A civilização cristã é certamente um dos fenômenos mais extraordinários de toda a história da humanidade. Poucos discordariam acerca da existência de algo fora do comum por trás de uma religião que, iniciada com um pequeno grupo de pescadores em uma área periférica do vasto e poderoso Império Romano, chegou, em menos de três séculos, a influenciar decisivamente os rumos dele, sendo finalmente reconhecido como religião oficial em 380.
Após a divisão do Império entre Oriente e Ocidente, com mudança da capital para Constantinopla, e a queda da sua porção ocidental, sitiada pelos bárbaros, foi a Igreja católica quem sustentou a civilização. Foi a disciplina, a organização e a cultura dos monges de todos os tipos de ordem religiosa – agostinianos, beneditinos e, posteriormente, clunicenses e cistercienses – e de bispos que tornou possível, como governantes de abadias, prefeitos de cidades e, principalmente, conselheiros de reis e, posteriormente, de imperadores, a recuperação da porção ocidental da Cristandade durante a Idade Média.
Essa influência da religião cristã, caracterizada por uma constante busca pela integração da parte mais excelente do legado das civilizações pagãs, custodiado pela Igreja, acabou, ao longo de séculos, por moldar boa parte da existência humana, desde as artes até a política. No entanto, no limiar da modernidade, forças contrárias à Igreja emergiram e, com isso, todo o edifício da civilização começou a ser atacado, levando a Europa inteira para uma crise que se arrasta até os dias de hoje.
Como marco inicial desse processo de divisão da unidade tem-se o nominalismo na filosofia e a ruptura com o sentido próprio de política. O primeiro aspecto fez com que o homem se afastasse do conhecimento da essência das coisas e, como consequência, não tivesse condições de conhecer a verdade. Sendo assim, o que bastaria é conhecer a aparência da realidade. Já o segundo aspecto, em grande parte por consequência do primeiro, fez com que a política deixasse de ser baseada na busca pela virtude e no resguardo da Lei Natural e da Lei Divina, para ser um jogo de interesses, baseado nas vontades dos príncipes.
Mas, o leitor pode se perguntar: qual era a ordem política que sustentou a Europa em todo o Medievo? Para que possamos responder essa pergunta, coloco um momento histórico importante que ilustra bem a visão política daquele tempo. No ano 800, Carlos Magno, conhecido por ser o fundador da Europa, era coroado como Imperador do Ocidente, pelo Papa Leão III.
Este acontecimento, ocorrido justamente no dia de Natal, marcava um renascimento do Ocidente. O elemento da sagração do rei, presente na monarquia franca desde 495, quando Clóvis havia sido sagrado por Remígio, já era um elemento importante de legitimação do governante. Porém, com a restauração do Império, o poder espiritual da Igreja se erigia como o elemento unificador da política para toda a Europa, ao qual, em casos de instabilidade, os reis poderiam recorrer, como autoridade, em suas querelas.
A presença dessa autoridade na Europa cristã foi, possivelmente, o fator mais determinante no florescimento da Europa. Graças a ela, instituições como o sistema de ensino infantil, as universidades, os hospitais e o entendimento entre os povos (com a celebração da Paz de Deus e das Tréguas de Deus). Seus efeitos fizeram-se sentir também, ainda, noutros campos, como a arquitetura, as artes representativas e a música. Tudo fora penetrado pela cosmovisão cristã, tendo como fundamento a revelação integral da fé. O escritor Christopher Dawson diz que esse primeiro momento da civilização cristã foi o florescimento da Cristandade. Foi um tempo de grande beleza e no qual as pessoas estavam buscando a ordem para o Bem Comum.
