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(HIST) Lenda Negra - das disputas religiosas ao verbete enciclopédico

Lenda Negra: das disputas religiosas ao verbete enciclopédico

(Continuação de: Guerra dos 80 anos, o Brasil em meio à Lenda Negra espanhola)

Vimos anteriormente que a Guerra de Independência da Holanda gerou intensa propaganda de guerra contra o Império Espanhol e contra a Igreja Católica que, por ele, era deliberadamente defendida.

Na guerra, como se diz, a primeira a morrer é a verdade. Mas encerrada a guerra, as calúnias e os exageros que foram então levantados contra a Espanha não deveriam ter gradualmente desaparecido com o passar dos séculos? Os aportes civilizacionais trazidos pela Espanha ao mundo não deveriam receber destaque e ser motivo de amplo estudo, sobretudo nos países de cultura próxima? Ninguém tem presente em mente hoje em dia a propaganda feita pelos cartaginenses contra os romanos durante as Guerras Púnicas, e vice-versa. E também não há quem não valorize o Direito Romano como um aporte civilizacional.

Porém, é comum vermos Espanha (Portugal a reboque) como um país “atrasado” e de pouca cultura em relação ao restante da Europa e temermos ainda a perseguição da Inquisição espanhola, embora ela tenha sido muito mais branda que as perseguições políticas da Revolução Francesa, por exemplo.

Como esses tópicos puderam ainda estar vigentes depois de tanto tempo?

Seguindo a esteira do excelente Imperiofobia y Leyenda Negra, de Elvira R. Barea, descobrimos o papel do Iluminismo para a aquisição de “verdade universal” para a Lenda Negra.

No século XVIII, a versão francesa da “hispanofobia” vai se consolidar no continente europeu e perder sua matriz estritamente anticatólica, e ganhar um contorno de antibarbárie. Essa versão se encontra no huguenote Pierre Bayle (1647-1706), um dos pioneiros no tema; na Carta 78 das Cartas persas e em Do espírito das leis de Montesquieu; em Voltaire; em Guillaume-Thomas Raynal; e na própria Encyclopédie, nos artigos escritos por Louis de Jaucourt, e em uma série de outras obras do período. 

O iluminismo consolidou na França, e logo em todo o Ocidente, uma nova classe falante com poder de decidir o que era certo ou errado, justo ou injusto; suplantando gradativamente o poder que antes era de exclusividade da Igreja. Essa nova élite intelectual não se envergonhava de usar qualquer expediente, inclusive a mentira e a difamação, para a conquista de seus objetivos sociais e políticos.

É desta forma que a descreve o historiador da Revolução Francesa Augustin Cochin[1]:

Antes do Terror sangrento de 1793, já havia, de 1705 a 1780, na “república das letras”, um terror seco, do qual a Enciclopédia foi o Comitê de Salvação Pública, e D’Alambert o Robespierre. Ela ceifa reputações como a outra ceifa cabeças; sua guilhotina é a difamação.”

Se pessoas concretas podiam ser difamadas pelos iluministas, porque não países ou povos inteiros? Embora, como aponta Barea, a lista de autores envolvidos nessa operação de rebaixamento da Espanha seja maior, a celebridade destes que foram citados já denota que a Lenda Negra não era algo marginal durante o Iluminismo.

Para Raynal, por exemplo, a Espanha “continua estúpida, em uma profunda ignorância”, ou como parafraseia Barea “a vida intelectual espanhola morreu por causa da Inquisição” e é preciso importar trabalhadores eficazes porque o celtibero não serve para produzir boa manufatura.

Com discursos como este, o Império Espanhol (que poderia ser considerado como o máximo expoente da ordem vigente de então) foi gradativamente perdendo o status de representante da “prostituta romana” para ser o representante do “atraso”, da “intolerância” e da “ignorância”. Afinal, os novos philosophes não aceitavam outro culto senão à “Deusa Razão”.

É assim, pois, que Masson de Morvilliers descreve a Espanha na Encyclopédie Méthodique[2], edição da enciclopédia que visava ser superior a edição de D’Alambert:

Hoje lembra aquelas colônias fracas e infelizes que precisam constantemente do braço protetor da metrópole [leia-se: França]: devemos ajudá-la com nossas artes, com nossas descobertas; assemelha-se até àqueles doentes desesperados que, sem saber da sua doença, rejeitam o braço que lhes dá vida. No entanto, se é preciso uma crise política para tirá-la dessa letargia vergonhosa, o que ela ainda está esperando? As artes estão nela adormecidas; a ciência, o comércio! Ela precisa de nossos artistas em seus artesanatos! Os sábios são forçados a se educar escondendo nossos livros! A Espanha carece de matemáticos, físicos, astrônomos, naturalistas”.

