Passei há uns dias no Departamento de Filosofia da UFPR e fui impactado pela triste notícia do falecimento, em fins de janeiro, do Prof. Vinicius Berlendis de Figueiredo, meu orientador no mestrado em Filosofia Política entre 2018-2020, além de um amigo e propício incentivador da minha pesquisa.
A UFPR perdeu, nele, um baluarte da liberdade intelectual. Graças ao Prof. Vinicius tive a oportunidade de iniciar e concluir minha pesquisa sobre Leo Strauss, antes rejeitada na UFMG – e certamente não por razões técnicas, pois terminei depois em 1º lugar no processo seletivo da UFPR.
São raros os docentes universitários que admitem orientar quem se atreve a prestigiar um filósofo jusnaturalista com fama de (argh!) “conservador”. Muitos catedráticos mais sectários torcem o nariz só de ouvir falar.
Também foi graças ao Vinicius que ministramos juntos, em 2018, o curso de extensão Introdução ao Pensamento Conservador, levando ao espaço acadêmico autores raramente mencionados na sala de aula, como Edmund Burke, Russel Kirk, Theodore Dalrymple e Richard Weaver. A própria ideia do curso partiu dele.
Mas isso significa que o Prof. Vinicius tinha, então, certo pendor para uma matriz filosófica conservadora? Longe disso! Era um homem de mentalidade iluminista e notadamente de esquerda.
Célebre especialista em Kant, Vinicius foi orientado na USP pelo famoso catedrático marxista José Arthur Gianotti, que fundou nos anos 1950 o influente grupo Seminário Marx com Fernando Henrique Cardoso (sim, o ex-presidente da república), Octavio Ianni e Fernando Novais. Este grupo praticamente moldou toda a ideologia das Ciências Humanas no Brasil.
Gianotti também foi fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), criado em 1969 para fazer oposição intelectual ao regime militar e desenvolver pesquisas sociais politicamente úteis à propaganda socialista.
Na verdade, Vinicius estava entre os filhos intelectuais e “apóstolos” de Gianotti, por assim dizer. Sua carreira acadêmica cumpriu um projeto uspiano de formar especialistas para espalhar as ideias dos teóricos modernos e iluministas pelo Brasil.
A filosofia moderna e, sobretudo, iluminista, vale dizer, forneceu a base anticlássica e antiescolástica sobre a qual o marxismo foi erigido. Por isso, Gianotti sabia que, antes de pregar a luta de classes ou a ditadura do proletariado, era importante expurgar, com os primeiros pensadores modernos, a visão teleológica e jusnaturalista legada pelos antigos e medievais. Daí a relevância, para o ideário moderno, tanto socialista quanto liberal, de autores como Maquiavel, Hobbes e dos iluministas que são propedêuticos a Marx.
Deste modo, Vinicius tinha a missão de disseminar especialmente as ideias de Kant, enquanto sua ex-esposa, a Profa. Maria Isabel Limongi, saiu da mesma escola com a tarefa de divulgar o pensamento de Hobbes. Ambos escreveram livros, orientaram pesquisas e ministraram inúmeros cursos nesses pensadores. Outros acadêmicos formados pela escola uspiana tornaram-se “evangelistas” de Rousseau, Diderot, Voltaire, etc.
Assim, a carreira do Prof. Vinícius se inseria no vasto projeto doutrinador de Giannotti. Mas ele foi muito mais do que um pregador do kantismo. Vinicius foi um mestre com espírito aberto ao contraditório, disposto a conhecer ideias e autores desfavorecidos pela academia, a dialogar com os não-progressistas e a apoiar quem quisesse pesquisar autores posicionados mais à direita.
Não fui seu único orientando a pesquisar um filósofo com a pecha de “conservador”. Estudantes de Herder, Oakshott e outros também foram orientados por ele. No começo da pesquisa, teve até a humildade de me dizer que ele pouco conhecia de Strauss e que sua orientação seria mais metodológica do que conteudística. E tudo deu certo.
Sempre acompanhou com interesse cada capítulo que eu lhe entregava e nunca tolheu nem cortou nada, com exceção de uma nota de rodapé, talvez demasiadamente crítica, que escancarava a hipocrisia de Rousseau, o philosophe que quis ensinar sobre a educação das crianças quando ele próprio deixou todos os filhos que teve na roda dos enjeitados.
Vinicius e eu tivemos conversas amistosas sobre a liberdade de pensamento na universidade. Ele tinha inclusive um projeto para publicar um livro de antologia com excertos dos principais filósofos conservadores que já estivessem em domínio público. Eu e outros orientandos fomos chamados a colaborar, mas por alguma razão o projeto, infelizmente, nunca foi adiante.
No auge dos meus esforços para “parir” a dissertação, ele confiou-me a chave do seu gabinete para que eu trabalhasse ali quando precisasse. E acho que foi numa ocasião dessas que conheci seus filhos com a Profa. Limongi: Laura e Chico, jovens muito educados e que eu gostaria de ter abraçado e confortado no velório do professor, se a notícia não tivesse chegado a mim tanto tempo depois.
No dia da minha defesa, o mestre me disse duas coisas que me comoveram profundamente e me deram grande ânimo de seguir estudando e ensinando: que ele havia “aprendido muito comigo”, passando a pensar de forma diferente sobre certas coisas a partir da leitura do meu trabalho, e que a universidade “precisava da minha contribuição”, razão pela qual eu deveria considerar seguir a carreira acadêmica. Foi uma feliz e grande surpresa.
O leitor há de concordar: o fato de um pós-doutor em Kant, formado por marxistas da USP e progressista de longa data assumir que aprendeu algo com um reles mestrando “conservador” e que a contribuição deste seria importante para a universidade… é algo bem inusitado! É sinal de não pouca humildade, sapiência e honestidade intelectual, pois só os verdadeiros sábios são capazes de aprender com alguém de grau tão inferior e que pensa diferentemente deles.
Há ainda um longo caminho a percorrer para que o pensamento dito “conservador” (acho o termo impróprio, mas não vou discuti-lo agora) tenha direito de cidadania nas universidades do Brasil e seja normalmente aceito em todas elas, em vez de banido e hostilizado. Porém, o Professor Vinicius certamente deu sua contribuição para que o mundo acadêmico fosse mais do que apenas um aparelho de doutrinação massiva a serviço dos partidos comunistas e socialistas.
Um dos meus maiores arrependimentos (e ensejo das lágrimas que não pude conter ao receber o baque da notícia) foi o de não o ter ajudado a se aproximar, em vida, do seu Criador. Agnóstico, e sabendo-me cristão devoto, ele me confessou certa vez que esperava que o “lá de cima”, se existisse, aliviasse a sua “barra” no dia do juízo por ter me orientado e ajudado no meu trabalho. Tomei a fala como gracejo e apenas ri.
Mas depois pareceu-me que ele falava de uma verdadeira esperança íntima: a de que Deus levasse em conta mais o bem que ele havia feito do que o bem (o exercício da religião, sobretudo) que ele havia deixado de fazer. Um anseio profundamente humano.
Lamentei não ter tido ocasião ou tempo (ou coragem) para conversar mais com ele sobre isso e, talvez, abrir o seu espírito ao afável influxo da Graça. Espero, contudo, que a sua esperança de fato não tenha sido vã, e que a Divina Misericórdia o tenha acolhido feliz, no Reino dos que amam o próximo e amam a verdade.
Descanse em paz, mestre!