um bem de conforto com um pico de satisfação, que, cessando sua atividade, deixa no ouvinte uma inquietude que reflete sua desordem no âmbito interior de quem a absorveu.

A análise da dinâmica econômica que envolve esses dois tipos de bens é muito interessante. Quando o mercado, refletindo as preferências dos indivíduos, valoriza igualmente música pop e música clássica, temos uma demanda semelhante pelas duas. Do lado da oferta, a música clássica exige maior capital humano e estrutura, ou seja, é menos escalável em sua produção. Desse modo, o custo e o preço da música clássica são de tal modo maiores que, tratando os dois bens como substitutos, a massa da população tende a trocar a música clássica pela música pop.

Tal exemplo pode ser generalizado pelo leitor quando ele perceber que muitos dos bens de criatividade exigem um esforço pessoal, não monetário, que torna a fruição do bem menos imediata. No fundo, estamos tratando aqui de duas opiniões excludentes, a visão materialista e a visão realista. O homem como animal ou como ser racional.

Toda discussão acima passa pela percepção comum de que os bens são em si diferentes e que podem ser mais ou menos bons para se alcançar a felicidade. A utilidade, como um elemento subjetivo, tem o seu papel. Mas ela não é a medida da felicidade humana. É preciso reconhecer que existem bens necessários à felicidade humana e que a própria teoria econômica pode estar afastando a sociedade desses mesmos bens.

Assim, podemos dizer que o paradoxo de Easterlin não é realmente um paradoxo, mas sim uma demonstração da incapacidade teórica da economia de explicar o ser humano, pois a Felicidade é objeto próprio da ética, e o objeto próprio da economia é a aquisição e utilização de riqueza enquanto instrumentos para a felicidade.

Filipe Mendes Dalboni é mestrando em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais e graduado pela Universidade Federal de Viçosa, com especialização latu sensu pela Faculdade Pio XII.

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