Redes Sociais:      

Bonum est diffusivum sui

Ecos do Movimento de Oxford: arquitetura, pintura, música e historiografia

(Continuação de: Movimento de Oxford: o reaparecimento da Sapiência)

Por que existem tantas igrejas e prédios públicos do século XX que imitam o estilo gótico medieval?

Você já ouviu falar na sociedade de artistas antimodernos conhecida como Irmandade Pré-Rafaelita?

E quem foi o historiador inglês que identificou, com incrível precisão, as doenças ideológicas típicas do nosso tempo?

Depois de um hiato mais longo do que eu gostaria após o último artigo, volto à carga para responder essas questões e dar sequência a esta série sobre o movimento espiritual que floresceu no meio universitário inglês da era pré-vitoriana e deu impressionantes frutos de cultura para o mundo.

Arquitetura

Fachadas ornamentais típicas da arte sacra e cavaleiresca medieval e formas arquitetônicas mais elaboradas e decorativas, com direito a vitrais e arcobotantes, voltaram a aparecer nas fachadas das edificações de fins do século XIX e início do século XX. Mas, por qual razão?

Bem, porque o revival teológico dos Tracts for the Times extravasou os textos e se fez pedra. Na esteira de toda a discussão teológica, o tractarianismo voltou a imprimir nos prédios governamentais e templos religiosos a beleza do gótico. Afinal, se a tradição doutrinal e litúrgica do passado merecia ser reconsiderada, por que não a sua tradição arquitetônica?

Projetadas por arquitetos simpáticos ao anglo-catolicismo da High Church ou pelos tractarians mais audazes que se converteram de vez à fé católica, as construções que foram sendo erigidas a partir de então pareciam ressuscitar o espírito sacral do próprio abade Suger, considerado o pai do gótico original no século XII.

“Na pura arquitetura, até o mais ínfimo detalhe deve ter um significado ou servir a um propósito.

O maior ícone deste fenômeno certamente foi Augustus Welby Pugin, o arquiteto que projetou a icônica torre do Big Ben de Londres e o Palácio de Westminster, reconstruído após o incêndio de 1834 – além de diversos outros edifícios importantes inspirados na arquitetura gótica. Alguns deles, porém, tiveram que ser assinados por arquitetos não católicos, uma vez que seriam rejeitados pelas autoridades se fossem atribuídos ao “papista” Pugin.

“Eu busco a antiguidade, não a novidade. Esforço-me por reviver, não inventar.”, afirmava o projetista.

O próprio edifício do parlamento britânico (Westminster) foi uma obra creditada na época a Charles Barry, um expoente protestante do Gothic Revival, embora Pugin fosse o seu verdadeiro autor. Melhorias pretendidas no Balliol College (uma das faculdades de Oxford) estimularam Pugin a submeter às autoridades um sofisticado projeto em seu próprio nome, o qual foi rejeitado em 1846 – não obstante Pugin fosse reconhecidamente o maior especialista em arquitetura gótica da Grã-Bretanha – em razão da fé romana que professava.

Na ótica detalhista de Pugin, a construção civil jamais deveria servir apenas a critérios de utilidade prática. Isto seria renunciar à beleza humanizadora da arte e aos talentos artísticos dados por Deus ao homem. Ensinava ele:

“Na pura arquitetura, até o mais ínfimo detalhe deve ter um significado ou servir a um propósito.”

Entretanto, Pugin também insistia na importância da sobriedade e no perigo dos excessos, da ornamentação supérflua. Todo ornamento deveria ser um enriquecimento da construção essencial do edifício, e não uma excrescência desta. Provocador, dizia também:

“Nada pode ser mais danoso do que olhar para retratos de edifícios e tentar imitar pedaços deles. Esses livros de arquitetura causam tanto mal quanto as Escrituras nas mãos dos protestantes.”

Não obstantes as interdições de cunho confessional, não se pôde evitar que os ares da alta cristandade voltassem a circular pela Inglaterra oitocentista e, depois, pelo mundo. A tendência do Gothic Revival polvilhou o Reino Unido de igrejas e prédios públicos no estilo católico medieval e foi, depois, sendo adotada também em outros países. Igualmente, o estilo românico, mais típico da alta (ou primeira) Idade Média, passou a ser empregado em novas edificações por arquitetos como Alfred Waterhouse.

