(Continuação de: O Lago Espanhol, uma história esquecida)
Quem quer que tenha cursado o ensino regular, deve de ter saído dos cursos de história com a impressão de que os portugueses e seus irmãos espanhóis são uma espécie de bárbaros meio tontos, que por uma sorte inexplicável depararam-se com um continente inteiro e exploraram o que podiam até perderem seu protagonismo pela competência de povos superiores (há três décadas ou menos, teria usado a palavra raça, mas essa palavra anda bastante desprestigiada, embora o conceito subjacente seja mais ou menos o mesmo).
Isto é o que se aprende em linhas gerais nas escolas. O que não se aprende é que nesses lugares-comuns podemos já observar tópicos da chamada imperiofobia, conceito destacado pela historiadora Elvira Roca Barea em seu best-seller Imperiofobia y leyenda negra: Roma, Rusia, Estados Unidos y el Imperio español, que trata dos preconceitos contra os impérios em geral, e contra a Espanha em particular.
Dentre as características da imperiofobia levantadas pela historiadora, nota-se em nosso exemplo, pelo menos três: o império inconsciente, o desejo profundo de riqueza e poder e a inferioridade moral/racial. O primeiro é a construção de uma determinada narrativa, alterando os pesos dos eventos históricos, acrescentando alguns e suprimindo outros, de modo a mostrar que o império em questão não se estabeleceu pela competência pessoal e a qualidade das instituições deste povo, mas por um mero acaso da fortuna, que sorriu-lhe de repente, para desventura de outros. O segundo é o desejo insaciável de explorar riquezas e dominar inescrupulosamente outros povos. O terceiro, a baixa qualidade moral dos dominadores (na linguagem popular, é comum ouvir que a colonização do Brasil foi feita por ladrões e prostitutas).
Os exemplos desses tópicos sobre Espanha e outros impérios abundam no livro de Barea, para aqueles que gostariam de esclarecer melhor o conceito.
A sedimentação desses preconceitos contra os povos ibéricos, contudo, decorre não de determinado caráter de Portugal e Espanha, como fomos acostumados a acreditar, mas do sucesso da máquina de propaganda anti-ibérica holandesa durante as guerras de independência da Holanda, entre 1568 e 1648, também chamada de Guerra dos 80 anos.
Normalmente não nos damos conta, mas o Brasil esteve imbricado nestes eventos. Até de forma importante: foi próximo do período da União Ibérica (que durou de 1580 a 1640) que a famosa Batalha dos Guararapes (1648-1649), que alguns apontam como símbolo do nascimento da consciência nacional, foi travada contra os invasores holandeses.
Podemos, pela própria ordem dos acontecimentos, constatar o seguinte:
- O Brasil foi descoberto pouco antes que o protestantismo ganhasse força no norte da Europa e, portanto, começou a ser construído dentro de um contexto das chamadas “guerras de religião”. Os jesuítas tiveram um papel preponderante na educação da contra-reforma nos países católicos e, consequentemente, no Brasil.
- O Brasil foi, durante quase 100 anos, parte do Império Espanhol e esteve necessariamente implicado na guerra contra a Holanda.
- A expulsão dos holandeses de Pernambuco (Guararapes) se deu pouco após o fim da União Ibérica e durante um período de consolidação da Holanda como um país independente e de sua expansão comercial e marítima.
Não seria de admirar que a propaganda de guerra holandesa, que veremos com mais detalhe adiante, atingisse em alguma medida o Brasil, dado que, pela união política, pelo relacionamento com a Igreja Católica, pela semelhante (embora não idêntica) forma de expansão ultramarina e pelos projetos de civilização que portavam, Portugal e Espanha estavam neste período concorrendo (isto é, correndo lado a lado) pelos mesmos objetivos.
Objetivos estes que, por óbvio, chocavam-se com os das potências marítimas em busca de ascensão no período: Holanda e Inglaterra.
A Guerra dos 80 anos
É preciso contextualizar aqui o cenário geopolítico do período. Carlos V, rei do Sacro-Império Romano-Germânico, nascido e criado em Flandres, era o monarca de meia Europa, e legou a seu filho, Filipe II, um império gigantesco, que sob este chegou ao cume de sua expansão. Alguns mapas nos ajudam a ter ideia do tamanho desse reinado.
Este é um mapa dos domínios da Casa de Habsburgo na Europa logo após a abdicação do imperador Carlos V (1556):
Já o próximo, composto a partir de várias fontes, mostra um mapa-múndi da máxima expansão do império, sob Filipe II. Também é possível observar, pelas cores, as divisões administrativas que a coroa espanhola adotava em seu império, chamadas consejos. Em azul, o Conselho de Portugal:
Esta enorme zona de poder e influência acirrava as rivalidades europeias. No período, França, Inglaterra e Holanda foram os principais rivais do Império Espanhol.
A Holanda, enquanto nação independente, não existia até o século XVI, mas uma parte da oligarquia local, sobretudo aquela ligada ao protestantismo calvinista, desejava a independência do país.
Analisar a Guerra dos 80 anos, suas razões e todas as questões envolvidas não é o escopo deste breve ensaio. Toda forma de governo tem seus prós e contras, e os detalhes desta história são vastos (e muito mal contados). Contudo, é fundamental sabermos que: 1) Filipe II era filho de um flamenco, portanto, tinha total legitimidade sobre o território; 2) havia nobres locais fiéis ao rei de Espanha, que lutaram a seu favor na guerra.