A que Morvilliers reputa todo esse atraso? À Inquisição espanhola. Curiosamente, os iluministas se esquecem de citar que esta também vigorava em território francês e praticamente seguiu a espanhola até sua extinção.

Note também que Morvilliers estava escrevendo sobre um Império transcontinental que chegava até as Filipinas, passando pela América Espanhola, enquanto a França perdia década após década seus territórios americanos. Barea verifica que a essas ofensas Espanha regia mal, normalmente polemizando internamente essas acusações, mas sem encontrar forma de responder à altura.

Esta mesma ideia de atraso será retomada mais tarde, no século XIX, quando o nacionalismo emergente começa a despontar e a versão “oficial” da história (aquela que recebemos hoje) começa a ser escrita, sobretudo por Inglaterra, França e Alemanha, cada país, é claro, tentando puxar a brasa para a sua sardinha. Afinal, com a perda da unidade intelectual, moral e histórica dada pela Igreja, cada país viu-se necessitado de justificar sua existência, ou sua superioridade, a partir de outras bases. E os tópicos da Lenda Negra serviram perfeitamente aos propósitos das três principais nações imperiais do período.

Isso fica bastante claro na Alemanha. O alemão Leopold von Ranke é um dos principais nomes da historiografia, considerado o fundador da ciência histórica, aquela baseada em documentos – o que é bastante razoável. Contudo, o ponto fraco de seu método é que ninguém pode ter conhecimento de todos os documentos existentes, mesmo estes estão sujeitos a uma seleção prévia.

Ranke defende que o motivo do atraso alemão até o século XIX foi devido à divisão interna gerada pelo luteranismo. Mas a culpa seria dos católicos que não se converteram à nova religião e mantiveram o “atraso” no país, anuindo, portanto, a visão iluminista que vigorava à época.

Os documentos usados por Ranke para tratar da história da Espanha são aqueles que encontrou conservados na República de Veneza. Segundo Barea, embora pareça um lugar neutro, Veneza, durante seu apogeu, era um dos maiores difusores da Lenda Negra, sobretudo por seus embaixadores “Contarini, Tiepolo, Soranzo, etc., tão usados por Ranke – [que] fizeram tudo o que estava ao seu alcance para difundir a hispanofobia, às vezes encorajando mentiras que iam além de toda a lógica, como a de que os espanhóis eram aliados dos turcos.”

Barea também ressalta a historiografia triunfalista da Inglaterra Vitoriana (conhecida hoje em dia como “Whig history”), feita por Macaulay, Stubbs, Burke, Freeman ou Froude. Obviamente uma versão que omitia os problemas internos do império inglês, que se traduziam em leis persecutórias, fomes, guerras civis e revoltas, perda de territórios etc., uma caixa de Pandora que pouca gente tenta abrir para espiar, mas que mereceria atenção maior para termos uma imagem mais realista dos pesos e medidas de cada nação em relação à história.

Termino, portanto, justamente com uma crítica sobre isso, a que Barea chama de “lei do silêncio”. Lei cuja abolição parece ter sido justamente o intuito da autora ao escrever Imperiofobia e Leyenda Negra:

[A lei do silêncio] consiste em fazer invisível todo feito cultural, científico ou social que se produz no mundo católico ao mesmo tempo que se ressaltam e se destacam continuamente aqueles produzidos no mundo protestante, de tal forma que os primeiros parecem um feito excepcional e os segundos, uma constante. Essa operação de apagar e sublinhar é acompanhada de sua versão contrária: todo problema ou dificuldade sucedidos no mundo católico são repetidos até a exaustão, de tal modo que parece que as sociedades católicas sempre funcionam mal. Ao mesmo tempo que os problemas e feitos pouco edificantes que acontecem no mundo protestante são apresentados como exceção em uma trajetória perfeita, e são esquecidos rapidamente. Por isso, por exemplo, todo mundo sabe da intransigência católica, porém desconhece as leis discriminatórias contra os católicos que existiram nos territórios protestantes até o século XIX adentro, as quais foram quase sempre mais agressivas, intransigentes e humilhantes que as católicas.

Reestabelecer, portanto, a verdade histórica é fundamental se quisermos conhecer quais contribuições as nações ibéricas nos legaram, e quais o Brasil, herdeiro delas, ainda pode dar ao mundo.

Rafael Salvi é tradutor e jornalista.


[1] COCHIN, Augustin, As Sociedades de Pensamento (1921), apud GORDON, Flavio, Técnicas de Hegemonia: o ativismo da esquerda cultural.

[2] Apud BAREA, Elvira Rocca, Imperiofobia y leyenda negra (2021).

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