A partir do século XIV, no entanto, a unidade cristã começa a ser dissolvida. O Cisma do Ocidente, levando a Igreja a ter dois papas, a Peste Negra e a decadência da filosofia tomista fizeram com que forças centrífugas à ordem cristã começassem a ganhar maior relevância. Isso ficou muito evidente com os acontecimentos dentro do Sacro Império Romano Germânico. Esse império, que sucedeu ao Carolíngio, após um breve interregno, fora construído como uma tentativa de retomar a grandeza do Império Romano, porém com a visão cristã. No entanto, as relações entre o Papa e os imperadores nem sempre foram muito boas.
O problema se agravou quando forças contrárias à Igreja começaram a buscar uma alternativa para seguir os seus rumos políticos sem que se afastassem do nome de cristão. Uma dessas forças era o nominalismo de Ockham, que influenciou fortemente o período tardio do medievo. Isto não se deu, é claro, por sua própria excelência: a prévia condenação de teses tomistas em Paris e Oxford e o posterior envolvimento de teólogos caudatários do hiperrealismo em filosofia contribuíram para tanto.
Um dos personagens mais influenciados pelo nominalismo de Ockham, graças à ascendência do nominalista Gabriel Biel na Universidade de Erfurt foi justamente o monge agostiniano Martinho Lutero, que questionava a salvação cristã defendida pela Igreja e alegava que a economia sacramental não era respaldada pelas Sagradas Escrituras. Uma consequência prática disso era de que a hierarquia da Igreja era descartável, uma vez que não era necessário alguém para ministrar os sacramentos.
Os príncipes do norte do Sacro Império Romano viram, na teologia de Lutero, uma forma de ganhar “autonomia”, em suas ações políticas e morais, em relação à Igreja. Por essa razão, o príncipe da Saxônia, Frederico III, passou a apoiar o movimento luterano. Em 1517, quando Lutero supostamente pregou as 95 teses na Catedral de Wittemberg e precipitou o rompimento da unidade, foi Frederico III quem lhe garantiu proteção, e quem fomentou a difusão de sua teologia. Isto levou a ruptura ainda maior da unidade cristã, que servira de base para a civilização por mais de um milênio. Nesse momento, Christopher Dawson disse que a Cristandade estava sendo rompida.
O problema da revolução religiosa inaugurada por Lutero foi tão grande que muitos protestantes, inclusive, veem muitos problemas nesse acontecimento. O filósofo Eric Voegelin, por exemplo, afirma que a revolução religiosa gerou uma grande confusão na Europa, fazendo com que as instabilidades políticas e sociais se intensificassem de maneira aguda. Na década de 1530, dentro da Europa Central, os príncipes alemães se dividiram em dois grupos: católicos e protestantes. Não levou muito tempo até que uma grande guerra acontecesse dentro do Sacro Império Romano Germânico. No final, uma paz foi assinada para poder garantir a estabilidade do território que, naquele momento, estava sendo destruído pelos conflitos.
A Paz de Augsburg de 1555 foi, ao mesmo tempo, o início do processo e a consequência de toda a instabilidade. Começo do processo, pois a política começa a ser laicizada, ou seja, não haverá mais uma autoridade que seja a garantidora da ordem e que possa trazer as bases da unidade política. Consequência, porque foi o resultado de todo o longo processo de luta contra a autoridade temporal da Igreja. Nessa conferência, o princípio estabelecido foi o “cuius regio, eius religio”,ou seja, a religião dos súditos será aquela religião do monarca.
Mais adiante, na segunda metade do século XVI, inclusive nos estados católicos, a visão de que a unidade política estabelecida pela Igreja não deveria ser continuada começa a ganhar corpo. Nesse contexto, surge a figura do Cardeal Richelieu. A visão que ele tinha da Europa, depois da revolução religiosa e das guerras de religião dentro do Sacro Império, era de que a família Habsburgo queria o domínio de todo o continente e estava se utilizando da fé católica para defender as suas pretensões. Calcado nesta visão, ele rompe com a ideia de Cristandade e passa a advogar a necessidade de sobrevivência da dinastia Bourbon na França: o mais importante, para ele, era a soberania francesa.