Torre do Big Ben e Palácio de Westmister (Fonte: Wikimedia Commons)

Seria impossível não se admirar de que, algumas décadas após a pregação de John Keble sobre a National Apostasy, em 1833, ou a divulgação do Tract 90 de John Henry Newman, em 1841, diversos novos prédios góticos e românicos, tão belos quanto imponentes, estivessem ressurgindo em Londres, Manchester, Liverpool, Nottingham…

O neogótico, adotado inclusive nos grandes edifícios brasileiros construídos entre fins do século XIX e início do XX – como a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo ou a Catedral Metropolitana de Curitiba -, tem relação com o renovado interesse britânico pelas formas medievais na era vitoriana, o qual, por sua vez, havia nascido do impulso espiritual de Oxford.

Artes plásticas

A dedicação (1908), por Edmund Blair Leighton.

Sem dúvida, devemos ao tractarianismo também muitas obras de ilustradores, escultores e pintores que integraram a chamada Irmandade Pré-Rafaelita. Nomes como Edward Burne-Jones, James Collinson, Ford Madox Brown, Frederic Shields, Edmund B. Leighton e Dante Gabriel Rossetti, foram ligados a essa sociedade artística, conquanto não necessariamente na mesma época.

Os pré-rafaelitas constituíram como que uma escola de arte que se empenhava em recuperar, especialmente na pintura, a essência do estilo e das temáticas medievais, purificando-a, em algum grau, das influências modernas, como as renascentistas e neoclássicas. O nome faz referência ao italiano Rafael Sanzio, pintor do séc. XVI considerado um marco da arte renascentista, a qual, para os pré-rafaelitas, representou o início de uma decadência, pois consideravam-na inferior à arte de Fra Angelico, por exemplo.

Os mestres pictóricos alemães alcunhados de Nazarenos, que precederam os ingleses em algumas décadas neste resgate estético-espiritual, também exerceram influências consideráveis na Irmandade, bem como a onda do romantismo, que grassava naquele século.

A capela neogótica de Eaton Hall, em Cheshire, projetada por Waterhouse e decorada por Shields, foi elogiada em 1882 pela revista norte-americana The Atlantic Monthly nos seguintes termos:

“É na função interpretativa da arte que o senhor Shields mostrou seu grande poder; e a interpretação não é de uma escola de pensamento, nem de uma tradição histórica, nem de uma fantasia individual, mas de uma concepção católica e abrangente da vida espiritual. O pensamento dominante da obra está no poder vivificante do espírito, e o sentimento religioso é estável e profundo.”

O empenho oxfordiano de restaurar tradições milenares na High Church anglicana causou profunda impressão, por exemplo, no espírito do jovem Rossetti. Nascido em Londres no seio de uma nobre família de ascendência italiana, ele percebeu que o culto anglicano frequentado eventualmente por sua família na capital do império britânico tinha passado a adotar o uso de flores, velas sobre o altar, cantos solenes e outros costumes católicos.

Assim, embora fosse filho de ninguém menos que o fundador da Carbonária – uma das organizações revolucionárias secretas mais subversivas e anticatólicas do século XIX – as cenas do Evangelho e a arte lendária cristã foram, ao lado das narrativas sobre o Rei Arthur e a busca do Santo Graal, fontes de rica inspiração para Rossetti. Isso contribuiu para que ele se consagrasse não exatamente como um pintor sacro, mas seguramente como um restauracionista artístico.

The Girlhood of Mary Virgin 1848-9 Dante Gabriel Rossetti 1828-1882

Sua pintura A Mocidade da Virgem Maria (1849), por exemplo, retrata a mãe da Virgem, Santa Ana, ensinando a jovem filha a bordar uma toalha de altar vermelha. Era um costume tipicamente católico deixar que as religiosas e outras mulheres piedosas fizessem o bordado das toalhas e alfaias litúrgicas usadas na Santa Missa, em vez de simplesmente comprá-las prontas. Na mesma cena também aparecem: São Joaquim, pai de Maria, trabalhando numa vinha; um pequeno Anjo se apoiando em livros com nomes de virtudes cristãs, como Fé, Temperança e Fortaleza, em latim; os símbolos iconográficos da pureza, da mortificação e do martírio (o lírio, um ramo de espinhos e a palma); e também um remansado e alvo pombo, alusivo à presença do Espírito Santo na bucólica cena.