O uso da imprensa (descoberta técnica relativamente recente) contra o poder imperial foi, portanto, massivo na Holanda para ganhar apoio e legitimidade interna durante a guerra.
Quem bem descreve esse uso da propaganda de guerra no período é o historiador americano Philip W. Powell, em seu livro “Tree of Hate”, no qual consta um capítulo somente sobre o período, chamado “Guerra de Papel”. As citações foram tiradas da tradução espanhola deste livro.
Assim discorre Powell sobre a necessidade que tinham os insurretos de angariar apoio interno para a Guerra dos 80 anos:
« O inimigo teve de ser pintado como o diabo, em prol dos irresolutos e duvidosos, que eram sempre a maioria da população que tinham de convencer. Muitos folhetos foram empregados neste pouco nobre mas necessário assunto ». (Powell citando P.A.M. Geurts, “De Nederlandse Opstand in de Pamfletten, 1566-1584 [Nijmegen-Utrecht, 1956])
Dentre os inúmeros panfletos que foram usados como propaganda de guerra, aquele que alcançou os mais amplos, profundos e duradouros efeitos foi a “Apologia de Orange” de 1580.
Nele constam:
- Ataques aos ministros do rei em vez do próprio soberano, justamente para evitar dissidências internas.
- Enormes exageros sobre os poderes e feitos da inquisição, embora a inquisição espanhola não tenha sequer se instalado na Holanda.
- Formação de uma opinião sobre a crueldade da Espanha tanto nas guerras locais, quanto em alusões e exageros a guerras contras os índios nas Américas.
- Ênfase em presumir que a Espanha pretendia dominar o mundo inteiro.
- Comparações entre Felipe II e seu pai Carlos V, enfatizando o quanto este era um bom monarca.
- Emprego propagandístico da Noite de São Bartolomeu, atribuindo a culpa por ela aos espanhóis
- Formação de uma corrente de opinião segundo a qual os governadores espanhóis da Holanda eram fantoches do Papa, matando assim dois coelhos com uma cajadada só: Espanha e Igreja Católica.
É de conhecimento comum que Guilherme de Orange foi um dos principais propulsionadores da independência holandesa. Sobre seu panfleto, Powell acrescenta:
Orange acusa Felipe II de incesto ao contrair matrimônio com sua sobrinha, assim como de assassinato de sua esposa Isabel de Valois, com o mesmo fim. Como se tudo isso ainda não bastasse, acusa seu rei de bigamia, insistindo que Felipe estava casado com Isabel de Osorio e que teve filhos com ela na época em que contraiu matrimônio com a Infanta de Portugal, e de adultério ao lhe atribuir relações ilícitas com outra mulher durante seu matrimônio com Isabel de Valois. A evidente mesquinharia e a inaplicabilidade de tudo isso desacredita seu autor, em que pese sua condição de príncipe rebelde, em difícil situação, sejam quais forem os ideais políticos que perseguia.
Powell também traz inúmeros panfletos que eram publicados contra o Império Espanhol. Entre eles, podemos mencionar um, datado de 1587 e reimpresso em 1608, intitulado “Considerações gerais que todos os amantes da Pátria devem ter em conta seriamente sobre o proposto Tratado de Paz com os Espanhóis”, sob esse gracioso nome, lemos o seguinte:
«Y si consideramos que el rey de España… no estaba asimismo ardiendo contra nosotros con el fiero deseo de la más cruel venganza que nunca pudo imaginarse: Podemos afirmar lo contrario, en base al conocimiento que tenemos de sus instintos naturales y del consejo que escucha, conocidos de todo el mundo… como el que la Inquisición lleva a cabo las más extremas crueldades, así como que ha mandado asesinar a su hijo, con el pretexto de una ligera desobediencia y a su esposa con el fin de facilitar sus inclinaciones hacia el adulterio… Si alguien llegase a pensar que estas son palabras vacías, leed lo que los propios españoles han escrito sobre sus actos contra los indios, confesando el que por pura codicia y para hacerse aborrecer, han asesinado a millones de personas que nunca provocaron su enojo ni les hicieron mal alguno y sobre los cuales no tenían derecho de dominio de clase alguna».
Em suma, uma propaganda de guerra repleta de exageros, distorções e meras difamações. O livro contém inúmeros outros exemplos como este, ou piores. Chamo a atenção ao detalhe de incluírem a Inquisição espanhola no panfleto, sendo que ela jamais foi instaurada no território holandês.
Tal propaganda foi batida e rebatida ao longo de gerações e teve reflexo para muito além do período de 80 anos em que se fixa a historiografia, dado que o interesse comercial dos holandeses nos domínios hispano-portugueses não se encerrou com a guerra.
Desta forma, conclui Powell sobre o período:
[…] tal propaganda, durante los siglos XVI y XVII, jugó importante papel en la formación de una hispanofobia general en el mundo occidental. Estos escritos se extendieron intencionadamente a través del continente, en un período crítico de la creación de opiniones europeas, y se entrelazaron con similares actitudes intelectuales y populares en Italia y Alemania, al tiempo que se coordinaron con las que Inglaterra aportó a su vez, y que constituyeron la fuente de nuestra herencia literaria, política y religiosa.
A história de como essa propaganda foi-se consolidando na versão oficial dos livros didáticos merece um texto à parte. Contudo, já temos elementos suficientes para entender que a história do Brasil colonial não corria tão isolada da história europeia e que há um forte indício de que sofremos, mesmo que tangencialmente, por conta dos ataques dirigidos ao Império Espanhol.