No início do século XVII, por conta de instabilidades políticas na Saxônia e no norte da Europa Central, começa uma nova fase de embates que, por conta das circunstâncias, desembocam no primeiro grande conflito sistêmico na Europa. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) deixou marcas profundas que são sentidas até hoje como, por exemplo, as causas da Primeira Guerra Mundial.
A posição da França de Luís XIV no confronto é emblemática. Seguindo a visão de Richelieu, ele declara guerra aos Habsburgos, afirmando que a França é superior à Cristandade. É a consolidação da “raison d’etat”: o realismo político maquiavélico havia finalmente triunfado sobre a unidade cristã. Ao final da guerra, o princípio “cuius regio, eius religio” é consagrado na Paz de Westfália, marcando o fim da unidade temporal cristã na Europa.
A partir da segunda metade do século XVII, o termo “cristandade” começa a se tornar, cada vez mais, uma peça de museu, e o que passa a importar são as unidades políticas nacionais. A consolidação do estado-nação como elemento fundamental de organização da ordem política europeia, em detrimento da cristandade, fez com que a Europa submergisse em uma instabilidade política, social, econômica e moral sem precedentes e, a cada século que avança, a situação torna-se mais complexa de ser resolvida. A ausência da Igreja como organizadora da ordem, nesse contexto, pode ser identificada como uma das grandes condicionantes de fundo do caos europeu nos séculos XVIII e XIX, simbolizada pela Guerra dos Sete Anos, a Guerra de Sucessão Austríaca e a Guerra de Sucessão Espanhola.
Esta série de rupturas na ordem política derivadas da fragmentação da unidade metafísica ocorrida na Idade Média desembocou, no século XX, em duas guerras mundiais, que ceifaram a vida de milhões de pessoas, além de alterarem profundamente as bases sobre as quais se consolidaram a civilização ocidental.
Uma tentativa de resgate dessa ordem foi realizada de forma parcial e algo enviesada no pós-guerra. Tentou-se, então, fazer florescer em uma série de organizações derivadas da conjuntura política e filosófica liberal, como a ONU e a União Europeia, os germes da antiga ordem cristã. Essa nova cepa, contudo, estava, como diríamos hoje, “geneticamente modificada”: misturada a uma espécie de humanismo, sob o epíteto dos valores, foi incapaz de gerar os frutos que dela se esperavam. Pelo contrário: o que vicejou a partir dela foi um novo liberalismo, que se apresenta com um feitio cada vez mais totalitário, ao lado do transhumanismo.
Diante da atual conjuntura, em que muitas pessoas pregam um “novo normal”[1] e um “Great Reset”[2], buscando arrematar seu projeto de uma nova ordem mundial, baseada em ideais francamente distópicos, torna-se cada vez mais importante compreender que de que maneira eles são um produto do processo de ruptura com os fundamentos da civilização ocidental, na medida em que são o resultado de um afastamento do progressivo do homem em relação ao bem comum. . Assim sendo, se tudo continuar rumando na mesma direção, o futuro, ao contrário do que pensam os chamados “especialistas”, nos reserva mais barbárie e confusão. .
É preciso, portanto, voltar às bases e reorientar as ações, atinando com o grande erro teológico e metafísico fundador da modernidade – algo que os filósofos “dos valores” foram incapazes de fazer – para que uma ordem minimamente sã da sociedade e da alma humana possam, finalmente, ser restauradas, de forma a permitir que a polis ou as nações contribuam para o pleno desenvolvimento da humanidade. Qualquer tentativa de uma resposta adequada para os problemas da modernidade tem de passar necessariamente por isto.
[1] Condição do mundo depois do Coronavirus, com as medidas restritivas e sanitárias, que fazem com que as pessoas precisem mudar as suas rotinas.
[2] O Great Reset é o termo utilizado dentro do Fórum Econômico Mundial para se referir a situação do mundo depois que a pandemia do Coronavirus ter sido debelada. Para maiores informações, acesse o site: https://www.weforum.org/focus/the-great-reset