Os laços de amizade dentro da Irmandade eram, eventualmente, bastante fortes. Sabe-se, por exemplo, que a irmã de Dante, a poetisa pré-rafaelita Cristina Rossetti, chegou a ser noiva de James Collinson, o qual, depois de já convertido ao catolicismo, se havia feito anglicano novamente para se casar com Cristina. No entanto, impelido por sua consciência a retornar à difamada Igreja romana, o jovem pintor mais tarde acabou desistindo do enlace.

Vitrais, quadros, esculturas e afrescos célebres produzidos pelos pré-rafaelitas testemunharam uma espécie de “desforra” pacífica e benevolente dos “papistas” pelos séculos de perseguição protestante. Embora nem todos fossem caudatários do revival espiritual-teológico de Oxford, é seguro que muitos de fato beberam de fontes tractarianas e, direta ou indiretamente, o reproduziram de algum modo em suas obras.

Música

Outro fato digno de nota é que muitos hinários antigos com composições de fisionomia anglo-católica foram resgatados e começaram a ser usados novamente nas igrejas para o canto litúrgico. Isso motivou novas composições inspiradas nos cantos católicos, sem chegar a atingir, contudo, o grau de complexidade e sofisticação das polifonias sacras medievais e barrocas.

John Keble, o desbravador do movimento tractariano, foi quem compôs Sun of My Soul, Thou Savior Dear, cuja melodia bastante simples tornou-se conhecida no mundo todo, variando-se muito a letra.

Também o Padre Frederick William Faber, um dos discípulos mais diligentes do cardeal Newman – e, portanto, filho da primeira geração do movimento – compôs músicas litúrgicas novas. Entre elas, Faith of Our Fathers (Fé de Nossos Pais) se tornou bastante conhecida no seu tempo por evocar um sentimento de júbilo e de gratidão pela Fé recebida de uma longa tradição, conservada às custas de muitos tormentos e transmitida por gerações ao longo dos séculos. A primeira estrofe e o refrão dizem:

Faith of our Fathers! living still
In spite of dungeon, fire, and sword:
Oh, how our hearts beat high with joy
Whene’er we hear that glorious word.

Faith of our Fathers! Holy Faith!
We will be true to thee till death.

O impulso de Oxford encorajou novas traduções do latim, do grego e do alemão para o inglês, sendo as mais famosas provavelmente as dos cantos de Advento Veni Veni Emmanuel e Adeste Fideles, cujos títulos em inglês (O Come, O Come, Emmanuel e O, Come All Ye Faithful, respectivamente) tornaram-se mais célebres no mundo anglo-saxão do que os próprios originais.

Atribui-se ao movimento também a publicação, entre 1860-1861, do importante hinário Hymns Ancient and Modern, além de um uso mais difundido do órgão / harmônio e dos corais polifônicos na liturgia.

Historiografia

Capa Livro The Dividing of Christendom,
de Christopher Dawson

O estudo da História foi singularmente enriquecido pelas pesquisas e obras monumentais de historiadores como Christopher Dawson e John Acton, ambos influenciados pelo movimento. Em Dawson, o legado dos tractarianos de Oxford é facilmente identificável, por exemplo, em livros como A Divisão da Cristandade, de 1965, não sendo necessário farejá-lo nas entrelinhas ou rastreá-lo em sua biografia.

Nascido em 1889, ele foi educado no anglo-catolicismo e estudou no Trinity College de Oxford, onde recebeu honras acadêmicas em 1911 por suas contribuições para as pesquisas em História Moderna. No ano de 1914, converteu-se totalmente à Fé romana, razão pela qual passaria à posteridade como “o maior historiador católico do século XX”. Em 1933, ele próprio escreveu um livro sobre os primeiros tractarianos e sua onda restauracionista intitulado The Spirit of the Oxford Movement.

Célebre por suas obras abrangentes sobre as quebras de paradigmas e mudanças sofridas pela nossa civilização, Dawson identificava o culto idolátrico da técnica, do poder, do libertinismo confundido com liberdade, do controle estatal e da mecanização da vida como verdadeiras patologias coletivas contemporâneas. Por trás de tudo, estaria, portanto, a velha soberba humana, e a substituição de Deus pelas vãs narrativas ideológicas.

Sobre o leitmotiv do nosso tempo, ponderou no artigo The Catholic Tradition and the Modern State:

“Não a liberdade, mas o poder é a verdadeira nota da nossa civilização moderna. O homem ganhou infinitamente em seu controle sobre a Natureza, mas perdeu o controle sobre sua própria vida individual.”

Autor prolífico, escreveu mais de duas dúzias de livros, vários artigos, e lecionou nas universidades de Exeter, Liverpool, Edimburgo e Harvard. Por sua distinção como professor, pesquisador e autor, foi eleito membro da Academia Britânica em 1943. Além de historiador, foi reconhecido também como sociólogo e filósofo da religião.

Cético em relação aos dogmas do progresso e do mundo criado pelas revoluções modernas, escreveu no livro The Judgement of the Nations, de 1942:

“Desapareceram os velhos marcos do bem e do mal, da verdade e da falsidade, e a civilização encaminha-se rapidamente ao encontro da tempestade da destruição, qual navio desarvorado. Os males que o século XIX supusera banidos para sempre – proscrição e perseguição, tortura, escravidão e o temor à morte inesperada – voltaram, e com eles novos terrores que o passado desconhecera. Descobrimos que o mal também é força progressista e que o mundo moderno propicia ilimitadas possibilidades ao seu desenvolvimento. Destarte, não é por acidente que o período que assistiu ao zênite do moderno desenvolvimento do poder científico e econômico pôde trazer a civilização ocidental às bordas da ruína.”

Lord John Dalberg-Acton produziu, igualmente, um número considerável de obras historiográficas, lecionou em Cambridge e passou à posteridade como defensor da liberdade política e ferrenho opositor do poder estatal exercido de forma tirânica. Embora o seu pensamento tivesse um forte pendor liberal, sobretudo no campo da política, foram inegáveis as marcas deixadas no seu intelecto pelo influxo das ideias do Cardeal John Henry Newman, a quem sucedeu por um período na direção do periódico católico The Rambler. E mesmo não aquiescendo com todo o corpo doutrinal romano, Acton também defendeu energicamente a razoabilidade da maioria das doutrinas católicas contestadas no meio protestante.

Suas conferências proferidas na Universidade de Cambridge sobre a Revolução Francesa entre 1895 e 1899 renderam um livro sobre os meandros daquele fatídico acontecimento histórico, assim como os seus vários ensaios e palestras que depois compuseram outras obras historiográficas de relevo.

Abaixo, algumas das famosas sentenças de Acton que me pareceram merecedoras de encerrar esta terceira parte da nossa série:

“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente.”

“Socialismo significa escravidão”

“Onde há concentração de poder em poucas mãos, com demasiada frequência os homens com mentalidade de bandidos conseguem o controle. A história já provou isso.”

“Há muitas coisas que o governo não pode fazer, muitos bons propósitos a que deve renunciar. Deve deixá-los para as pessoas. Não pode alimentar o povo. Não pode enriquecer o povo. Não pode ensinar o povo. Não pode converter as pessoas.”

“As opiniões mudam, as maneiras mudam, os credos sobem e descem, mas a lei moral está escrita nas tábuas da eternidade.”

“Não existe um hábito mental mais perigoso ou imoral do que a santificação do sucesso.”

“Um homem público não tem o direito de deixar que suas ações sejam determinadas por interesses particulares. Ele faz o mesmo que um juiz que aceita um suborno. Como um juiz, ele deve considerar o que é certo, não o que é vantajoso para um partido ou classe.”

“Os preceitos morais são constantes através dos tempos e não obedecem às circunstâncias.”

“Um espírito generoso prefere que seu país seja pobre, fraco e sem importância, mas livre, em vez de poderoso, próspero e escravizado.”

“O que permeia o mal da democracia é a tirania da maioria, ou melhor, daquele partido, nem sempre a maioria, que consegue, pela força ou pela fraude, vencer eleições.”


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *